segunda-feira, 30 de abril de 2012

O homem de cabeça de papelão João do Rio

No País que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem importância social. O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente em idéias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados, jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral. Enfim tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso! Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista. Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos. Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam. Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade. Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se. — Ouça! bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro. — Mas não quero ser nada disso. — Então quer ser vagabundo? — Quero trabalhar. — Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando — é vagabundo. — Eu não acho. — É pior. É um tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Você está inteiramente doido. Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por que? É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem! Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez: — É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares... O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor: — A perigosa mania de seu filho é por em prática idéias que julga próprias. — Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes? Não. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia, quem manda na minha casa sou eu. No País do Sol o comércio ë uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto. não o tinham explorado. Antenor ria. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o ainda. — É doido, mas bom. Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa. — Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal... — É da tua má cabeça, meu filho. — Qual? — A tua cabeça não regula. — Quem sabe? Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antônia foi condicional. — Só caso se o senhor tomar juízo. — Mas que chama você juízo? — Ser como os mais. — Então você gosta de mim? — E por isso é que só caso depois. Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido. Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão". Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo. — Traz algum relógio? — Trago a minha cabeça. — Ah! Desarranjada? — Dizem-no, pelo menos. — Em todo o caso, há tempo? — Desde que nasci. — Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regular bem... Antenor atalhou: — E o senhor fica com a minha cabeça? — Se a deixar. — Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça... — Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão. — Regula? — É de papelão! explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua. Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porem, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco. Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da República — a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente. Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória. — Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão! Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira. — Há tempos deixei aqui uma cabeça. — Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça. — Ah! fez Antenor. — Tem-se dado bem com a de papelão? — Assim... — As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito. — Mas a minha cabeça? — Vou buscá-la. Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado. — Consertou-a? — Não. — Então, desarranjo grande? O homem recuou. — Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours. Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se. — Faça o obséquio de embrulhá-la. — Não a coloca? — Não. — V.EX. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista. Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social. — Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique. — Qual! V.EX. terá a primeira cabeça. Antenor ficou seco. — Pode ser que V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu continuo com a de papelão. E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável — um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Família é uma merda Rubem Fonseca

