quarta-feira, 30 de maio de 2012

Sem enfeite nenhum Adélia Prado

A mãe era desse jeito: só ia em missa das cinco, por causa de os gatos no scuro serem pardos. Cinema, só uma vez, quando passou os Milagres do padre Antônio em Urucánia. Desde aí, falava sempre, excitada nos olhos, apressada no cacoete dela de enrolar um cacho de cabelo: se eu fosse lá, quem sabe? Sofria palpitação e tonteira, lembro dela caindo na beira do tanque, o vulto dobrado em arco, gente afobada em volta, cheiro de alcanfor. Quando comecei a empinar as blusas com o estufadinho dos peitos, o pai chegou pra almoçar, estudando terreno, e anunciou com a voz que fazia nessas ocasiões, meio saliente: companheiro meu tá vendendo um relogim que é uma gracinha, pulseirinha de crom', danado de bom pra do Carmo. Ela foi logo emendando: tristeza, relógio de pulso e vestido de bolér. Nem bolero ela falou direito de tanta antipatia. Foi água na fervura minha e do pai. Vivia repetindo que era graça de Deus se a gente fosse tudo pra um convento e várias vezes por dia era isto: meu Jesus, misericórdia... A senhora tá triste, mãe? eu falava. Não, tou só pedindo a Deus pra ter dó de nós. Tinha muito medo da morte repentina e pra se livrar dela, fazia as nove primeiras sextas-feiras, emendadas. De defunto não tinha medo, só de gente viva, conforme dizia. Agora, da perdição eterna, tinha horror, pra ela e pros outros. Quando a Ricardina começou a morrer, no Beco atrás da nossa casa, ela me chamou com a voz alterada: vai lá, a Ricardina tá morrendo, coitada, que Deus perdoe ela, corre lá, quem sabe ainda dá tempo de chamar o padre, falava de arranco, querendo chorar, apavorada: que Deus perdoe ela, Deus perdoe ela, ficou falando sem coragem de sair do lugar. Mas a Ricardina era de impressionar mesmo, imagina que falou pra mãe, uma vez, que não podia ver nem cueca de homem que ela ficava doida. Foi mais por isso que ela ficou daquele jeito, rezando pra salvação da alma da Ricardina. Era a mulher mais difícil a mãe. Difícil, assim, de ser agradada. Gostava que eu tirasse só dez e primeiro lugar. Pra essas coisas não poupava, era pasta de primeira, caixa com doze lápis e uniforme mandado plissar. Acho mesmo que meia razão ela teve no caso do relógio, luxo bobo, pra quem só tinha um vestido de sair. Rodeava a gente estudar e um dia falou abrupto, por causa do esforço de vencer a vergonha: me dá seus lápis de cor. Foi falando e colorindo de laranjado, uma rosa geométrica: cê põe muita força no lápis, se eu tivesse seu tempo, ninguém na escola me passava, inteligência não te falta, o que falta é estudar, por exemplo falar você em vez de cê, é tão mais bonito, é só acostumar. Quando o coração da gente dispara e a gente fala cortado, era desse jeito que tava a voz da mãe. Achava estudo a coisa mais fina e inteligente era mesmo, demais até, pensava com a maior rapidez. Gostava de ler de noite, em voz alta, junto com tia Santa, os livros da Pia Biblioteca, e de um não esqueci, pois ela insistia com gosto no título dele, em latim: Máguina pecatrís. Falava era antusiasmo e nunca tive coragem de corrigir, porque toda vez que usava essa palavra, tava muito alegre, feito naquela hora, desenhando, feito no dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou: coitado, até essa hora no serviço pesado. Não estava gostando nem um pouquinho do desenho, mas nem que eu falava. Com tanta satisfação ela passava o lápis, que eu fiquei foi aflita, como sempre que uma coisa boa acontecia. Bom também era ver ela passando creme Marsílea no rosto e Antisardina nº 3, se sacudindo de rir depois, com a cara toda empolada. Sua mãe é bonita, me falaram na escola. E era mesmo, o olho meio verde. Tinha um vestido de seda branco e preto e um mantô cinzentado que ela gostava demais. Dia ruim foi quando o pai entestou de dar um par de sapato pra ela. Foi três vezes na loja e ela botando defeito, achando o modelo jeca, achando a cor regalada, achando aquilo uma desgraça e que o pai tinha era umas bobagens. Foi até ele enfezar e arrebentar com o trem, de tanta raiva e mágoa. Mas sapato é sapato, pior foi com o crucifixo. O pai, voltando de cumprir promessa em Congonhas do Campo, trouxe de presente pra ela um crucifixo torneadinho, o cordão de pendurar, com bambolim nas pontas, a maior gracinha. Ela desembrulhou e falou assim: bonito, mas eu preferia mais se fosse uma cruz simples, sem enfeite nenhum. Morreu sem fazer trinta e cinco anos, da morte mais agoniada, encomendando com a maior coragem: a oração dos agonizantes, reza aí pra mim, gente. Fiquei hipnotizada, olhando a mãe. Já no caixão, tinha a cara severa, de quem sente dor forte, igualzinho no dia que o João Antônio nasceu, Entrei no quarto querendo festejar e falei sem graça: a cara da senhora, parece que tá com raiva, O Senhor te abençoe e te guarde, Volva a ti o Seu Rosto e se compadeça de ti, O Senhor te dê a Paz. Esta é a bênção de São Francisco, que foi abrandando o rosto dela, descansando, descansando, até como ficou, quase entusiasmado. Era raiva não. Era marca de dor. - não encontrou nenhum documento.

