quinta-feira, 12 de julho de 2012

Nos olhos do intruso Rubens Figueiredo



Não lembro a primeira vez. Mas aqui e ali comecei a ouvir comentários:
aquela é a cidade que interessa, é onde as coisas acontecem, o futuro
fugiu para lá. Advertências que repetiam a verdade mais simples, não há como
negar. Hoje, parecem ressoar a voz de um oráculo. Mas era uma verdade que
entendi mal, que me apressei em traduzir totalmente errado, nos termos da
euforia de um menino, ou até de um tolo.
Talvez eu pudesse ter ficado como estava, talvez o futuro ainda dormisse
bem longe até hoje, se naquela noite eu não tivesse ido ao teatro. Três atores
representavam vários papéis e a história da peça quase não importava. O
espetáculo consistia muito mais na velocidade e na perfeição das metamorfoses
dos atores. Em poucos minutos, eles trocavam de roupa, peruca e
maquiagem, encarnavam outra voz, outra personalidade, e tudo com um
vigor que só podia nascer de um tipo de vida.
No final da peça, algumas fileiras à minha frente, aconteceu. Quando
as pessoas se levantaram, entrevi, no intervalo das cabeças, um homem
parecido com alguém que eu conhecia. Talvez fosse a dança de tantos rostos
a meu redor, mas o efeito era o de muitas feições distintas convergindo e se
sobrepondo no ar transparente.
Uma desconfiança incômoda me obrigou a olhar melhor e então
deparei com um sujeito igual a mim mesmo, apenas um pouco mais novo.
Sacudido por uma espécie de insulto, experimentei o temor de estar sendo
sorrateiramente substituído.
Com os olhos naquele homem, esqueci que devia continuar andando.
As pessoas atrás de mim, na minha fileira, me repreenderam com resmungos.
Tentei me livrar do meu estupor, mas o máximo que consegui foi observar
o homem da maneira mais discreta que podia. As fileiras escorriam todas na
mesma direção, o público escoava ligeiro para o funil da saída e logo o perdi
de vista.
Se uma coisa deriva sempre de outra, se todo fato espalha efeitos em
todas as direções, por que não ver no que se seguiu uma continuação, um
sistema? Podia parecer um desses acasos bobos, uma dessas situações tão
corriqueiras que nem paramos para pensar. Em um intervalo de semanas,
pelo menos três amigos se aproximaram de mim para dizer que me tinham
visto em lugares que eu não conhecia, locais aonde eu nunca fora, fazendo
coisas que eu absolutamente não podia ter feito, porque estava ocupado, em
outra parte.
Na primeira vez, juro, tentei negar. Depois, diante da alegre certeza da
pessoa à minha frente, me resignei a ouvir em silêncio. A seguir, de uma
maneira que eu mal percebi, passei pouco a pouco a acreditar que era eu
mesmo que ia àqueles lugares e punha em prática aquelas ações. Eu até sorria
e pelo menos uma vez cheguei a inventar explicações adicionais, coerentes,
que vi serem bem aceitas pelo meu ouvinte.
Outros talvez não prestassem atenção. Outros talvez não encadeassem
uma coisa à outra. Sei que, mesmo na vida mais banal, há lugar para tudo.
Mas, um dia, no centro da cidade, um homem completamente desconhecido
me cumprimentou com familiaridade. O sinal fechou e, enquanto eu
atravessava a rua, o homem, andando em sentido contrário, acenou ligeiro
com a mão. Receoso de me mostrar mal-educado com algum conhecido,
correspondi ao aceno. O sinal abriu, os carros e ônibus andaram, bloquearam minha visão e eu o perdi na multidão da calçada oposta.
Tempos depois, eu vinha andando distraído pela rua. Quando dei por
mim, uma pessoa que não pude reconhecer me dirigia palavras apressadas.
Mencionou de passagem um nome estranho para mim como se fosse um
amigo comum. Depois pediu desculpas pela pressa, se despediu e foi embora.
Algo desse tipo se repetiu ainda, talvez em um espaço de alguns meses, duas
ou três situações que outras pessoas poderiam interpretar como encontros
fortuitos com lunáticos, do tipo que prolifera nas ruas, eu sei. Mas a minha
lua é a mesma de todo mundo.
Aos poucos, as atividades que esses desconhecidos atribuíam a mim
começaram a me parecer familiares. As pessoas que eles mencionavam
chegaram a se tornar íntimas para mim, com seus nomes e suas ambições
cotidianas. Tudo ia se incorporando à minha memória. O meu passado se
expandia com um novo elenco de pessoas e fatos, ao mesmo tempo em que
