quinta-feira, 14 de junho de 2012

Idolatria Sérgio Faraco

Eu olhava para a estrada e tinha a impressão de que jamais na vida chegaríamos a Nhuporã. Que pedaço brabo. O camaleão se esfregava no chassi e o pai praguejava: — Caminho do diabo! Nosso Chevrolet era um trinta e oito de carroceria verde-oliva e cabina da mesma cor, só um nadinha mais escura. No pára-choque havia uma frase sobre amor de mãe e em cima da cabina uma placa onde o pai anunciava que fazia carreto na cidade, fora dela e ele garantia, de boca, que até fora do estado, pois o Chevrolet não se acanhava nas estradas desse mundo de Deus. Mas o caminho era do diabo, ele mesmo tinha dito. A pouco mais de légua de Nhuporã o caminhão derrapou, deu um solavanco e tombou de ré na valeta. O pai acelerou, a cabina estremeceu. Ouvíamos os estalos da lataria e o gemido das correntes no barro e na água, mas o caminhão não saiu do lugar. Ele deu um murro no guidom. — Puta merda. Quis abrir a porta, ela trancou no barranco. — Abre a tua. A minha também trancava e ele se arreliou: — Como é, ô Moleza! Empurrou-a com violência. — Me traz aquelas pedras. E vê se arranca um feixe de alecrim, anda. Agachou-se junto às rodas e começou a fuçar, jogando grandes porções de barro para os lados. Mal ele tirava, novas porções vinham abaixo, afogando as rodas. Com a testa molhada, escavava sem parar, suspirando, praguejando, merda isso e merda aquilo, e de vez em quando, com raiva, mostrava o punho para o caminhão. O pai era alto, forte, tinha o cabelo preto e o bigode espesso. Não era raro ele ficar mais de mês em viagem e nem assim a gente se esquecia da cara dele, por causa do nariz, chato como o de um lutador. Bastava lembrar o nariz e o resto se desenhava no pensamento. — Vamos com essas pedras! Por que falava assim comigo, tão danado? As pedras, eu as sentia dentro do peito, inamovíveis. — Não posso, estão enterradas. — Ah, Moleza. Meteu as mãos na terra e as arrancou uma a uma. Carreguei-as até o caminhão, enquanto ele se embrenhava no capinzal para pegar o alecrim. — Pai, pai, o caminhão tá afundando! A cabeça dele apareceu entre as ervas. — Não vê que é a água que tá subindo, ô pedaço de mula? E riu. Ficava bonito quando ria, os dentes bem parelhos e branquinhos. — Tá com fome? — Não. — Vem cá. Tirou do bolso uma fatia de pão. — Toma. — Não quero. — Toma logo, anda. — E tu? — Eu o quê? Come isso. Trinquei o pão endurecido. Estava bom e minha boca se encheu de saliva. — Acho que não vamos conseguir nada por hoje. De manhãzinha passa a patrola do DAER*, eles puxam a gente. Atirou a erva longe e entrou na cabina. — Ô Moleza, vamos tomar um chimarrão? Fiz que sim. Ao me aproximar, ele me jogou sua japona. — Veste isso, vai esfriar. A japona me dava nos joelhos e ele riu de novo, mostrando os dentes. — Que bela figura. A cara dele era tão boa e tão amiga que eu tinha uma vontade enorme de me atirar nos seus braços, de lhe dar um beijo. Mas receava que dissesse: como é, Moleza, tá ficando dengoso? Então agüentei firme ali no barro, com as abas da japona me batendo nas pernas, até que ele me chamou outra vez: — Como é, vens ou não? Aí eu fui. *Sigla do departamento responsável pela conservação das estradas estaduais.
FONTE:http://www.releituras.com/sfaraco_menu.asp

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