terça-feira, 29 de maio de 2012

A caolha Júlia Lopes de Almeida

A caolha era uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto arqueado, braços compridos, delgados, largos nos cotovelos, grossos nos pulsos; mãos grandes, ossudas, estragadas pelo reumatismo e pelo trabalho; unhas grossas, chatas e cinzentas, cabelo crespo, de uma cor indecisa entre o branco sujo e o louro grisalho, desse cabelo cujo contato parece dever ser áspero e espinhento; boca descaída, numa expressão de desprezo, pescoço longo, engelhado, como o pescoço dos urubus; dentes falhos e cariados. O seu aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos; não tanto pela sua altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada tinha um defeito horrível: haviam-lhe extraído o olho esquerdo; a pálpebra descera mirrada, deixando, contudo, junto ao lacrimal, uma fístula continuamente porejante. Era essa pinta amarela sobre o fundo denegrido da olheira, era essa destilação incessante de pus que a tornava repulsiva aos olhos de toda a gente. Morava numa casa pequena, paga pelo filho único, operário numa oficina de alfaiate; ela lavava a roupa para os hospitais e dava conta de todo o serviço da casa inclusive cozinha. O filho, enquanto era pequeno, comia os pobres jantares feitos por ela, às vezes até no mesmo prato; à proporção que ia crescendo, ia-se-lhe a pouco e pouco manifestando na fisionomia a repugnância por essa comida; até que um dia, tendo já um ordenadozinho, declarou à mãe que, por conveniência do negócio, passava a comer fora... Ela fingiu não perceber a verdade, e resignou-se. Daquele filho vinha-lhe todo o bem e todo o mal. Que lhe importava o desprezo dos outros, se o seu filho adorado lhe apagasse com um beijo todas as amarguras da existência? Um beijo dele era melhor que um dia de sol, era a suprema carícia para o seu triste coração de mãe! Mas... os beijos foram escasseando também, com o crescimento do Antonico! Em criança ele apertava-a nos bracinhos e enchia-lhe a cara de beijos; depois, passou a beijá-la só na face direita, aquela onde não havia vestígios de doença; agora, limitava-se a beijar-lhe a mão! Ela compreendia tudo e calava-se. O filho não sofria menos. Quando em criança entrou para a escola pública da freguesia, começaram logo os colegas, que o viam ir e vir com a mãe, a chamá-lo - o filho da caolha. Aquilo exasperava-o; respondia sempre. Os outros riam-se e chacoteavam-no; ele queixava-se aos mestres, os mestres ralhavam com os discípulos, chegavam mesmo a castigá-los - mas a alcunha pegou, já não era só na escola que o chamavam assim. Na rua, muitas vezes, ele ouvia de uma ou de outra janela dizerem: o filho da caolha! Lá vai o filho da caolha! Lá vem o filho da caolha! Eram as irmãs dos colegas, meninas novas, inocentes e que, industriadas pelos irmãos, feriam o coração do pobre Antonico cada vez que o viam passar! As quitandeiras, onde iam comprar as goiabas ou as bananas para o lunch, aprenderam depressa a denominá-lo como os outros e, muitas vezes, afastando os pequenos que se aglomeravam ao redor delas, diziam, estendendo uma mancheia de araçás, com piedade e simpatia: - Taí, isso é pra o filho da caolha! O Antonico preferia não receber o presente a ouvi-lo acompanhar de tais palavras; tanto mais que os outros, com inveja, rompiam a gritar, cantando em coro, num estribilho já combinado: - Filho da caolha, filho da caolha! O Antonico pediu à mãe que o não fosse buscar à escola; e, muito vermelho, contou-lhe a causa; sempre que o viam aparecer à porta do colégio os companheiros murmuravam injúrias, piscavam os olhos para o Antonico e faziam caretas de náuseas! A caolha suspirou e nunca mais foi buscar o filho. Aos onze anos o Antonico pediu para sair da escola: levava a brigar com os condiscípulos, que o intrigavam e malqueriam. Pediu para entrar para uma oficina de marceneiro. Mas na oficina de marceneiro aprenderam depressa a chamá-lo - o filho da caolha, a humilhá-lo, como no colégio. Além de tudo, o serviço era pesado e ele começou a ter vertigens e desmaios. Arranjou então um lugar de caixeiro de venda; os seus ex-colegas agrupavam-se à porta, insultando-o, e o vendeiro achou prudente mandar o caixeiro embora, tanto que a rapaziada ia-lhe dando cabo do feijão e do arroz expostos à porta nos sacos abertos! Era uma contínua saraivada de cereais sobre o pobre Antonico! Depois disso passou um tempo em casa, ocioso, magro, amarelo, deitado pelos cantos, dormindo às moscas, sempre zangado e sempre bocejante! Evitava sair de dia e nunca, mas nunca, acompanhava a mãe; esta poupava-o: tinha medo de que o rapaz, num dos desmaios, lhe morresse nos braços, e por isso nem sequer o repreendia! Aos dezesseis anos, vendo-o mais forte, pediu e obteve-lhe, a caolha, um lugar numa oficina de alfaiate. A infeliz mulher contou ao mestre toda a história do filho e suplicou-lhe que não deixasse os aprendizes humilhá-lo; que os fizesse terem caridade! Antonico encontrou na oficina uma certa reserva e silêncio da parte dos companheiros; quando o mestre dizia: Sr. Antonico, ele percebia um sorriso mal oculto nos lábios dos oficiais; mas a pouco e pouco essa suspeita, ou esse sorriso, se foi desvanecendo, até que principiou a sentir-se bem ali. Decorreram alguns anos e chegou a vez de Antonico se apaixonar. Até aí, numa ou outra pretensão de namoro que ele tivera, encontrara sempre uma resistência que o desanimava, e que o fazia retroceder sem grandes mágoas. Agora, porém, a coisa era diversa: ele amava! amava como um louco a linda moreninha da esquina fronteira, uma rapariguinha adorável, de olhos negros como veludo e boca fresca como um botão de rosa. O Antonico voltou a ser assíduo em casa e expandia-se mais carinhosamente com a mãe; um dia, em que viu os olhos da morena fixarem os seus, entrou como um louco no quarto da caolha e beijou-a mesmo na face esquerda, num transbordamento de esquecida ternura! Aquele beijo foi para a infeliz uma inundação de júbilo! tornara a encontrar o seu querido filho! pôs-se a cantar toda a tarde, e nessa noite, ao adormecer, dizia consigo: - Sou muito feliz... o meu filho é um anjo! Entretanto, o Antonico escrevia, num papel fino, a sua declaração de amor à vizinha. No dia seguinte mandou-lhe cedo a carta. A resposta fez-se esperar. Durante muitos dias Antonico perdia-se em amarguradas conjeturas. Ao princípio pensava: - "É o pudor". Depois começou a desconfiar de outra causa; por fim recebeu uma carta em que a bela moreninha confessava consentir em ser sua mulher, se ele se separasse completamente da mãe! Vinham explicações confusas, mal alinhavadas: lembrava a mudança de bairro; ele ali era muito conhecido por filho da caolha, e bem compreendia que ela não se poderia sujeitar a ser alcunhada em breve de - nora da caolha, ou coisa semelhante! O Antonico chorou! Não podia crer que a sua casta e gentil moreninha tivesse pensamentos tão práticos! Depois o seu rancor voltou-se para a mãe. Ela era a causadora de toda a sua desgraça! Aquela mulher perturbara a sua infância, quebrara-lhe todas as carreiras, e agora o seu mais brilhante sonho de futuro sumia-se diante dela! Lamentava-se por ter nascido de mulher tão feia, e resolveu procurar meio de separar-se dela; considerar-se-ia humilhado continuando sob o mesmo teto; havia de protegê-la de longe, vindo de vez em quando vê-la à noite, furtivamente... Salvava assim a responsabilidade de protetor e, ao mesmo tempo, consagraria à sua amada a felicidade que lhe devia em troca do seu consentimento e amor... Passou um dia terrível; à noite, voltando para casa, levava o seu projeto e a decisão de o expor à mãe. A velha, agachada à porta do quintal, lavava umas panelas com um trapo engordurado. O Antonico pensou: "A dizer a verdade eu havia de sujeitar minha mulher a viver em companhia de... uma tal criatura?" Estas últimas palavras foram arrastadas pelo seu espírito com verdadeira dor. A caolha levantou para ele o rosto, e o Antonico, vendo-lhe o pus na face, disse: - Limpe a cara, mãe... Ela sumiu a cabeça no avental; ele continuou: - Afinal nunca me explicou bem a que é devido esse defeito! - Foi uma doença, - respondeu sufocadamente a mãe - é melhor não lembrar isso! - E é sempre a sua resposta: é melhor não lembrar isso! Por quê? - Porque não vale a pena; nada se remedeia... - Bem! agora escute: trago-lhe uma novidade: o patrão exige que eu vá dormir na vizinhança da loja... já aluguei um quarto: a senhora fica aqui e eu virei todos os dias a saber da sua saúde ou se tem necessidade de alguma coisa... É por força maior; não temos remédio senão sujeitar-nos!... Ele, magrinho, curvado pelo hábito de costurar sobre os joelhos, delgado e amarelo como todos os rapazes criados à sombra das oficinas, onde o trabalho começa cedo e o serão acaba tarde, tinha lançado naquelas palavras toda a sua energia, e espreitava agora a mãe com um olho desconfiado e medroso. A caolha levantou-se e, fixando o filho com uma expressão terrível, respondeu com doloroso desdém: - Embusteiro! o que você tem é vergonha de ser meu filho! Saia! que eu também já sinto vergonha de ser mãe de semelhante ingrato! O rapaz saiu cabisbaixo, humilde, surpreso da atitude que assumira a mãe, até então sempre paciente e cordata; ia com medo, maquinalmente, obedecendo à ordem que tão feroz e imperativamente lhe dera a caolha. Ela acompanhou-o, fechou com estrondo a porta, e vendo-se só, encostou-se cambaleante à parede do corredor e desabafou em soluços. O Antonico passou uma tarde e uma noite de angústia. Na manhã seguinte o seu primeiro desejo foi voltar à casa; mas não teve coragem; via o rosto colérico da mãe, faces contraídas, lábios adelgaçados pelo ódio, narinas dilatadas, o olho direito saliente, a penetrar-lhe até o fundo do coração, o olho esquerdo arrepanhado, murcho - e sujo de pus; via a sua atitude altiva, o seu dedo ossudo, de falanges salientes, apontando-lhe com energia a porta da rua; sentia-lhe ainda o som cavernoso da voz, e o grande fôlego que ela tomara para dizer as verdadeiras e amargas palavras que lhe atirara no rosto; via toda a cena da véspera e não se animava a arrostar com o perigo de outra semelhante. Providencialmente, lembrou-se da madrinha, única amiga da caolha, mas que, entretanto, raramente a procurava. Foi pedir-lhe que interviesse, e contou-lhe sinceramente tudo que houvera. A madrinha escutou-o comovida; depois disse: - Eu previa isso mesmo, quando aconselhava tua mãe a que te dissesse a verdade inteira; ela não quis, aí está! - Que verdade, madrinha? - Hei de dizer-te perto dela; anda, vamos lá! Encontraram a caolha a tirar umas nódoas do fraque do filho - queria mandar-lhe a roupa limpinha. A infeliz arrependera-se das palavras que dissera e tinha passado toda a noite à janela, esperando que o Antonico voltasse ou passasse apenas... Via o porvir negro e vazio e já se queixava de si! Quando a amiga e o filho entraram, ela ficou imóvel: a surpresa e a alegria amarraram-lhe toda a ação. A madrinha do Antonico começou logo: - O teu rapaz foi suplicar-me que te viesse pedir perdão pelo que houve aqui ontem e eu aproveito a ocasião para, à tua vista, contar-lhe o que já deverias ter-lhe dito! - Cala-te! - murmurou com voz apagada a caolha. - Não me calo! Essa pieguice é que te tem prejudicado! Olha! rapaz, quem cegou tua mãe foste tu! O afilhado tornou-se lívido; e ela concluiu: - Ah, não tiveste culpa! eras muito pequeno quando, um dia, ao almoço, levantaste na mãozinha um garfo; ela estava distraída, e antes que eu pudesse evitar a catástrofe, tu enterraste-lho pelo olho esquerdo! Ainda tenho no ouvido o grito de dor que ela deu! O Antonico caiu pesadamente de bruços, com um desmaio; a mãe acercou-se rapidamente dele, murmurando trêmula: - Pobre filho! vês? era por isto que eu não lhe queria dizer nada! *

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Estão apenas ensaiando Bernardo Carvalho