o meu presente também se ampliava, numa espécie de movimento de
conquista. Minha vida abarcava muitas outras vidas e assim eu conseguia me
sentir mais vivo do que nunca.
Um dia, numa rua do centro, tomei coragem. Arrisquei cumprimentar
alguém que eu, com absoluta certeza, não conhecia. Após um instante de surpresa
bem natural, nas circunstâncias, a pessoa respondeu ao meu cumprimento, de
forma discreta. Sua expressão deu a entender que, naquele momento, não tinha
tempo para conversar comigo como gostaria, e seguiu adiante.
Por que pedir mais? Vi naquilo uma confirmação, e não poderia ser de
outro modo. Agora, eu olhava o mundo à minha volta com o ardor de uma
simpatia desconhecida. Via as pessoas entrando e saindo pelas portarias dos
prédios, contemplava a fila de cabeças voltadas para mim nas janelas dos
ônibus e sabia que no mundo ninguém mais seria para mim um estranho.
Vivi assim um tempo, até que, certa manhã, o telefone me acordou. A
voz do outro lado avisou que uma determinada pessoa havia morrido. Citou
um nome, que não reconheci nem me dei ao trabalho de memorizar. Mas
anotei a hora e o lugar do funeral. A voz ainda lamentou que ele tivesse
morrido ainda jovem, e garantiu que “todos” iriam lá.
Cheguei em cima da hora, um pouco atrasado até. Achei que por isso
ninguém se aproximou para me cumprimentar. Raciocinei que temiam
perturbar a cerimônia. Uma música de órgão descia gelada das paredes e só
um segundo antes de o caixão ser fechado distingui as feições do defunto.
Foi rápido, uma sombra correu sobre o véu transparente. Mas creio ter
reconhecido o homem que eu, nem sei quanto tempo antes, vira no teatro.
O homem igual a mim. Com a tampa fixada em seu lugar, o caixão deslizou
por uma esteira na direção de uma porta e desapareceu no crematório.
Antes que eu me refizesse da surpresa, todos haviam ido embora sem
sequer se despedir de mim. Em poucos dias, as coisas começaram a mudar.
Encostei no balcão de uma lanchonete, pedi um cafezinho, na esperança de
que o garçom conversasse um minuto comigo, sobre o tempo, o trânsito, o
que fosse. Mas ele logo virou a cara para o meu sorriso, como se estivesse
diante de um estranho, um intrometido.
A rigor, aqui e ali, eu descobria motivos para pensar que me consideravam
um importuno. Em lugares onde eu esperava ser recebido como um
irmão, me rechaçavam com a frieza e a hostilidade educada que só se descarrega
sobre os intrusos. Mesmo nos ambientes que, antes, eram para mim perfeitamente
familiares - meu trabalho, minha vizinhança, meus colegas -
eu me via tratado como alguém indesejável. Foi nessa altura que resolvi me
mudar
para uma outra cidade, a cidade de que eu ouvia falar com tanta simpatia.
Tratei de me adaptar o mais depressa possível. Tentei refazer minha
vida, reconstituir à minha volta um convívio humano que me justificasse.
Mas isso se revelou difícil. Pelo menos, eu não era tratado como um invasor. Acho que eu poderia ter vivido assim bastante tempo, sem maiores
problemas. Mas agora isso não será possível. Há poucos dias, em uma
barbearia, rodeado de espelhos que corriam diante de mim e às minhas costas,
entendi o que era o futuro e por que ele estava nesta cidade.
O barbeiro terminou de aparar meu cabelo, ergueu dos meus ombros
o pano branco com um floreio do braço e então me levantei. Quando
contemplava a mim mesmo no espelho, reparei com o canto dos olhos o
reflexo de um homem, umas três cadeiras à esquerda. Ele me fitava com
insistência. Tinha um ar quase desnorteado, na verdade, e achei que já devia
estar me observando desde algum tempo.
Por instinto, desviei o rosto pois o homem me pareceu agitado. Fingi
que não o via e estou certo de que o deixei convencido disso. Mas os espelhos
permitiam olhares diagonais. Por esse ângulo, pude notar que o sujeito era
extraordinariamente parecido comigo. Apenas um pouco mais velho.
Fui para a rua. Forcei minhas pernas a caminhar e vi a calçada fugindo
para trás sob os meus passos. Sei agora por que vim para esta cidade. O olhar
admirado do homem na barbearia foram as boas-vindas e também uma
despedida para mim. Já posso sentir o calor das chamas estalando. Mas, até
que chegue a minha vez, esse sujeito ainda vai ouvir falar muito de mim. 

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