Tenho uma saúde de ferro, mas andava sentindo umas dores de cabeça e fui à farmácia comprar aspirina. Foi assim que conheci Genoveva. Ela me perguntou para que eu queria aspirina. “Para dor de cabeça”. “Aspirina ataca o estômago”. Se ela trabalhava numa farmácia devia saber o que estava dizendo. “Então eu tomo o quê?” “Tylenol.” “Já tomei esse troço e não passou a dor” Ficamos batendo um papo, não tinha outros fregueses na farmácia. Ela morava na rua do Camerino, logo no início, perto da farmácia, que ficava na rua Larga, também conhecida como Marechal Floriano. Eu morava no Santo Cristo. Gostei de Genoveva. Mesmo sem estar com dor de cabeça, voltei à farmácia no dia seguinte. “Já acabou o Tylenol?” “Vim só dizer oi para você”. ”Oi.Como é o seu nome?”. “Valdo”. “Parece nome de jogador de futebol. Você joga futebol?” “Jogo. Pelada. Todo brasileiro joga futebol”. “O meu é Geni”. Depois desse dia, começamos a namorar O problema é que eu tinha que namorar escondido dos meus irmãos e da minha mãe. Eu gostava da Genoveva, mas ela era feia, nem muito gorda nem muito magra, nem tinha a pele ruim, mas era feia. Não sei como explicar a feiúra da Genoveva. Se fosse uma garota bonita era mais fácil. Já namorávamos havia dois meses quando Genoveva me disse que a mãe dela queria me conhecer As confusões entre namorados sempre começam quando as famílias se metem no meio. A velha ia achar uma porção de defeitos em mim. Mas não foi nada disso. A velha disse: “Genoveva, seu namorado é muito bonito e educado”. “Mamãe, eu disse a ele que me chamava Geni, a senhora sabe que eu não gosto desse nome. “Se o moço vai casar com você tem que saber o seu nome verdadeiro.” “Meu nome também não é Valdo. É Oduvaldo”. “Acho Oduvaldo bonito’; disse a garota. “Eu acho Genoveva mais ainda”. Depois a mãe foi ver televisão no quarto onde as duas dormiam. A casa era pequena. Ficamos sozinhos no sofá da sala e eu não fiz nada. Não fiz nada porque Genoveva era virgem e eu não queria mandar o cabaço dela pro espaço, aquela coisa de a mãe falar em casamento me deixou arrepiado. Tirar cabaço é coisa feita no impulso, e a mulher sempre embucha. Aí o cara tem que casar Eu até casava com Genoveva, se não fosse a minha família. Todo mundo na minha casa era bonito. Como é que eu ia chegar e dizer, olha aqui pessoal, vou casar com esta moça feia? Ainda por cima, no momento nem estou trabalhando, quem me sustenta é o meu irmão que tem um restaurante no Santo Cristo. Ele é casado com uma dona que podia trabalhar no cinema. Santo Cristo é um lugar perfeito, nasci e me criei lá, não tem boteco, loja, oficina, casa que eu não conheça, pelo menos por fora. Sei onde se pode comer uma boa gororoba, claro que o melhor lugar é o restaurante do meu irmão. Santo Cristo é um paraíso, eu podia passar a vida sem sair do bairro nem para ir à praia. Como é que fui comprar um remédio para dor de cabeça na rua Larga, se Santo Cristo tem suas farmácias? Foi o destino. O destino arma essas coisas pra cima da gente, colocou Genoveva no meu caminho. “Você não gosta do lugar onde mora?” “Por quê?” “Nunca me leva para passear em Santo Cristo”. “Não gosto daquele bairro. Prefiro a Tijuca. Já morei na rua dos Araújos”. Era mentira. Eu detestava a Tijuca, mas não queria andar pelo Santo Cristo e ser visto com Genoveva. Quem morava na rua dos Araújos era uma meio-prima minha, a Glorinha, nós namoramos até que eles se mudaram para a Barra e eu inventei que isso complicou o namoro. Foi um pretexto, ela era bonita, gostava de mim, mas eu não gostava dela e dizem que filhos de primos podem nascer aleijados. Meus irmãos, apesar de detestarem a nossa tia, que era irmã da minha mãe por parte de pai, achavam que seria um casamento perfeito para mim. O pai dela, sócio de uma companhia de ônibus na Baixada, podia me arrumar um emprego, já que eu não queria ser garçom no restaurante do meu irmão. Eu não era daqueles caras que inventam que estão desempregados porque não encontram emprego, eu não encontrava mesmo, só não queria ser garçom. ‘‘Você não vai me apresentar sua família? Você nunca fala dela”. ‘‘Qualquer dia desses”. “Eu te apresentei minha mãe. Não tenho pai. Você tem pai e mãe?” “Sou igual a você, só tenho mãe. Mas ela não gosta de receber visita”. “Também não tem irmãos?” Você nunca conta uma mentira apenas. Vem sempre uma porrada delas, de enxurrada. Acho que eu dizia pelo menos uma mentira por dia para Genoveva. Eu gostava dela, mas não podia gostar dela, uma mulher bonita pode gostar de um homem feio, mas nenhum homem pode gostar de uma mulher feia, o mundo é assim. Se eu tivesse dinheiro para sair de casa, fugia com ela. E o trambolho da mãe, o que a gente ia fazer com aquilo? Quem sustentava a velha era a Genoveva, com a merreca que ganhava na farmácia, e olha