Estão apenas ensaiando. Ao mesmo tempo em que os dois atores avançam pelo palco, saindo das coxias à esquerda para o centro da cena, um homem entra na sala escura, e com ele uma nesga da luz das cinco pela fresta da porta que entreabriu ao fundo e que separa a platéia do hall e da rua, onde o dia segue o seu curso com um burburinho de buzinas, motores e sirenes. O diretor, na quinta fila, procura com a mão, tateando, a coxa de sua assistente, para lhe dizer alguma coisa ao ouvido, e o iluminador interrompe a piada que ia sussurrando ao técnico a seu lado, no mezanino, já que retomam a cena. Quando os dois atores colocam os pés de novo no palco, avançando das coxias à esquerda para o centro, e interrompendo também o que sussurravam um ao outro nos bastidores, para passar em alto e bom som ao diálogo que decoraram, o homem que acabou de entrar ao fundo é ainda menos que um vulto sem rosto, porque já não tem nem mesmo a nesga de luz das cinco para destacá-lo da penumbra, agora que a porta que separa a sala escura do hall e da rua se fechou. O diretor com a mão na coxa da assistente, depois de lhe sussurrar qualquer coisa ao ouvido, que a faz rir baixinho, controlada, espera ansioso, e pela enésima vez, que a fala seja dita pelo ator com a entonação desejada, e o iluminador, no mezanino, aguarda por seu turno uma nova interrupção - no fundo, mesmo que inconscientemente, torce por mais um fracasso da interpretação, para poder terminar de uma vez por todas a piada que contava ao técnico. Um ator diz ao outro, no centro do palco: "Você é o malfeitor; e por isso preciso saber quem é você, onde está, de onde vem, do que é capaz para ter tamanho poder e me provocar sem prevenir, devastando o meu pasto verdejante, e minando, para derrubá-lo, o meu muro de arrimo." E é quando o outro, que embora sem a foice ou o manto (estão apenas ensaiando) responde pela morte, vai abrindo a boca, que o diretor mais uma vez, tirando a mão da coxa da assistente, interrompe a cena com um gesto, para perguntar num tom propositalmente inaudível, de tão irritado que está, quantas vezes mais vai ter de explicar. Ele repete, como se falasse para dentro, que se trata de um texto do século XV, que o humilde lavrador invoca a morte (aqui representada por um homem) com as palavras que lhe restam como último recurso, quer que ela se compadeça dele e lhe devolva a mulher adorada, vítima das atrocidades da guerra. O diretor repete irritado que falta vigor à interpretação do ator, e desespero, não parece que o humilde lavrador esteja realmente sofrendo ou indignado pela injustiça da morte da mulher na flor da idade. Diz isso aos dois atores e depois, enquanto eles voltam para as coxias, sussurra a mesma coisa ao ouvido da assistente, arrematando com uma gracinha que a faz sacudir num risinho sincopado. De volta às coxias, o ator que interpreta o humilde lavrador aproveita para retomar com o outro que interpreta a morte o sussurro que havia interrompido. Desanca o diretor, diz que não dá para mostrar desespero com um texto daqueles, inverossímil, ninguém vai falar com a morte daquele jeito depois de perder a mulher de uma maneira violenta. Resmunga baixinho qualquer coisa sobre o tipo de representação que aquela cena exige, na sua opinião, e que tem a ver com um certo distanciamento. De repente, no meio da frase sussurrada, olhando o relógio (não precisa tirá-lo, estão apenas ensaiando), exclama a hora num murmúrio, fala qualquer coisa sobre o atraso da própria mulher, que ela já devia ter chegado, e ao mesmo tempo em que diz isso, o iluminador no mezanino tenta inutilmente sussurrar o final da sua piada, porque mal esboça o desenlace cômico e os dois atores já estão de volta ao palco, seguindo os sinais mudos da assistente do diretor, e o homem ao fundo da sala, após uns instantes parado indistinto dentro da sombra, já avança alguns passos pelo corredor lateral da platéia. O ator que interpreta o humilde lavrador vira-se para o outro, que interpreta a morte, embora sem foice ou manto (estão apenas ensaiando), e vai abrir a boca quando percebe que, em vez de olhá-lo, o diretor, sempre com a mão na coxa da assistente, cochicha algo ao seu ouvido que a faz levar a mão aos lábios para impedir que o riso transborde. Percebe o diretor, que está no centro da sala, na quinta fila, mas não o vulto que avança pelo lado, na penumbra. Irritado, o ator repete a cena idêntica à que tinha feito antes, declamando sua fala com o mesmo distanciamento que lhe parece tão apropriado, ao que o diretor enfurecido se levanta e, balançando os braços e sacudindo a cabeça, mudo, dá a entender que está péssimo. Com a nova interrupção, o iluminador trata de retomar do início a piada que contava ao técnico, porque, a cada vez que a retoma, volta sempre ao começo com medo de que a quebra interfira no efeito cômico. Seu sussurro agora é mais corrido, tentando fazer caber a piada inteira no espaço de tempo entre a interrupção do diretor e o retorno dos atores ao palco. Nas coxias, enquanto olha o relógio (estão apenas ensaiando), o ator que faz o humilde lavrador repete baixinho ao outro, que faz a morte, que a mulher a esta altura já devia ter chegado, como tinham combinado, porque ele próprio lhe dissera que tudo terminaria às cinco, não podia imaginar que o diretor se revelasse um tamanho idiota justamente com esse texto inverossímil, e que o ensaio se arrastasse tanto. A assistente dá o sinal mudo para que recomecem e o iluminador interrompe inconformado, mais uma vez, já quase no fim, a piada que sussurrava ao técnico no mezanino, e que corre o risco de perder a graça pela repetição. O homem que vinha avançando lentamente pelo corredor lateral agora pára à altura da quinta fila ao ver os dois atores de novo no palco. O humilde lavrador vira-se para a morte e diz: "Você é o malfeitor." O diretor pede que parem. O tom compreensivo de sua voz é apenas um disfarce que o ator está cansado de conhecer e em geral precede uma crise de nervos. O diretor está tentando se controlar, sussurra: "Será que você não compreende? Ele perdeu a mulher, na flor da idade, está desesperado, indignado contra a injustiça da morte e dos homens e por isso a invoca, ainda acredita que pode convencê-la a lhe devolver a mulher adorada. Ninguém diz isso com distanciamento. Os dois saem do palco. Olhando o relógio, o humilde lavrador sussurra de novo à morte sem foice ou manto algo sobre o atraso da mulher, que a esta altura já devia estar sentada na platéia. Não entende por que ela ainda não chegou, como se já não bastasse o atraso do ensaio, graças à imbecilidade do diretor. E enquanto o humilde lavrador sussurra a sua indignação, o homem que antes era apenas um vulto já avança pela quinta fila, agora de lado, na direção do diretor e de sua assistente, que só o vêem quando já está a apenas algumas poltronas deles. Senta-se para se fazer menos notado quando a assistente já está com o braço levantado, indicando aos atores que podem recomeçar, e enquanto ele lhes revela num murmúrio o que veio anunciar sobre o mundo do lado de fora, e que os petrifica, o iluminador no mezanino se aproxima num sussurro da conclusão da piada. O humilde lavrador de relógio e a morte sem foice ou manto (estão apenas ensaiando) entram no palco. O lavrador vira-se para a morte e reinicia a sua ladainha com a mesma entonação e o distanciamento que lhe parecem mais apropriados. Mas desta vez, para sua surpresa, o diretor não o interrompe, porque tem os olhos arregalados e está lívido enquanto o homem, antes apenas um vulto, lhe sussurra algo ao ouvido. E ao ver o homem que sussurra ao ouvido do diretor, e o olhar deste e de sua assistente, que pela primeira vez não o interrompem, mas permanecem a encará-lo com os olhos aterrados e arregalados (a assistente com os olhos cheios de lágrimas diante da súplica que o lavrador faz à morte) enquanto escutam o que o outro lhes diz ao ouvido, curvado na poltrona ao lado, embora a entonação no palco tenha sido a mesma e devesse portanto, pela lógica, ser mais uma vez interrompida, o próprio ator interrompe a ação e por fim compreende aterrorizado e a um só tempo a sinistra coincidência da cena e do momento, o que aquele vulto veio anunciar sobre o mundo do lado de fora, com buzinas, motores e sirenes; compreende por que a mulher não apareceu e afinal o que sente o humilde lavrador; compreende por que o diretor não o interrompeu desta vez, porque por fim esteve perfeito na pele do lavrador em sua súplica diante da morte; compreende que por um instante encarnou de fato o lavrador, que involuntária e inconscientemente, por uma trapaça do destino, tornou-se o próprio lavrador pelo que aquele vulto veio anunciar; compreende tudo num segundo, antes mesmo de saber dos detalhes do acidente que a matou atravessando a rua a duas quadras do teatro, diante dos olhos arregalados do diretor e da assistente, sob as gargalhadas incontidas do iluminador e do técnico no mezanino, chegando ao fim da piada.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Pai contra mãe Machado de Assis

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo oficio. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras. O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também, à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado. Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcassem aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando. Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha a promessa: "gratificar-se-a generosamente", -ou "receberá uma boa gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse. Ora, pegar escravos fugidios era um oficio do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal oficio por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem. Cândido Neves, - em família, Candinho, - é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o. ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum a tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade, fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao ministério do império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos. Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador de oficio. Depois de várias tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito. Contava trinta anos, Clara vinte e dois. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras. O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi - para lembrar o primeiro oficio do namorado, - tal foi a página inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas. - Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto. - Não, defunto não; mas é que... Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora viesse agravar a necessidade. - Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha. - Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara. Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi. A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço. Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma coisa e outra; não tinha emprego certo. Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia, porém, deu sinal de si a criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos. - Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe. A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade. - Vocês verão a triste vida, suspirava ela. - Mas as outras crianças não nascem também? perguntou Clara. - Nascem, e acham sempre alguma coisa certa que comer, ainda que pouco... - Certa como? - Certa, um emprego, um oficio, uma ocupação, mas em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem, gasta o tempo? Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero, mas muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer. - A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau... - Bem sei, mas somos três. - Seremos quatro. - Não é a mesma coisa. - Que quer então que eu faça, além do que faço? - Alguma coisa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu, é vaga. Você passa semanas sem vintém. - Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo. Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado. Cândido Neves perdera já o oficio de entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de coisas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso. Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão. Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelos aluguéis. Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os parentes do homem. - É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o equívoco e suas conseqüências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro emprego. Cândido quisera efetivamente fazer outra coisa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de oficio; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa. A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser mais amargos. - Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca! Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a dois jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio: - Titia não fala por mal, Candinho. - Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem, seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de aumentar? E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua. Enfim... Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor, - crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dois foi interrompida por alguém que batia à porta da rua. - Quem é? perguntou o marido. - Sou eu. Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse. - Não é preciso... - Faça favor. O credor entrou e recusou sentar-se; deitou os olhos à mobília para ver se daria algo à penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais. - Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo. Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas a contava. Demais, recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não alcançando mais que a ordem de mudança. A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de alcançar aposento para os três em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio. Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dois, para que Cândido Neves, no desespero da crise, começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que cuidassem. Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dois dias depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à rua dos Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria. Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite seguinte. Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos. As gratificações pela maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela rua e largo da Carioca, rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não achou; apenas um farmacêutico da rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata. Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação do menino; seria a maior miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da rua dos Barbonos. Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos certo é que o agasalhava muito, que o beijava, que lhe cobria o rosto para preservá-lo do sereno. Ao entrar na rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo. - Hei de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele. Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavam aquela à rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na direção do largo da Ajuda, viu do lado oposto, um vulto de mulher: era a mulata fugida. Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, a desceu eie também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viria buscá-la sem falta. -Mas... Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até o ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulata fujona. - Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio. Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus. - Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei sua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço! - Siga! repetiu Cândido Neves. - Me solte! - Não quero demoras; siga! Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoites, - coisa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoites. - Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Cândido Neves. Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes coisas. Foi arrastando a escrava pela rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor. - Aqui está a fujona, disse Cândido Neves. - É ela mesma. - Meu senhor! - Anda, entra... Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinqüenta mil-réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou. O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as conseqüências do desastre. Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo, com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto. - Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Alguma coisa urgentemente João Gilberto Noll

