segunda-feira, 28 de novembro de 2011

LEMIINSKI- CATATAU


“Do tamanho de um pinto nascido recentemente, tinha cabeça de ganso um pouco mais pontuda, na parte superior, o bico largo como o do ganso, mas a extremidade da parte superior inclinada para baixo; os olhos eram pequenos, o pescoço, curto. As asas eram pequenas, sitas perto das primeiras penas (estas eram em número de quatro). Não tinha peito; em lugar dele, acharam-se duas pernas das quais a parte superior media três quartos de dedo e a inferior um quarto; cada uma das pernas tinha quatro dedos semelhantes aos da galinha. As duas pernas posteriores, do mesmo tamanho e figura que as anteriores, estavam colocadas de um modo curioso, isto é, a esquerda era natural mas a direita, na sua origem a esquerda, era uma proeminência da esquerda como que voltada para cima, como se houvesse duas pernas esquerdas e uma direita emendada na esquerda, no lugar de sua origem. Não havia, por isso, o uropígio, porquanto não havia intervalo entre essas pernas posteriores; em lugar da cauda, estavam anexos à perna esquerda uns pêlos um tanto longos de cor branca. Os pés eram semelhantes aos da galinha e os dedos dispostos do mesmo modo; cada um, porém, era disposto em ordem inversa, de sorte que a parte inferior se achava na superior e vice-versa; as unhas também eram voltadas para cima. A cabeça, pescoço, ventre, asas, dorso e parte superior das pernas não eram cobertos de penas mas de pêlos pretos de meio dedo de comprimento, um pouco claros debaixo do ventre e garganta; em resumo, um pinto totalmente monstruoso. A parte inferior das pernas e os pés eram de cor fusca e bem assim o bico; as vísceras eram como as da galinha, porém dispostas desordenadamente; o coração era grande, vivia quando nasceu.”
(Marcgravf, História Naturalis; História das Aves, Lib. V, Cap. XV)

LEMINSKI-CATATAU

domingo, 27 de novembro de 2011

Livro influente


Medo e Delírio em Las Vegas, de Hunter S. Thompson
medo-e-delirio-em-las-vegas-hunter-s-thompson1
Um dos responsáveis pela popularização do gênero jornalismo gonzo, Hunter S. Thompson está na lista de autores considerados ícones da literatura jovem. Sempre associado à tríade  sexo, drogas e rock’n'roll, o jornalista transformou suas experiências em relatos que marcaram o fim da era hippie e registraram os constantes conflitos entre os conservadores e libertários nos EUA. Em Medo e Delírio em Las Vegas, um repórter e seu advogado cruzam o deserto de Nevada a bordo de um carro conversível, totalmente entorpecidos por substâncias ilícitas. O objetivo do jornalista é cobrir uma corrida de motocicletas em Las Vegas. A obra ganhou uma adaptação para o cinema de nome homônimo, lançada em 1998. No longa, Raoul Duke, o repórter, é interpretado por Johnny Depp, enquanto Benicio Del Toro vive o Dr. Gonzo, o enigmático advogado.




quarta-feira, 23 de novembro de 2011

DO DESEJO


Do Desejo

de Hilda Hilst


E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.
(Do Desejo - 1992)

 * * *

Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosse nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.
( Do Desejo - 1992)

* * *

Que canto há de cantar o que perdura?
A sombra, o sonho, o labirinto, o caos
A vertigem de ser, a asa, o grito.
Que mitos, meu amor, entre os lençóis:
O que tu pensas gozo é tão finito
E o que pensas amor é muito mais.
Como cobrir-te de pássaros e plumas
E ao mesmo tempo te dizer adeus
Porque imperfeito és carne e perecível

E o que eu desejo é luz e imaterial.

Que canto há de cantar o indefinível?
O toque sem tocar, o olhar sem ver
A alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis.
Como te amar, sem nunca merecer?
(Da Noite - 1992)


segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Conto de Andersen


Fazia um frio terrível. Nevava, e a noite aproximava-se rapidamente. Era o último dia de Dezembro, véspera de Ano Novo.

