sexta-feira, 9 de março de 2012

Fazendo a barba Luiz Vilela

O barbeiro acabou de ajeitar-lhe a toalha ao redor do pescoço. Encostou a mão: — Ele está quente ainda... — Que hora que foi? — perguntou o rapazinho. O barbeiro não respondeu. Na camisa semi-aberta do morto alguns pêlos grisalhos apareciam. O rapazinho observava atentamente. Então o barbeiro olhou para ele. — Que hora que ele morreu? — o rapazinho tornou a perguntar. — De madrugada — disse o barbeiro; — ele morreu de madrugada. Estendeu a mão: — O pincel e o creme. O rapazinho pegou rápido o pincel e o creme na valise de couro sobre a mezinha. Depois pegou a jarra de água que havia trazido ao entrarem no quarto: derramou um pouco na vasilhinha do creme e mexeu até fazer espuma. O rapazinho era sempre rápido no serviço mas àquela hora sua rapidez parecia acompanhada de algum nervosismo: o pincel acabou escapulindo de sua mão e foi bater na perna do barbeiro, que estava sentado junto à cama. Ele pediu desculpas, muito sem-graça e mais descontrolado ainda. — Não foi nada — disse o barbeiro, limpando a mancha de espuma na calça; — isso acontece... O rapaz, depois de catar o pincel, mexeu mais um pouco, e então entregou a vasilhinha ao barbeiro, que ainda deu uma mexida. Antes de começar o serviço, o barbeiro olhou para o rapaz: — Você acharia melhor esperar lá fora? — perguntou, de um modo muito educado. — Não, senhor. — A morte não é um espetáculo agradável para os jovens — disse. Aliás, para ninguém... Começou a pincelar o rosto do morto. A barba, de uns quatro dias, estava cerrada. Através da porta fechada vinha um murmúrio abafado de vozes rezando um terço. Lá fora o céu ia acabando de clarear; um ar fresco entrava pela janela aberta do quarto. O barbeiro devolveu o pincel e a vasilhinha; o rapaz já estava com a navalha e o afiador na mão: entregou-os ao barbeiro e pôs na mesa a vasilhinha com o pincel. O barbeiro afiava a navalha. No salão, era conhecido seu estilo de afiar, acompanhando trechos alegres de música clássica, que ele ia assobiando. Ali, no quarto, ao lado de um morto, afiava num ritmo diferente, mais espaçado e lento: alguém poderia quase deduzir que ele, em sua cabeça, assobiava uma marcha fúnebre. — É tão esquisito — disse o rapazinho. — Esquisito? — o barbeiro parou de afiar. — A gente fazer a barba dele... O barbeiro olhou para o morto: — O que não é esquisito? — disse. — Ele, nós, a morte, a vida, o que não é esquisito? Começou a barbear. Firmava a cabeça do morto com a mão esquerda, e com a direita ia raspando. — Deus me ajude a morrer com a barba feita — disse o rapazinho, que já tinha alguma barba. — Assim eles não têm de fazer ela depois de eu morto. E tão esquisito... O barbeiro se interrompeu, afastou a cabeça e olhou de novo para o rosto do morto — mas não tinha nada a ver com a observação do rapaz; estava apenas olhando como ia o seu trabalho. — Será que ele está vendo a gente de algum lugar? — perguntou o rapazinho. Olhou para o alto — o teto ainda de luz acesa —, como se a alma do morto estivesse por ali, observando-os; não viu nada, mas sentia como se a alma estivesse por ali. A navalha ia agora limpando debaixo do queixo. O rapazinho observava o rosto do morto, seus olhos fechados, a boca, a cor pálida: sem a barba, ele agora parecia mais um morto. — Por que a gente morre? — perguntou. — Por que a gente tem de morrer? O barbeiro não disse nada. Tinha acabado de barbear. Limpou a navalha e fechou-a, deixando-a na beirada da cama. — Me dá a outra toalha — pediu; — e molhe o paninho. O rapaz molhou o paninho na jarra; apertou-o para escorrer, e então entregou ao barbeiro, junto com a toalha. O barbeiro foi limpando e enxugando cuidadosamente o rosto do morto. Com a ponta do pano, tirou um pouco de espuma que tinha entrado no ouvido. — Por que será que a gente não acostuma com a morte? — perguntou o rapazinho. — A gente não tem de morrer um dia? Todo mundo não morre? Então por que a gente não acostuma? O barbeiro fixou-o um segundo: — É — disse, e se voltou para o morto. Começou a fazer o bigode. — Não é esquisito? — perguntou o rapazinho. — Eu não entendo. — Há muita coisa que a gente não entende — disse o barbeiro. Estendeu a mão: — A tesourinha. Na casa, o movimento e o barulho de vozes pareciam aumentar; de vez em quando um choro. O rapazinho pensou alegre que já estavam quase acabando e que dentro de mais alguns minutos ele estaria lá fora, na rua, caminhando no ar fresco da manhã. — O pente — disse o barbeiro. — Pode ir guardando as coisas. Quando acabou de pentear, o barbeiro se ergueu da cadeira e contemplou o rosto do morto. — A tesourinha de novo — pediu. O rapaz tornou a abrir a valise e a pegar a tesourinha. O barbeiro se curvou e cortou a pontinha de um fio de cabelo do bigode. Os dois ficaram olhando. — A morte é uma coisa muito estranha — disse o barbeiro. Lá fora o sol já iluminava a cidade, que ia se movimentando para mais um dia de trabalho: lojas abrindo, estudantes andando para a escola, carros passando. Os dois caminharam um bom tempo em silêncio; até que, à porta de um boteco, o barbeiro parou: — Vamos tomar uma pinguinha? O rapaz olhou meio sem jeito para ele; só bebia escondido, e não sabia o que responder. — Uma pinguinha é bom para retemperar os nervos — disse o barbeiro, olhando-o com um sorriso bondoso. — Bem... — disse o rapaz. O barbeiro pôs a mão em seu ombro, e os dois entraram no boteco. ( Os cem melhores contos brasileiros do século)

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