Os primeiros anos de vida suscitaram em mim o gosto da aventura. O meu pai dizia não saber bem o porquê da existência e vivia mudando de trabalho, de mulher e de cidade. A característica mais marcante do meu pai era a sua rotatividade. Dizia-se filósofo sem livros, com uma única fortuna: o pensamento. Eu, no começo, achava meu pai tão-só um homem amargurado por ter sido abandonado por minha mãe quando eu era de colo. Morávamos então no alto da Rua Ramiro Barcelos, em Porto Alegre, meu pai me levava a passear todas manhãs na Praça Júlio de Castilhos e me ensinava os nomes das árvores, eu não gostava de ficar só nos nomes, gostava de saber as características de cada vegetal, a região de origem. Ele me dizia que o mundo não era só aquelas plantas, era também as pessoas que passavam e as que ficavam e que cada um tem o seu drama. Eu lhe pedia colo. Ele me dava e assobiava uma canção medieval que afirmava ser a sua preferida. No colo dele eu balbuciava uns pensamentos perigosos: — Quando é que você vai morrer? — Não vou te deixar sozinho, filho! Falava-me com o olhar visivelmente emocionado e contava que antes me ensinaria a ler e escrever. Ele fazia questão de esquecer que eu sabia de tudo o que se passava com ele. Pra que ler? — eu lhe perguntava. Pra descrever a forma desta árvore — respondia-me um pouco irritado com minha pergunta. Mas logo se apaziguava. — Quando você aprender a ler vai possuir de alguma forma todas as coisas, inclusive você mesmo. No final de 1969 meu pai foi preso no interior do Paraná. (Dizem que passava armas a um grupo não sei de que espécie.) Tinha na época uma casa de caça e pesca em Ponta Grossa e já não me levava a passear. No dia em que ele foi preso, eu fui arrastado para fora da loja por uma vizinha de pele muito clara, que me disse que eu ficaria uns dias na casa dela, que o meu pai iria viajar. Não acreditei em nada mas me fiz de crédulo como convinha a uma criança. Pois o que aconteceria se eu lhe dissesse que tudo aquilo era mentira? Como lidar com uma criança que sabe? Puseram-me num colégio interno no interior de São Paulo. O padre-diretor me olhou e afirmou que lá eu seria feliz. — Eu não gosto daqui. — Você vai se acostumar e até gostar. Os colegas me ensinaram a jogar futebol, a me masturbar e a roubar a comida dos padres. Eu ficava de pau duro e mostrava aos colegas. Mostrava as maçãs e os doces do roubo. Contava do meu pai. Um deles me odiava. O meu pai foi assassinado, me dizia ele com ódio nos olhos. O meu pai era bandido, ele contava espumando o coração. Eu me calava. Pois se referir ao meu pai presumia um conhecimento que eu não tinha. Uma carta chegou dele. Mas o padre-diretor não me deixou lê-la, chamou-me no seu gabinete e contou que o meu pai ia bem. — Ele vai bem. Eu agradeci como normalmente fazia em qualquer contato com o padre-diretor e saí dizendo no mais silencioso de mim: — Ele vai bem. O menino que me odiava aproximou-se e falou que o pai dele tinha levado dezessete tiros. Nas aulas de religião o padre Amâncio nos ensinava a rezar o terço e a repetir jaculatórias. — Salve Maria! — ele exclamava a cada início de aula. — Salve Maria! — os meninos respondiam em uníssono. Quando cresci meu pai veio me buscar e ele estava sem um braço. O padre-diretor me perguntou: — Você quer ir? Olhei para meu pai e disse que eu já sabia ler e escrever. — Então você saberá de tudo um dia — ele falou. O menino que me odiava ficou na porta do colégio quando da nossa partida. Ele estava com o seu uniforme bem lavado e passado. Na estrada para São Paulo paramos num restaurante. Eu pedi um conhaque e meu pai não se espantou. Lia um jornal. Em São Paulo fomos para um quarto de pensão onde não recebíamos visitas. — Vamos para o Rio — ele me comunicou sentado na cama e com o braço que lhe restava sobre as pernas. No Rio fomos para um apartamento na Avenida Atlântica. De amigos , ele comentou. Mas embora o apartamento fosse bem mobiliado, ele vivia vazio. — Eu quero saber — eu disse para o meu pai. — Pode ser perigoso — ele respondeu. E desliguei a televisão como se pronto para ouvir. Ele disse não. Ainda é cedo. E eu já tinha perdido a capacidade de chorar. Eu procurei esquecer. Meu pai me pôs num colégio em Copacabana e comecei a crescer como tantos adolescentes do Rio. Comia a empregada do Alfredinho, um amigo do colégio, e, na praia, precisava sentar às vezes rapidamente porque era comum ficar de pau duro à passagem de alguém. Fingia então que observava o mar, a performance de algum surfista. Não gostava de constatar o quanto me atormentavam algumas coisas. Até meu pai desaparecer novamente. Fiquei sozinho no apartamento da Avenida Atlântica sem que ninguém tomasse conhecimento. E eu já tinha me acostumado com o mistério daquele apartamento. Já não queria saber a quem pertencia, porque vivia vazio. O segredo alimentava o meu silêncio. E eu precisava desse silêncio para continuar ali. Ah, me esqueci de dizer que meu pai tinha deixado algum dinheiro no cofre. Esse dinheiro foi o suficiente para sete meses. Gastava pouco e procurava não pensar no que aconteceria quando ele acabasse. Sabia que estava sozinho, com o único dinheiro acabando, mas era preciso preservar aquele ar folgado dos garotos da minha idade, falsificar a assinatura do meu pai sem remorsos a cada exigência do colégio. Eu não dava bola para a limpeza do apartamento. Ele estava bem sujo. Mas eu ficava tão pouco em casa que não dava importância à sujeira, aos lençóis encardidos. Tinha bons amigos no colégio, duas ou três amigas que me deixavam a mão livre para passá-la onde eu bem entendesse. Mas o dinheiro tinha acabado e eu estava caminhando pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana tarde da noite, quando notei um grupo de garotões parados na esquina da Barão de Ipanema, encostados num carro e enrolando um baseado. Quando passei, eles me ofereceram. Um tapinha? Eu aceitei. Um deles me disse olha ali, não perde essa, cara! Olhei para onde ele tinha apontado e vi um Mercedes parado na esquina com um homem de uns trinta anos dentro. Vai lá, eles me empurraram. E eu fui. — Quer entrar? — o homem me disse. Eu manjei tudo e pensei que estava sem dinheiro. — Trezentas pratas — falei. Ele abriu a porta e disse entra, o carro subiu a Niemeyer, não havia ninguém no morro em que o homem parou. Uma fita tocava acho que uma música clássica e o homem me disse que era de São Paulo. Me ofereceu cigarro, chiclete e começou a tirar a minha roupa. Eu pedi antes o dinheiro. Ele me deu as três notas de cem abertas, novinhas. E eu nu e o homem começando a pegar em mim, me mordia de ficar marca, quase me tira um pedaço da boca. Eu tinha um bom físico e isso excitava ele, deixava o homem louco. A fita tinha terminado e só se ouvia um grilo. — Vamos — disse o homem ligando o carro. Eu tinha gozado e precisei me limpar com a sunga. No dia seguinte meu pai voltou, apareceu na porta muito magro, sem dois dentes. Resolvi contar: — Eu ontem me prostituí, fui com um homem em troca de trezentas pratas. Meu pai me olhou sem surpresas e disse que eu procurasse fazer outra história da minha vida. Ele então sentou-se e foi incisivo: — Eu vim para morrer. A minha morte vai ser um pouco badalada pelos jornais, a polícia me odeia, há anos me procura. Vão te descobrir mas não dê uma única declaração, diga que não sabe de nada. O que e verdade. — E se me torturarem? — perguntei. — Você é menor e eles estão precisando evitar escândalos. Eu fui para a janela pensando que ia chorar, mas só consegui ficar olhando o mar e sentir que precisava fazer alguma coisa urgentemente. Virei a cabeça e vi que meu pai dormia. Aliás, não foi bem isso o que pensei, pensei que ele já estivesse morto e fui correndo segurar o seu único pulso. O pulso ainda tinha vida. Eu preciso fazer alguma coisa urgentemente, a minha cabeça martelava. É que eu não tinha gostado de ir com aquele homem na noite anterior, meu pai ia morrer e eu não tinha um puto centavo. De onde sairia a minha sobrevivência? Então pensei em denunciar meu pai para a polícia para ser recebido pelos jornais e ganhar casa e comida em algum orfanato, ou na casa de alguma família. Mas não, isso eu não fiz porque gostava do meu pai e não estava interessado em morar em orfanato ou com alguma família, e eu tinha pena do meu pai deitado ali no sofá, dormindo de tão fraco. Mas precisava me comunicar com alguém, contar o que estava acontecendo. Mas quem? Comecei a faltar às aulas e ficava andando pela praia, pensando o que fazer com meu pai que ficava em casa dormindo, feio e velho. E eu não tinha arranjado mais um puto centavo. Ainda bem que tinha um amigo vendedor daquelas carrocinhas da Geneal que me quebrava o galho com um cachorro-quente. Eu dizia bota bastante mostarda, esquenta bem esse pão, mete molho. Ele obedecia como se me quisesse bem. Mas eu não conseguia contar para ele o que estava acontecendo comigo. Eu apenas comentava com ele a bunda das mulheres ou alguma cicatriz numa barriga. É cesariana, ele ensinava. E eu fingia que nunca tinha ouvido falar em cesariana, e aguçava seu prazer de ensinar o que era cesariana. Um dia ele me perguntou: — Você tem quantos irmãos? Eu respondi sete. — O teu pai manda brasa, hein? Fiquei pensando no que responder, talvez fosse a ocasião de contar tudo pra ele, admitir que eu precisava de ajuda. Mas o que um vendedor da Geneal poderia fazer por mim senão contar para a polícia? Então me calei e fui embora. Quando cheguei em casa entendi de vez que meu pai era um moribundo. Ele já não acordava, tinha certos espasmos, engrolava a língua e eu assistia. O apartamento nessa época tinha um cheiro ruim, de coisa estragada. Mas dessa vez eu não fiquei assistindo e procurei ajudar o velho. Levantei a cabeça dele, botei um travesseiro embaixo e tentei conversar com ele. — O que você está sentindo? — perguntei. — Já não sinto nada — ele respondeu com uma dificuldade que metia medo. — Dói? — Já não sinto dor nenhuma. De vez em quando lhe trazia um cachorro-quente que meu amigo da Geneal me dava, mas meu pai repelia qualquer coisa e expulsava os pedaços de pão e salsicha para o canto da boca. Numa dessas ocasiões em que eu limpava os restos de pão e salsicha da sua boca com um pano de prato a campainha tocou. A campainha tocou. Fui abrir a porta com muito medo, com o pano de prato ainda na mão. Era o Alfredinho. — A diretora quer saber por que você nunca mais apareceu no colégio — ele perguntou. Falei pra ele entrar e disse que eu estava doente, com a garganta inflamada, mas que eu voltaria pro colégio no dia seguinte porque já estava quase bom. Alfredinho sentiu o cheiro ruim da casa, tenho certeza, mas fez questão de não demonstrar nada. Quando ele sentou no sofá e que eu notei como o sofá estava puído e que Alfredinho sentava nele com certo cuidado, como se o sofá fosse despencar debaixo da bunda, mas ele disfarçava e fazia que não notava nada de anormal, nem a barata que descia a parede à direita, nem os ruídos do meu pai que às vezes se debatia e gemia no quarto ao lado. Eu sentei na poltrona e fiquei falando tudo que me vinha à cabeça para distraí-lo dos ruídos do meu pai, da barata na parede, do puído do sofá, da sujeira e do cheiro do apartamento, falei que nos dias da doença eu lia na cama o dia inteiro umas revistinhas de sacanagem, eram dinamarquesas as tais revistinhas, e sabe como é que eu consegui essas revistinhas?, roubei no escritório do meu pai, estavam escondidas na gaveta da mesa dele, não te mostro porque emprestei pra um amigo meu, um sacana que trabalha numa carrocinha da Geneal aqui na praia, ele mostrou pra um amigo dele que bateu uma punheta com a revistinha na mão, tem uma mulher com as pernas assim e a câmera pega a foto bem daqui, bem daqui cara, ó como os caras tiraram a foto da mulher, ela assim e a câmera pega bem desse ângulo aqui, não é de bater uma punheta mesmo?, a câmera pertinho assim e a mulher nua e com as pernas desse jeito, não tou mentindo não cara, você vai ver, um dia você vai ver, só que agora a revistinha não tá comigo, por isso que eu digo que ficar doente de vez em quando é uma boa, eu o dia inteiro deitado na cama lendo revistinha de sacanagem, sem ninguém pra me aporrinhar com aula e trabalho de grupo, só eu e as minhas revistinhas, você precisava ver, cara, você também ia curtir ficar doente nessa de revistinha de sacanagem, ninguém pra me encher o saco, ninguém cara, ninguém. Aí eu parei de falar e o Alfredinho me olhava como se eu estivesse falando coisas que assustassem ele, ficou me olhando com uma cara de babaca, meio assim desconfiado, e nem sei bem o que passou pela cabeça dele quando meu pai lá no quarto me chamou, era a primeira vez que meu pai me chamava pelo nome, eu mesmo levei um susto de ouvir meu pai me chamar pelo meu nome, e me levantei meio apavorado porque não queria que ninguém soubesse do meu pai, do meu segredo, da minha vida, eu queria que o Alfredinho fosse embora e que não voltasse nunca mais, então eu me levantei e disse que tinha que fazer uns negócios, e ele foi caminhando de costas em direção à porta, como se estivesse com medo de mim, e eu dizendo que amanhã eu vou aparecer no colégio, pode dizer pra diretora que amanhã eu converso com ela, e o meu pai me chamou de novo com sua voz de agonizante, o meu pai me chamava pela primeira vez pelo meu nome, e eu disse tchau até amanhã, e o Alfredinho disse tchau até amanhã, e eu continuava com o pano de prato na mão e fechei a porta bem ligeiro porque não agüentava mais o Alfredinho ali na minha frente não dizendo nem uma palavra, e fui correndo pro quarto e vi que o meu pai estava com os olhos duros olhando pra mim, e eu fiquei parado na porta do quarto pensando que eu precisava fazer alguma coisa urgentemente.(CEM MELHORES CONTOS BRASILEIROS DO SÉCULO) FONTE:http://www.releituras.com/joaognoll_menu.asp