Apesar do frio intenso e da escuridão, andava pelas ruas uma menina descalça e com a cabeça descoberta.

Ao sair de casa ainda trazia umas chinelas, mas que não lhe serviram de muito. Eram enormes, tão grandes que decerto pertenciam à mãe e a pobre menina tinha-as perdido ao atravessar a rua correndo, para fugir de duas carruagens que rolavam velozmente. Estava agora descalça e tinha os pés roxos de frio. Dentro de um velho avental tinha muitos fósforos e segurava um punhado deles.

Ninguém lhe comprara fósforos durante o dia e nem sequer lhe tinham dado uma esmola. Morta de frio e de fome, arrastava-se pelas ruas. A pobre criança era a imagem da miséria. Caíam-lhe flocos de neve sobre os cabelos louros muito compridos.

As janelas das casas estavam todas iluminadas. Pelas ruas, espalhava-se o cheiro reconfortante de gansos assados, pois era véspera de Ano Novo.

A menina acocorou-se no ângulo formado pelos muros de duas casas. Encolhera as pernas e sentara-se em cima delas, mas continuava a ter frio. Não ousava voltar para casa porque não vendera nem um fósforo e não tinha sequer uma moeda para entregar ao pai. Temia que este lhe desse uma sova. Além disso, em casa fazia quase tanto frio como na rua, porque tinham apenas o telhado para os cobrir. Apesar de terem tapado com palha e trapos todas as frestas, o vento gelado penetrava incessantemente.



Pôs-se a acender todos os fósforos que restavam na caixa, para conservar junto de si a imagem da avozinha. Os fósforos davam uma chama tão clara que parecia dia. Nunca a avó fora tão bela e tão grande como naquela noite.

A bondosa senhora pegou na criança entre os braços e ambas se elevaram no espaço, envolvidas por uma luz extraordinária. Subiram alto, muito alto, até onde deixa de existir o frio, a fome e o medo.

E, quando chegou a madrugada, encontraram a criança estendida no chão, com as faces rosadas e um sorriso nos lábios. Estava morta. Tinha morrido de frio, na última noite daquele ano.

O Sol do dia do Ano Novo ergueu-se sobre o corpo frágil e abandonado na neve. O avental da criança continha ainda alguns fósforos, mas perto do corpo encontrava-se um pacote de caixas vazias. No entanto, ninguém podia supor as esplêndidas coisas que a menina tinha visto, nem sequer a emoção que sentira ao ser levada pela bondosa avozinha, no dia em que o novo ano principiava.



sexta-feira, 11 de novembro de 2011

AULA DE INGLÊS


Aula de Inglês
Rubem Braga

—  Is this an elephant?

Minha tendência imediata foi responder que não; mas a gente não deve se deixar levar pelo primeiro impulso. Um rápido olhar que lancei à professora bastou para ver que ela falava com seriedade, e tinha o ar de quem propõe um grave problema. Em vista disso, examinei com a maior atenção o objeto que ela me apresentava.

Não tinha nenhuma tromba visível, de onde uma pessoa leviana poderia concluir às pressas que não se tratava de um elefante. Mas se tirarmos a tromba a um elefante, nem por isso deixa ele de ser um elefante; mesmo que morra em conseqüência da brutal operação, continua a ser um elefante; continua, pois um elefante morto é, em princípio, tão elefante como qualquer outro. Refletindo nisso, lembrei-me de averiguar se aquilo tinha quatro patas, quatro grossas patas, como costumam ter os elefantes. Não tinha. Tampouco consegui descobrir o pequeno rabo que caracteriza o grande animal e que, às vezes, como já notei em um circo, ele costuma abanar com uma graça infantil.

Terminadas as minhas observações, voltei-me para a professora e disse convincentemente:

—  No, it's not!

Ela soltou um pequeno suspiro, satisfeita: a demora de minha resposta a havia deixado apreensiva. Imediatamente perguntou:

—  Is it a book?