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Por Um Pé de Feijão Antônio Torres

Nunca mais haverá no mundo um ano tão bom. Pode até haver anos melhores, mas jamais será a mesma coisa. Parecia que a terra (á nossa terra, feinha, cheia de altos e baixos, esconsos, areia, pedregulho e massapê) estava explodindo em beleza. E nós todos acordávamos cantando, muito antes do sol raiar, passávamos o dia trabalhando e cantando e logo depois do pôr-do-sol desmaiávamos em qualquer canto e adormecíamos, contentes da vida. Até me esqueci da escola, a coisa que mais gostava. Todos se esqueceram de tudo. Agora dava gosto trabalhar. Os pés de milho cresciam desembestados, lançavam pendões e espigas imensas. Os pés de feijão explodiam as vagens do nosso sustento, num abrir e fechar de olhos. Toda a plantação parecia nos compreender, parecia compartilhar de um destino comum, uma festa comum, feito gente. O mundo era verde. Que mais podíamos desejar? E assim foi até a hora de arrancar o feijão e empilhá-lo numa seva tão grande que nós, os meninos, pensávamos que ia tocar nas nuvens. Nossos braços seriam bastantes para bater todo aquele feijão? Papai disse que só íamos ter trabalho daí a uma semana e aí é que ia ser o grande pagode. Era quando a gente ia bater o feijão e iria medi-lo, para saber o resultado exato de toda aquela bonança. Não faltou quem fizesse suas apostas: uns diziam que ia dar trinta sacos, outros achavam que era cinqüenta, outros falavam em oitenta. No dia seguinte voltei para a escola. Pelo caminho também fazia os meus cálculos. Para mim, todos estavam enganados. Ia ser cem sacos. Daí para mais. Era só o que eu pensava, enquanto explicava à professora por que havia faltado tanto tempo. Ela disse que assim eu ia perder o ano e eu lhe disse que foi assim que ganhei um ano. E quando deu meio-dia e a professora disse que podíamos ir, saí correndo. Corri até ficar com as tripas saindo pela boca, a língua parecendo que ia se arrastar pelo chão. Para quem vem da rua, há uma ladeira muito comprida e só no fim começa a cerca que separa o nosso pasto da estrada. E foi logo ali, bem no comecinho da cerca, que eu vi a maior desgraça do mundo: o feijão havia desaparecido. Em seu lugar, o que havia era uma nuvem preta, subindo do chão para o céu, como um arroto de Satanás na cara de Deus. Dentro da fumaça, uma língua de fogo devorava todo o nosso feijão. Durante uma eternidade, só se falou nisso: que Deus põe e o diabo dispõe. E eu vi os olhos da minha mãe ficarem muito esquisitos, vi minha mãe arrancando os cabelos com a mesma força com que antes havia arrancado os pés de feijão: - Quem será que foi o desgraçado que fez uma coisa dessas? Que infeliz pode ter sido? E vi os meninos conversarem só com os pensamentos e vi o sofrimento se enrugar na cara chamuscada do meu pai, ele que não dizia nada e de vez em quando levantava o chapéu e coçava a cabeça. E vi a cara de boi capado dos trabalhadores e minha mãe falando, falando, falando e eu achando que era melhor se ela calasse a boca. À tardinha os meninos saíram para o terreiro e ficaram por ali mesmo, jogados, como uns pintos molhados. A voz da minha mãe continuava balançando as telhas do avarandado. Sentado em seu banco de sempre, meu pai era um mudo. Isso nos atormentava um bocado. Fui o primeiro a ter coragem de ir até lá. Como a gente podia ver lá de cima, da porta da casa, não havia sobrado nada. Um vento leve soprava as cinzas e era tudo. Quando voltei, papai estava falando. - Ainda temos um feijãozinho-de-corda no quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o milho para quebrar, despalhar, bater e encher o paiol, não temos? Como se diz, Deus tira os anéis, mas deixa os dedos. E disse mais: - Agora não se pensa mais nisso, não se fala mais nisso. Acabou. Então eu pensei: O velho está certo. Eu já sabia que quando as chuvas voltassem, lá estaria ele, plantando um novo pé de feijão. ( CEM MELHORES CONTOS BRASILEIROS DO SÉCULO) FONTE:http://www.releituras.com/antoniotorres_menu.asp

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Toda Lana Turner tem seu Johnny Stompanato Sonia Coutinho

O material desta história: basicamente, duas mulheres. Capazes, no entanto, de se multiplicarem infinitamente. São Lana Turner e uma outra, que se apresenta sem nome, sem rosto e sem biografia, a não ser dados fragmentários, vagas insinuações. Alguém que talvez nem seja uma mulher, mas sim um espelho, embora fosco. Ou um ventríloquo, que fala apenas através da imagem da atriz, o seu boneco. Não se enganem, porém: o único personagem verdadeiro, o ponto de referência para se poder entrançar os fios díspares desta trama, formando um tapete, a tela em branco que serve para o desdobramento ilimitado do sonho, portanto da realidade, este personagem sou eu. Em outras palavras, Lana Turner. (Lana, uma das primeiras grandes estrelas, quando surgia o star-system de Hollywood: sem nenhuma tradição ou modelo a serem seguidos, uma figura de ruptura na sociedade americana da época, com um papel ou um poder "de homem". Lana para além da própria Lana, o símbolo que ela foio mito que se criou em torno dela: deusa ou demônio, a vamp e seu it. O que de Lana foi apresentado para o consumo de milhares de pessoas desejosas de entrever - fosse para idolatrar, destruir ou devorar - os bastidores de uma "vida glamourosa"; em grande estilo, a "felicidade" e a "dor".) Pois Lana Turner, como Madame Bovary para Flaubert, Lana Turner c'est moi. Foi o que também pensou a segunda mulher, a outra, o espelho. (Chama-se Melissa? Ou será Teresa? Quem sabe Joaquina? Dorotéia?) Folheava uma revista, na varandinha de seu apartamento, quando encontrou, com um repentino susto de reconhecimento, com uma estranha e cúmplice compreensão (ela, independente, mitificada, distorcida), o retrato não muito antigo de Lana, numa reportagem nostálgica sobre grandes estrelas do passado. Sim, aqui estão a pele muito bronzeada pelo sol das piscinas de Beverly Hills - ou das praias da Zona Sul - as unhas vermelhas e compridas, o cabelo platinado e, no rosto, vestígios de beleza e as marcas do tempo. Mas, sobretudo, o sorriso de Lana, o seu sorriso de atriz, quase um esgar. Um sorriso em que se misturam ironia e dor e desafio e força e patética impotência, o sorriso heróico de uma sobrevivente. De criatura disposta, talvez por não haver outro jeito, a levar o espetáculo até o fim: the show must go on. (Do que é feita uma vida humana senão de pequenos ritos, cerimônias e celebrações?) Numa nevoenta tarde de sábado, a observar esgarçadas nuvens que se despejam sobre as encostas arborizadas do Corcovado, defronte, Melissa revê - eu revelo -, numa vertigem de cenas históricas, o parentesco e as diferenças entre ela e Lana Turner; a partir da colonização americana por puritanos anglo-saxões e da vinda para o Brasil de portugueses degredados, com sangue mouro. Como ponte entre dois hemisférios, ligando misteriosamente Hollywood, a Califórnia do antigo boom de ouro, ao ouro mineiro que os inconfidentes reivindicaram, sorri enigmático na revista (e na vida) o rosto de Lana Turner (o de Melissa, o meu). A reportagem lembra a trajetória gloriosa e sofrida da atriz, seus vários maridos, uma carreira movimentada (psicóloga? publicitária? jornalista? atriz mesmo?) e muitas viagens, incluindo umas férias no Havaí, em companhia de uma amiga. Mais precisamente, em Honolulu, na praia de Waikiki, onde se descobriu grávida do segundo marido, o trompetistaArtie Shaw, já depois de estarem separados. "O que resultou num aborto e em novas infelicidades", acrescenta a matéria, baseada no livro autobiográfico Lana, the lady, the legend, the future. O jornalista explica que, já no primeiro casamento, com o advogado Greg Bautzer, ela não sentiu nenhum prazer, ao "perder a virgindade". Ele cita palavras de Lana: "Eu não tinha idéia de como devia agir. O ato em si doeu como diabo e devo confessar que não senti nenhum tipo de prazer. Mas gostava de ter Greg perto de mim e 'pertencer' a ele, afinal." Foi no Hotel Toriba, em Campos doJordão, lembra Melissa. E retifica a reportagem: não chegou sequer a perder a virgindade naquela lua-de-mel, os dois tão desajeitados. Dor sentiu, confirma: teria um estreitamento vaginal? um hímen demasiado resistente? Mas não se falava dessas coisas, naquele tempo, e então tudo foi se ajeitando, ou se destruindo, em silêncio. Lana, garante o repórter, só atingiu a maturidade sexual por volta dos 40 anos, ao cabo de um aprendizado com um total de cerca de 18 homens - o que, ele acrescenta, já parece um número modesto, para os padrões atuais. A conclusão foi tirada, explica, a partir de indicações implícitas, porque o assunto não era abordado diretamente. A matéria adianta que as dificuldades emocionais de Lana resultaram, provavelmente, de uma sucessão de traumas infantis. "Quando tinha dez anos, seu pai foi assassinado num beco escuro." Segue-se a declaração da atriz: "Quando o vi no caixão, fiquei horrorizada." Trauma, caixão, pai, vai lendo Melissa, com um calafrio. Mais que o encadeamento dos fatos expostos, são as palavras da reportagem que estabelecem a estranha conexão entre ela e Lana Turner, como um código a ser decifrado. A impressão se acentua no parágrafo seguinte, uma transcrição da "ficha psicológica" de Lana Turner mantida pelo estúdio: "Julia Jean Mildred Frances Turner, nascida em 8 de fevereiro de 1920. Confusa, desprotegida. Insegura desde a infância, quando atravessou períodos de opressão física, mental e moral, pelos quais procurou compensação na vida adulta. Sua afetividade, uma sucessão de tentativas frustradas de estabilização. A filha, Cheryl, carregou a mãe como uma carga emocional negativa. Confusa. Desprotegida. E, embora o ano fosse outro, a data de nascimento era a mesma. Como se existisse, embaixo da história de Lana Turner, uma outra, paralela, embutida - a sua, a minha. Estará Melissa/estarei eu enlouquecendo? Teremos escolhido, em nossa paranóia, em vez do habitual Napoleão Bonaparte, Lana Turner como alter-ego? Melissa (Erica?) corre ao banheiro, perscruta no espelho, com renovada perplexidade, o próprio rosto. Ela, Lana Turner. Mas não propriamente uma atriz, mais para trapezista ou bailarina da corda bamba. Sorri para ela, no espelho, um rosto sem nenhuma inocência, mas ao qual o tempo conferiu um toque de pureza cínica. Até onde posso ir, até onde irei, questiona-se Melissa, estremecendo. Porque os anos tinham passado, como um vento frio. E, entre maridos, viagens, uma carreira movimentada, tragédias - ah, tantas coisas se haviam tornado, de repente, definitivas. Amores perdidos, aventuras não vividas e, o que é pior, não mais desejadas. De volta à cadeira de lona da varanda, bebericando um uísque, Melissa (Dora?) lê na reportagem, logo adiante, um confortador comentário de Lana: "Não tive uma vida fácil mas, sem dúvida, minha vida está longe de ter sido chata. Sinto um certo orgulho de ter conseguido chegar até aqui." O que não a impediu, certa vez, como conta o repórter, de tentar o suicídio, cortando os pulsos (Melissa vira as palmas das mãos para cima, observa as cicatrizes ainda rosadas). Ao sair do hospital, já recuperada, "ela parecia uma vestal, toda vestida de branco, sorrindo, os inefáveis óculos escuros ajudando a lhe encobrir o rosto". Acrescenta a matéria: "Via-se, imediatamente, que era uma estrela. Tinha o que chamamos de star-quality." Logo depois, vem a "versão verdadeira" da descoberta de Lana Turner. Ao contrário do que as revistas da época publicaram, afirma o jornalista, o fato não aconteceu no Schwab's, a lanchonete, em Hollywood Boulevard, freqüentada pelas moças que queriam arranjar papéis em filmes. A própria Lana explica: "Foi num lugar chamado Top Hat Café - acho que hoje é um posto de gasolina. E eu não estava tomando refresco coisa nenhuma. Meu dinheiro só dava para uma Coca-Cola." Mas ela confirma que, como foi divulgado, o sujeito ao lado fez a clássica pergunta: "Você gostaria de trabalhar no cinema?" E ela deu a resposta clássica: "Não sei, preciso perguntar a mamãe. A etapa seguinte foi a escolha de um nome artístico. Havia no estúdio, conta a matéria, um catálogo já preparado, e alguém começou a dizer todos em voz alta. De repente, a própria atriz sugeriu Lana: "Não sei de onde tirei. Mas reparem que é Lah-nah, não quero ouvir meu nome pronunciado de outra maneira." Em 1937, ela faria Esquecer, nunca e, no ano seguinte, ingressava na Metro, onde se tornou conhecida como "a garota do sueter". Uma série de sucessos, rosas e champanha em turbilhão. Mas o destaque da reportagem é para o trágico episódio com Johnny Stompanato, já na véspera de Lana perder a efêmera frescura do tempo em que as mulheres são comparadas com flores (quando ganharia, como prêmio, a dura máscara da fotografia, a da guerreira sobrevivente, marcas no rosto como gloriosas cicatrizes de combate). Certo dia, "um sujeito dizendo chamar-se John Steele telefonou para o estúdio fazendo a corte a Miss Turner". Ela o achou encantador, diz o jornalista, e acabou se envolvendo. "Quando descobri sua verdadeira identidade", comentaria Lana, depois ja era muito tarde". Johnny Stompanato (ou Renato Medeiros) era branco como um pão, limpo como um pão, com aquela pureza que só conseguiria ter um jovem mafioso procurado pela polícia. (Na cama, como um cavalinho branco, o corpo perfeito de um rapaz de 28 ou 29 anos, dentes brancos, olhos castanhos matizados de verde, mas quase sempre escuros, algo taciturnos. Deliciosamente sério, com um senso permanente de dever a cumprir. Não fala, a não ser uma ou outra palavra - é indecifrável. Mas talvez seu permanente mistério seja, simplesmente, o da própria vida, e seu absurdo.) Um homem inteiro e lindo como um cavalinho branco correndo na praia, ao entardecer. Intacto e cheio de pureza, como a juventude é pura, ele nu, aquele corpo inteiro e forte e grande e puro, ele assim em cima dela, grande e inteiro, ele entrando nela, ele pedindo: Melissa, Lana, diga alguma coisa para mim, enquanto ela só gemia e gritava, gemia e gritava, agora falando: amor, amor, amor. E logo está toda inundada do líquido dele, com um cheiro vagamente vegetal de capim molhado ou palmito. Isso vai me bastar para sempre, não vou precisar de mais nada, nunca, pensou, quando ele saiu, batendo aporta da frente com um ruído que ela escutou da cama. Era uma manhã nevoenta através das portas de vidro do seu apartamento, que davam para varandinhas, lá fora, e nuvens esgarçadas se despejavam sobre o maciço de árvores nas encostas do Corcovado, defronte. Diria, depois, quando ele telefonou: saí dançando aquela manhã, querido. Como se tivesse, afinal, alcançado a eternidade, precisava morrer de repente num momento asassim. A matéria garante que, para Lana, começou um "terrível drama psicológico", enquanto "tentava livrar-se do gangster" ao passo que ele, "utilizando todos os artifícios", recusava-se a sair de cena. Quando ela foi para a Inglaterra, conta o repórter, a fim de filmar Another time, anotherplace (Vítima de uma paixão) pensou que estava livre de Johnny, pelo menos por alguns meses. Mas ele conseguiu enganar as autoridades americanas e, de repente, apareceu em Londres. Lana procurou a Scotland Yard e Stompanato foi deportado. Concluídas as filmagens, ela decidiu tirar umas férias em Acapulco, sem avisar a ninguém. "Naquela época", diz Lana, "o trajeto mais direto entre Londres e Acapulco era via Copenhague. Cheguei de madrugada à Dinamarca. Alguns passageiros desceram do avião, outros subiram. Um jovem me entregou uma rosa amarela. Peguei a flor e, de repente, vi um rosto a meu lado: era John. Jamais descobri como ele conseguiu chegar ali, sem que eu o visse, e como conseguiu uma passagem no mesmo avião que eu, no assento ao lado. Mas ele estava ali." As brigas entre os dois eram terríveis, lembra o repórter. Melissa tentava evitar que Patrícia, a filha de 14 anos, escutasse - mas nem sempre conseguia. Um dia, a porta do quarto estava aberta e a menina pensou que ele fosse cumprir a ameaça constante - a de navalhar o rosto de sua mãe. Correu à cozinha, pegou uma grande faca e a enfiou no corpo do rapaz. As últimas palavras dele foram: "O que você fez?" E a próxima etapa seria a luta nos tribunais, quando Melissa fez a pergunta desesperada: "Não poderei tomar a mim a responsabilidade por toda essa tragédia?" A imprensa, no entanto, publicou outras versões para o crime. Uma delas era a de que Cheryl estaria apaixonada por Johnny e os dois chegaram a fazer amor; ela o matou quando descobriu que ele voltara para sua mãe. Mas Lana, tempos depois, prestaria uma última homenagem a Stompanato: "Ele me cortejou como ninguém", declarou. (Pois a um homem a quem uma mulher permite que lhe dê o maior prazer, ela perdoa tudo.) Depois que Cheryl foi absolvida, Lana passou a contar com a companhia de velhos amigos, aqueles para quem ela representava um testemunho vivo de grandes momentos da masculinidade de cada um. Foi quando pensou que, numa outra etapa, talvez não tão distante assim, precisaria da bondade das pessoas, qualidade que ela própria, provavelmente, jamais tivera assim tão disponível para oferecer a ninguém. Começou a se esforçar para ser mais simpática. Agora, seus maus humores já não seriam mais compensados pela beleza fulgurante, a paixão, a juventude, enfim. Coisas assim muito intensas que a passagem do tempo ia fatalmente apagando, tudo se abrandava em tons pastéis, esfumados, como a parte superior (as nuvens) de uma estampa japonesa. Acentuou, então, como um disfarce, uma frivolidade teatral que, se bem reparada, era "profunda". Talvez a coisa mais profunda que lhe acontecera na vida, o seu sorriso-esgar. O símbolo, quem sabe, dessa conquista que ninguém almeja, a sabedoria da meia-idade, mas que pode tornar-se, um dia, aquilo que nos resta e nos mantém vivos. Continuava, contudo, a telefonar com freqüência para um conhecido ou outro, no meio da noite, à espera de uma migalha qualquer de ternura; ou, simplesmente, para tentar expressar alguma coisa aparentemente inexplicável porque se reduzia, no último momento, a um punhado de pó, frases banais em que primava a insistência no eu, eu, eu. Era parco, pensando bem, o resultado daquele último esforço para continuar agradando os homens, um imenso e praticamente inútil investimento de habilidade e emoção. A qualquer momento, concluiu, desistirá por completo, vai ficar sozinha em casa vendo antigos filmes em seu videocassete e cozinhando para si mesma. Ou se perderá em longas e nostálgicas meditações, na cadeira de lona da varandinha de seu apartamento/de sua mansão. Sim, conheço o agridoce sabor de solidão de Lana Turner, sua crespa mordida num sábado à tarde como este - quando, afastada dos estúdios, definitivamente divorciada, ela bebericava seu uísque a observar as nuvens esgarçadas que se despejavam sobre o maciço de árvores nas encostas de Beverly Hills, defronte. (Mais que uma história, menos que uma história. Um clima. Como uma imagem apenas entrevista, anos atrás, e, de repente, lembrada. O repentino claro-escuro que se formou, certo fim de tarde, num rosto de mulher, deixando-o - apenas por um segundo, todo crestado de dourada poeira.) Lana ou Melissa (Sílvia? Selma? Ingrid? Laura?), uma mulher que eu queria contar em várias versões, como nas Mil e Uma Noites. Inumerável, protéica, com alguma coisa de hidra - da qual, cortada uma das cabeças, outras renascessem no mesmo lugar. E cuja realidade, sigilosa, secreta, com um sentido oculto, estivesse permanentemente sujeita a novas interpretações, enigma que só se pode decifrar parcialmente, a partir de algumas palavras significativas como símbolos ou de ilações de episódios e situações deliberadamente destacados, no texto, com a mesma técnica com que, numa matéria jornalística, o redator faz a escolha, jamais inocente, do que vai para o lead ou para o pé. Lana para além da própria Lana, inesgotável; Lana, por assim dizer, o nosso tempo. Ou uma metáfora intemporal de amor e perdição - Safo, George Sand, Electra. E, ainda, Lana como simples capricho dessa outra mulher, cujo rosto não passa de um espelho, embora fosco - do meu. Todas, no entanto, capazes de se multiplicarem infinitamente. Antes de fechar para sempre a revista com a reportagem sobre grandes estrelas do passado - permitindo que Lana (que Melissa, que eu) continue (continuemos) a sua (a nossa) dolorida, sorridente e solitária trajetória (para onde? para onde?), cujo significado, para além dessas imagens glamourosas e das palavras de sentido misteriosamente duplo desisto de captar, lanço um último olhar para a fotografia de Lana Turner - com o melhor matiz da minha ironia, um delicioso e amargo pri vate joke. Um pouco triste, concluo agora que não era, na verdade, sobre Lana Turner que eu queria escrever, mas sim sobre a Zona Sul do Rio de Janeiro. Assim todo em azul, amarelo e verde, enquanto nuvens esgarçadas se despejam, defronte, sobre o maciço de árvores nas encostas do Corcovado e o tempo passa.( CEM MELHORES CONTOS BRASILEIROS DO ´SÉCULO)