Sorri da pergunta: tenho vivido uma parte de minha vida no meio de livros, conheço livros, lido com livros, sou capaz de distinguir um livro a primeira vista no meio de quaisquer outros objetos, sejam eles garrafas, tijolos ou cerejas maduras — sejam quais forem. Aquilo não era um livro, e mesmo supondo que houvesse livros encadernados em louça, aquilo não seria um deles: não parecia de modo algum um livro. Minha resposta demorou no máximo dois segundos:

—  No, it's not!

Tive o prazer de vê-la novamente satisfeita — mas só por alguns segundos. Aquela mulher era um desses espíritos insaciáveis que estão sempre a se propor questões, e se debruçam com uma curiosidade aflita sobre a natureza das coisas.

—  Is it a handkerchief?

Fiquei muito perturbado com essa pergunta. Para dizer a verdade, não sabia o que poderia ser um handkerchief; talvez fosse hipoteca... Não, hipoteca não. Por que haveria de ser hipoteca? Handkerchief! Era uma palavra sem a menor sombra de dúvida antipática; talvez fosse chefe de serviço ou relógio de pulso ou ainda, e muito provavelmente, enxaqueca. Fosse como fosse, respondi impávido:

—  No, it's not!

Minhas palavras soaram alto, com certa violência, pois me repugnava admitir que aquilo ou qualquer outra coisa nos meus arredores pudesse ser um handkerchief.

Ela então voltou a fazer uma pergunta. Desta vez, porém, a pergunta foi precedida de um certo olhar em que havia uma luz de malícia, uma espécie de insinuação, um longínquo toque de desafio. Sua voz era mais lenta que das outras vezes; não sou completamente ignorante em psicologia feminina, e antes dela abrir a boca eu já tinha a certeza de que se tratava de uma palavra decisiva.

—  Is it an ash-tray?

Uma grande alegria me inundou a alma. Em primeiro lugar porque eu sei o que é um ash-tray: um ash-tray é um cinzeiro. Em segundo lugar porque, fitando o objeto que ela me apresentava, notei uma extraordinária semelhança entre ele e um ash-tray.  Era um objeto de louça de forma oval, com cerca de 13 centímetros de comprimento.

As bordas eram da altura aproximada de um centímetro, e nelas havia reentrâncias curvas — duas ou três — na parte superior. Na depressão central, uma espécie de bacia delimitada por essas bordas, havia um pequeno pedaço de cigarro fumado (uma bagana) e, aqui e ali, cinzas esparsas, além de um palito de fósforos já riscado. Respondi:

—  Yes!

O que sucedeu então foi indescritível. A boa senhora teve o rosto completamente iluminado por onda de alegria; os olhos brilhavam — vitória! vitória! — e um largo sorriso desabrochou rapidamente nos lábios havia pouco franzidos pela meditação triste e inquieta.  Ergueu-se um pouco da cadeira e não se pôde impedir de estender o braço e me bater no ombro, ao mesmo tempo que exclamava, muito excitada:

—  Very well!  Very well!

Sou um homem de natural tímido, e ainda mais no lidar com mulheres. A efusão com que ela festejava minha vitória me perturbou; tive um susto, senti vergonha e muito orgulho.

Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira aula; andei na rua com passo firme e ao ver, na vitrine de uma loja,alguns belos cachimbos ingleses, tive mesmo a tentação de comprar um. Certamente teria entabulado uma longa conversação com o embaixador britânico, se o encontrasse naquele momento. Eu tiraria o cachimbo da boca e lhe diria:

--  It's not an ash-tray!

E ele na certa ficaria muito satisfeito por ver que eu sabia falar inglês, pois deve ser sempre agradável a um embaixador ver que sua língua natal começa a ser versada pelas pessoas de boa-fé do país junto a cujo governo é acreditado.
Maio, 1945

A crônica acima foi extraída do livro "Um pé de milho", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1964, pág. 33.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

HAIKAI


 um flash back
um flash back dentro de um flash back
     um flash back dentro de um flash back de
     um flash back
um flash back dentro do terceiro flash back
     a memória cai dentro da memória
pedraflor na água lisa
     tudo cansa (flash back)
menos a lembrança da lembrança da lembrança
     da lembrança   leminski