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Calor Luiz Vilela

Calor, muito calor ainda — o sol batendo na parede do quarto —, mas ele agora sentia-se melhor. — Você aqui é como uma brisa... Ela sorriu, alegre e bonitinha nos seus quinze anos. — Mais cedo eu tive a visita de uma amiga — ele contou, a cama com a cabeceira erguida: — mas ela é tão feia, tão feia que o meu quadro de saúde até piorou. Ela riu. — Quem, tio?... — Não, isso eu não posso te contar — Por quê? — Você conta pros outros... — Juro que eu não conto. — Só posso te contar isso: que ela é tão feia, que eu quase piorei; quase tive de tomar uma injeção. Ela deu uma risada. — Pois é — ele disse; — é isso. Eu estava assim. Mas a. você chegou, e aí eu melhorei; agora eu estou bem... Sentada numa das três cadeiras do quarto, ela, de shortinho, cruzou as pernas; depois jogou para trás os longos e lisos cabelos castanhos. — Eu queria vir ontem à tarde — ela disse; — mas a minha professora de inglês trocou o horário, e aí... — Foi melhor — ele disse, — melhor você ter vindo hoje: ontem eu estava ruim, estava sentindo muita dor ainda. — Mas a operação correu bem... — Correu; correu tudo bem, felizmente. — E o corte, foi grande? — O corte? Uns... Alguns centímetros. Você quer ver? Você está pensando em ser médica... — É, eu estou pensando... Ela se levantou e se aproximou da cama. Ele, de peito nu, afastou o lençol; depois empurrou um pouco a cueca e... — Ôp! — cobriu rápido; — o passarinho querendo fugir... Ela riu. — Aqui — ele mostrou: — o corte vai daqui ate aqui... Ela ficou olhando — as tiras de esparadrapo sobre a gaze, a pele vermelha de merthiolate. — É grande, não é? — ele disse. Ela balançou a cabeça, concordando Voltou então a sentar—se. Os dois calados. Uma tosse de velho lá no fim do corredor. — Fui te mostrar uma coisa — ele disse, — e você acabou vendo outra... — Eu? — ela disse. — Eu não vi nada. — Não?... — Você cobriu! — Ah... — Por que você cobriu? — Por quê?... Ela riu: — Estou brincando, hem tio? Não vai achar que eu... — Bom — ele disse: — se você quer ver de novo... — Eu não! — ela disse, olhando assustada para o corredor. — Não?... — Não. — Por quê? — Por quê?... Ela riu, mas não respondeu. — Hum? — Pra você depois contar pros seus amigos, né?... — Contar pros meus amigos?... — Claro — ela disse. — Lá no bar, lá na sua rodinha, depois de tomar umas tantas, você vai dizer: "Sabem aquela minha sobrinha, a Daniela?...” — Não, não vou falar isso não; não vou falar pra ninguém. — Sei... — Palavra de honra. — Acredito muito... — Eu prometo. Só nós dois saberemos. Será um segredo nosso: até a morte. — Hum... Muito bonito... — Juro. Pode acreditar em mim. — Você não quis acreditar em mim... — Eu? — Agora há pouco. — Mas aquilo era uma coisa à toa. — E isso? — Isso? Bom, isso... — Hum; o que é isso? — Eu acho que isso é uma coisa bonita, uma coisa entre um homem e uma mulher; entre um adulto e uma jovem; uma coisa entre um tio e uma sobrinha que se querem. — Eu, pelo menos... — Eu também, Daniela; eu também te quero; quero muito, você pode ter certeza. — Você é o meu tio mais legal, o único de cabeça aberta, o mico com quem dá pra conversar. — Obrigado... — Se fossem os outros... Se fossem os outros, eu nem tinha vindo aqui. — É? — Tio Breno, por exemplo: Tio Breno mal me cumprimenta; como se eu não existisse. Tio Jerônimo de vez em quando ainda dá umas prosas, mas eu acho que a única coisa no mundo que interessa para ele é boi; ele só fala em boi, e agora na falta de chuva: que se não chover dentro de poucos dias, ele vai perder não sei quantas cabeças de gado e que... Ele só fala nisso. Eu acho que ele nem dorme, pensando nos bois dele... Ele riu. — Já a Tia Zilda... Tia Zilda é aquela fera. Ela vive no meu pé. Agora ela deu pra implicar com os meus shortinhos: "Por que essa menina não anda pelada de uma vez?..." — Ótimo . — Ótimo?... — ela riu. — Quê que é ótimo?... — A Zilda falar assim. — Ah... — Agora, você andar pelada... Sinceramente: se de shortinho já é isso que a gente vê, pelada... — Tio... Ele riu. — Você está com febre?... — ela perguntou. — Não... — Então é o calor. — Quem sabe? — Eu nunca te vi assim... Uma enfermeira passou, em direção ao fundo, e deu uma olhada para dentro do quarto. A tosse do velho. Um bebê chorando. Vozes. De novo o silêncio. — Bom, mas então. — ele disse; — quer dizer que você não quer mesmo... — O quê? — Ver; ver de novo... — Não. — Então tá; fim de papo... Ela curvou—se para amarrar melhor o cadarço. Depois ergueu o pé, mostrando para ele: — Que tal? Gostou do meu tênis? — Gostei. E você, gostou do meu pênis? — Tio!... — ela disse, se levantando e pondo a mão na boca. — É só pra fazer um trocadilho... — Você hoje está impossível, hem? — Eu não ia perder a oportunidade de fazer esse trocadilho... — Você hoje... você está precisando de umas palmadas, viu? — Dá, dá as palmadas; suas palmadas seriam como... seriam como uma chuva de plumas em meu corpo. — Uai: você agora virou poeta? Ele riu. — Você hoje está um perigo... — Eu?... Que perigo pode ter um homem preso numa cama de hospital?... — Hum... Muito perigo!... Ele tornou a rir. — Você... — ela disse, se abanando com as mãos, os seios saltitando soltos sob a blusa. A enfermeira passou de volta, sem olhar para o quarto. — Bom, mas então... — ele disse; — quer dizer que o nosso assunto está mesmo encerrado... — Que assunto? — O nosso assunto... — Está. — Encerrado?... — Está. — Definitivamente?... — Definitivamente. — É... — ele disse; — é uma pena... — Pois é... Ela então andou devagar até a cama, encostando-se na beirada — as coxas bronzeadas de sol. Passou a mão de leve no braço dele: — Tio Leo, Tio Leo... — O quê — Não acredite em tudo que eu falo, tá?... — Não?... Ela negou com a cabeça. — Quer dizer que... Ela sacudiu a cabeça. — Ótimo... — ele disse. Olhou pela porta aberta, em direção ao corredor; ela também olhou. Então ele encolheu as pernas, fazendo com elas uma parede: afastou o lençol, e depois... — Nossa! — ela disse. — Tio!... — Pega. — Pode?... — Você me daria a maior felicidade. — Mesmo?... — Eu seria o homem mais feliz do mundo. Ela olhou para o corredor — Está com medo? — ele perguntou. — Não; eu... — Pega. Ela parada. — Você não quer? — Quero, mas... De repente ela puxou o lençol sobre ele. — Quê que foi?... — Nada — ela disse, nervosa; — eu que... Desculpe, tio... — Tudo bem... Ela foi até a janela e ficou, meio de costas, olhando para baixo. Da rua, quase sem barulho, veio a buzina de um picolezeiro. Ela deu um suspiro fundo: — Tem dia que eu tenho vontade de morrer... — Por quê? — Viver é complicado demais... — É assim mesmo — ele disse. Ela tornou a sentar-se, as mãos apoiadas nas coxas, o olhar fixo no chão e os cabelos quase cobrindo o rosto. — Acho que eu já vou... — Embora? — É... — Por quê? — Eu preciso... — Fica mais. — Não posso... — Fica... Ela olhou para ele — e de novo para o chão: — Eu não vou fazer mais nada — disse, com languidez;se é isso... — Não, não é isso. — Acho que a gente não devia ter feito o que a gente fez... — A gente não fez nada! — Não sei quê que me deu na hora... Às vezes acho que eu não bato bem... Ele ficou em silêncio. — Eu... — Está bem, Daniela — ele disse, ajeitando-se um pouco na cama e depois puxando o lençol até o peito. — Eu sou uma criança ainda, tio... Ele sacudiu a cabeça. — Meu corpo pode não ser mais de criança, mas eu ainda sou uma criança, entende? Eu sou muito inexperiente; eu não sei nada da vida, nada... — Esqueça o que houve; você esquece, e eu também esqueço. Tá? — Eu sou uma menina bem-comportada; eu não sou como algumas amigas minhas, algumas que já vão até em motel e... Ela se calou. O sol já sumira do quarto, e o calor diminuíra; em breve começaria o crepúsculo. Ela se levantou: — Eu já vou: às vezes amanhã, depois da aula, eu dou uma passadinha aqui. — É melhor você não passar. — É? — o espanto no rosto. — Então eu não passo. — Eu acho que... — Tiau — ela disse, e saiu do quarto. Ele ficou algum tempo olhando para o corredor. Depois, estirou as pernas — devagar, para não doer —, estendeu os braços ao longo do tronco e respirou fundo: — Merda — disse. Fechou então os olhos, para dormir um pouco. Mas, de súbito, quase num susto, abriu-os: ela estava ao pé da cama, olhando para ele — os olhos vermelhos. — O que houve?... — Eu voltei. — Eu estou vendo. — Você foi muito rude. — Rude?... — Você me magoou muito. — Eu?.. — Eu vim aqui te fazer uma visita... Uma lágrima deslizou pelo rosto. — Eu vim aqui pra... Limpou com o dedo outra lágrima. — Eu sei, Daniela, eu compreendo; eu gostei muito de você ter vindo. — Gostou... Gostou, mas... — Sabe?... Eu vou te dizer: essa cirurgia, as dores, as injeções, o soro, ficar o dia inteiro nessa cama sem poder mexer direito e, ainda por cima, nesse calor horroroso, tudo isso perturba muito a gente, Daniela... Ela escutando. — Tudo isso faz com que... E então... Sabe? É horrível, principalmente passar horas inteiras sozinho nesse quarto, olhando para essas paredes brancas; isso é o pior de tudo. E era por isso que eu queria que você ficasse mais; era por isso... — Eu fico — ela disse. — Fica?... Você fica mais?... Ela balançou a cabeça. — Que bom... — Mas tem uma condição — ela disse — Eu já te falei que é pra esquecer isso, não falei? — Não, minha condição não é essa... — Não? Qual que é a condição? Ela fez uma cara de mistério; deu meia-volta, andou até a porta e afastou com o pé a trava no chão; depois fechou a porta e girou a chave. Então voltou-se: olhou para ele e sorriu. — Sabe — ele disse. — Sabe de uma coisa? Você é uma menina surpreendente. — E bem-comportada; esqueceu?...

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Quero escrever o borrão vermelho de sangue Clarice Lispector

Quero escrever o borrão vermelho de sangue com as gotas e coágulos pingando de dentro para dentro. Quero escrever amarelo-ouro com raios de translucidez. Que não me entendam pouco-se-me-dá. Nada tenho a perder. Jogo tudo na violência que sempre me povoou, o grito áspero e agudo e prolongado, o grito que eu, por falso respeito humano, não dei. Mas aqui vai o meu berro me rasgando as profundas entranhas de onde brota o estertor ambicionado. Quero abarcar o mundo com o terremoto causado pelo grito. O clímax de minha vida será a morte. Quero escrever noções sem o uso abusivo da palavra. Só me resta ficar nua: nada tenho mais a perder. Clarice Lispector FONTE:http://kavorka.wordpress.com/category/clarice-lispector/

quarta-feira, 9 de maio de 2012

A caçada Lygia Fagundes Telles

A loja de antiguidades tinha o cheiro de uma arca de sacristia com seus anos embolorados e livros comidos de traça. Com as pontas dos dedos, o homem tocou numa pilha de quadros. Uma mariposa levantou vôo e foi chocar-se contra uma imagem de mãos decepadas. — Bonita imagem — disse ele. A velha tirou um grampo do coque, e limpou a unha do polegar. Tornou a enfiar o grampo no cabelo. — É um São Francisco. Ele então voltou-se lentamente para a tapeçaria que tomava toda a parede no fundo da loja. Aproximou-se mais. A velha aproximou-se também. — Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso... Pena que esteja nesse estado. O homem estendeu a mão até a tapeçaria, mas não chegou a tocá-la. — Parece que hoje está mais nítida... — Nítida? — repetiu a velha, pondo os óculos. Deslizou a mão pela superfície puída. — Nítida, como? — As cores estão mais vivas. A senhora passou alguma coisa nela? A velha encarou-o. E baixou o olhar para a imagem de mãos decepadas. O homem estava tão pálido e perplexo quanto a imagem. — Não passei nada, imagine... Por que o senhor pergunta? — Notei uma diferença. — Não, não passei nada, essa tapeçaria não agüenta a mais leve escova, o senhor não vê? Acho que é a poeira que está sustentando o tecido acrescentou, tirando novamente o grampo da cabeça. Rodou-o entre os dedos com ar pensativo. Teve um muxoxo: — Foi um desconhecido que trouxe, precisava muito de dinheiro. Eu disse que o pano estava por demais estragado, que era difícil encontrar um comprador, mas ele insistiu tanto... Preguei aí na parede e aí ficou. Mas já faz anos isso. E o tal moço nunca mais me apareceu. — Extraordinário... A velha não sabia agora se o homem se referia à tapeçaria ou ao caso que acabara de lhe contar. Encolheu os ombros. Voltou a limpar as unhas com o grampo. — Eu poderia vendê-la, mas quero ser franca, acho que não vale mesmo a pena. Na hora que se despregar, é capaz de cair em pedaços. O homem acendeu um cigarro. Sua mão tremia. Em que tempo, meu Deus! em que tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde?... Era uma caçada. No primeiro plano, estava o caçador de arco retesado, apontando para uma touceira espessa. Num plano mais profundo, o segundo caçador espreitava por entre as árvores do bosque, mas esta era apenas uma vaga silhueta, cujo rosto se reduzira a um esmaecido contorno. Poderoso, absoluto era o primeiro caçador, a barba violenta como um bolo de serpentes, os músculos tensos, à espera de que a caça levantasse para desferir-lhe a seta. O homem respirava com esforço. Vagou o olhar pela tapeçaria que tinha a cor esverdeada de um céu de tempestade. Envenenando o tom verde-musgo do tecido, destacavam-se manchas de um negro-violáceo e que pareciam escorrer da folhagem, deslizar pelas botas do caçador e espalhar-se no chão como um líquido maligno. A touceira na qual a caça estava escondida também tinha as mesmas manchas e que tanto podiam fazer parte do desenho como ser simples efeito do tempo devorando o pano. — Parece que hoje tudo está mais próximo — disse o homem em voz baixa. — É como se... Mas não está diferente? A velha firmou mais o olhar. Tirou os óculos e voltou a pô-los. — Não vejo diferença nenhuma. — Ontem não se podia ver se ele tinha ou não disparado a seta... — Que seta? O senhor está vendo alguma seta? — Aquele pontinho ali no arco... A velha suspirou. — Mas esse não é um buraco de traça? Olha aí, a parede já está aparecendo, essas traças dão cabo de tudo — lamentou, disfarçando um bocejo. Afastou-se sem ruído, com suas chinelas de lã. Esboçou um gesto distraído: — Fique aí à vontade, vou fazer meu chá. O homem deixou cair o cigarro. Amassou-o devagarinho na sola do sapato. Apertou os maxilares numa contração dolorosa. Conhecia esse bosque, esse caçador, esse céu — conhecia tudo tão bem, mas tão bem! Quase sentia nas narinas o perfume dos eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmido da madrugada, ah, essa madrugada! Quando? Percorrera aquela mesma vereda aspirara aquele mesmo vapor que baixava denso do céu verde... Ou subia do chão? O caçador de barba encaracolada parecia sorrir perversamente embuçado. Teria sido esse caçador? Ou o companheiro lá adiante, o homem sem cara espiando por entre as árvores? Uma personagem de tapeçaria. Mas qual? Fixou a touceira onde a caça estava escondida. Só folhas, só silêncio e folhas empastadas na sombra. Mas, detrás das folhas, através das manchas pressentia o vulto arquejante da caça. Compadeceu-se daquele ser em pânico, à espera de uma oportunidade para prosseguir fugindo. Tão próxima a morte! O mais leve movimento que fizesse, e a seta... A velha não a distinguira, ninguém poderia percebê-la, reduzida como estava a um pontinho carcomido, mais pálido do que um grão de pó em suspensão no arco. Enxugando o suor das mãos, o homem recuou alguns passos. Vinha-lhe agora uma certa paz, agora que sabia ter feito parte da caçada. Mas essa era uma paz sem vida, impregnada dos mesmos coágulos traiçoeiros da folhagem. Cerrou os olhos. E se tivesse sido o pintor que fez o quadro? Quase todas as antigas tapeçarias eram reproduções de quadros, pois não eram? Pintara o quadro original e por isso podia reproduzir, de olhos fechados, toda a cena nas suas minúcias: o contorno das árvores, o céu sombrio, o caçador de barba esgrouvinhada, só músculos e nervos apontando para a touceira... "Mas se detesto caçadas! Por que tenho que estar aí dentro?" Apertou o lenço contra a boca. A náusea. Ah, se pudesse explicar toda essa familiaridade medonha, se pudesse ao menos... E se fosse um simples espectador casual, desses que olham e passam? Não era uma hipótese? Podia ainda ter visto o quadro no original, a caçada não passava de uma ficção. "Antes do aproveitamento da tapeçaria..." — murmurou, enxugando os vãos dos dedos no lenço. Atirou a cabeça para trás como se o puxassem pelos cabelos, não, não ficara do lado de fora, mas lá dentro, encravado no cenário! E por que tudo parecia mais nítido do que na véspera, por que as cores estavam mais fortes apesar da penumbra? Por que o fascínio que se desprendia da paisagem vinha agora assim vigoroso, rejuvenescido?... Saiu de cabeça baixa, as mãos cerradas no fundo dos bolsos. Parou meio ofegante na esquina. Sentiu o corpo moído, as pálpebras pesadas. E se fosse dormir? Mas sabia que não poderia dormir, desde já sentia a insônia a segui-lo na mesma marcação da sua sombra. Levantou a gola do paletó. Era real esse frio? Ou a lembrança do frio da tapeçaria? "Que loucura!... E não estou louco", concluiu num sorriso desamparado. Seria uma solução fácil. "Mas não estou louco.". Vagou pelas ruas, entrou num cinema, saiu em seguida e quando deu acordo de si, estava diante da loja de antiguidades, o nariz achatado na vitrina, tentando vislumbrar a tapeçaria lá no fundo. Quando chegou em casa, atirou-se de bruços na cama e ficou de olhos escancarados, fundidos na escuridão. A voz tremida da velha parecia vir de dentro do travesseiro, uma voz sem corpo, metida em chinelas de lã: "Que seta? Não estou vendo nenhuma seta..." Misturando-se à voz, veio vindo o murmurejo das traças em meio de risadinhas. O algodão abafava as risadas que se entrelaçaram numa rede esverdinhada, compacta, apertando-se num tecido com manchas que escorreram até o limite da tarja. Viu-se enredado nos fios e quis fugir, mas a tarja o aprisionou nos seus braços. No fundo, lá no fundo do fosso, podia distinguir as serpentes enleadas num nó verde-negro. Apalpou o queixo. "Sou o caçador?" Mas ao invés da barba encontrou a viscosidade do sangue. Acordou com o próprio grito que se estendeu dentro da madrugada. Enxugou o rosto molhado de suor. Ah, aquele calor e aquele frio! Enrolou-se nos lençóis. E se fosse o artesão que trabalhou na tapeçaria? Podia revê-la, tão nítida, tão próxima que, se estendesse a mão, despertaria a, folhagem. Fechou os punhos. Haveria de destruí-la, não era verdade que além daquele trapo detestável havia alguma coisa mais, tudo não passava de um retângulo de pano sustentado pela poeira. Bastava soprá-la, soprá-la! Encontrou a velha na porta da loja. Sorriu irônica: — Hoje o senhor madrugou. — A senhora deve estar estranhando, mas... — Já não estranho mais nada, moço. Pode entrar, pode entrar, o senhor conhece o caminho... "Conheço o caminho" — murmurou, seguindo lívido por entre os móveis. Parou. Dilatou as narinas. E aquele cheiro de folhagem e terra, de onde vinha aquele cheiro? E por que a loja foi ficando embaçada, lá longe? Imensa, real só a tapeçaria a se alastrar sorrateiramente pelo chão, pelo teto, engolindo tudo com suas manchas esverdinhadas. Quis retroceder, agarrou-se a um armário, cambaleou resistindo ainda e estendeu os braços até a coluna. Seus dedos afundaram por entre galhos e resvalaram pelo tronco de uma árvore, não era uma coluna, era uma árvore! Lançou em volta um olhar esgazeado: penetrara na tapeçaria, estava dentro do bosque, os pés pesados de lama, os cabelos empastados de orvalho. Em redor, tudo parado. Estático. No silêncio da madrugada, nem o piar de um pássaro, nem o farfalhar de uma folha. Inclinou-se arquejante. Era o caçador? Ou a caça? Não importava, não importava, sabia apenas que tinha que prosseguir correndo sem parar por entre as árvores, caçando ou sendo caçado. Ou sendo caçado?... Comprimiu as palmas das mãos contra a cara esbraseada, enxugou no punho da camisa o suor que lhe escorria pelo pescoço. Vertia sangue o lábio gretado. Abriu a boca. E lembrou-se. Gritou e mergulhou numa touceira. Ouviu o assobio da seta varando a folhagem, a dor! "Não..." - gemeu, de joelhos. Tentou ainda agarrar-se à tapeçaria. E rolou encolhido, as mãos apertando o coração.(CEM MELHORES CONTOS BRASILEIROS DO SÉCULO)FONTE:http://www.releituras.com/i_eleonora_lftelles.asp