que ela era a gerente. Como diz o ditado, é mais fácil pegar um mentiroso do que um coxo. Coxo é uma espécie de perneta. Um dia fui apanhar Genoveva na farmácia na hora do almoço, íamos comer um sanduíche com caldo de cana num pé-sujo da rua do Acre e descíamos pela rua Larga quando ouvi uma voz: “Oduvaldo, Oduvaldo” Reconheci a voz, fingi que não ouvi. Continuei andando, mas Genoveva parou, olhou para trás. “Tem uma moça te chamando”. “Moça? Deixa pra lá, vamos embora”. Mas a minha irmã já tinha chegado perto. “Hoje é o aniversário de Clodoaldo. Não vá se esquecer Oito horas. Você é meio cabeça-tonta.” Lá em casa todos os nomes de homem terminam em aldo. E o nome das mulheres em alva. “Não vai me apresentar a sua amiga?” “É a moça da farmácia”. “Eu sou irmã dele. Marialva, muito prazer”. “Muito prazer, Geni. Pensei que estava viajando”. “Viajando? Quem me dera.” “O que você está fazendo aqui na rua Larga?’ perguntei, irritado. "Vim comprar o presente do Clodoaldo. Você está aborrecido com alguma coisa?” “Temos que ir, tchau” eu disse, puxando Genoveva. O caldo de cana naquele dia estava com gosto ruim. Genoveva não comeu o sanduíche. Disse estar sem fome e não falou mais nada. Quando voltávamos para a farmácia, me perguntou: “Por que você não me apresentou como sua namorada? Moça da farmácia? Moça da farmácia?” “Eu não quis, sabe como é, dizer assim, sem mais nem menos, esta é minha namorada, minha irmã ia dizer, meu irmão tinha uma namorada e não apresentava para a gente. Sabe como é, ia ficar esquisito”. “Ela não estava viajando? Ou você está me engrupindo?” “Que é isso, Genoveva? Está zangada?” “Estou zangada, sim”. “Eu um dia te apresento a eles”. “Por que não me leva no aniversário do, do, como é o nome dele? Do seu irmão”. “Clodoaldo. Assim, sem mais nem menos?” “Como, sem mais nem menos? Tem que chegar uma hora para isso”. “Não sei se a hora certa é numa festa de aniversário sem graça, com bolo e parabéns para você”. Eu e o Clodoaldo fazíamos anos no mesmo mês, mas Genoveva não sabia disso, eu não podia dizer para ela que minha família ia dar uma festa para mim nos próximos dias, no meu aniversário. Eu não podia levar a garota na minha casa. Família é uma merda. “Você pensa que eu sou boba, não pensa?” “Que é isso, Genoveva?” “Pára de dizer o que é isso. Isso é isso mesmo. Não me leva até a farmácia, quero pensar, você está me atrapalhando”. Ela saiu correndo, correndo mesmo, como se estivesse disputando os cem metros rasos. Cheguei às oito em ponto na festa do Clodoaldo, no restaurante dele, fechado para os fregueses naquela noite. Entre os presentes que ganhou, o único mixuruca foi o escudo do Vasco que dei a ele, mas Clodoaldo era um vascaíno fanático e gostou do escudinho, além disso sabia que eu estava na pindaíba. Fiquei espiando a minha família, todo mundo elegante, todos bonitos e bem de vida, a mulher do Clodoaldo era bonita, a do Reinaldo, que tem uma oficina mecânica, era bonita, até minha mãe, que era velha, era bonita, o único que era apenas bonito e não estava se dando bem na vida era eu, mas beleza não põe mesa, a menos que você seja mulher, como dizem. Além da minha mãe e dos meus irmãos, estavam na festa os amigos deles. Eu não tenho amigos. Vá lá, os amigos deles são também um pouco meus amigos. Todo mundo bebeu, teve cantoria, gargalhadas, tudo numa boa, eu também bebi, mas não adiantou nada, a cerveja e o vinho tiveram o mesmo efeito que chá de agrião, só me deixaram enjoado. “O Oduvaldo arranjou uma namorada” anunciou Marialva, lá para as tantas. Todo mundo caiu na minha pele. Disseram um monte de besteiras, contaram piadinhas. “Esse cara é um moita” disse Ronaldo. “Quem é a moça?” perguntou minha mãe. “Trabalha numa farmácia” disse Marialva. “A Jaqueline? Aquela garota é um anjo”. “Ela não trabalha na farmácia daqui, mãe. Acho que é numa das farmácias da rua Larga. Os dois estavam andando pela rua Larga. O nome dela é Geni”. Ouvi mais um monte de piadinhas idiotas. Marialva não contou que Geni era feia. Para falar a verdade, Marialva era legal, estava noiva de um médico, ia casar com ele, o cara estava na festa, era meio prosa, sabe como são esses médicos, mas não era mau sujeito, muito gentil com todos nós, mas graças a Deus eu não precisava dos serviços dele, o cara era médico de hemorróidas. Além de bacana, o puto também era bonito. Porra, tinha gente feia pra caralho no Brasil, menos na minha família? Que merda. No dia seguinte passei na farmácia. Genoveva estava emburrada. “O senhor deseja algum produto?” “Quero falar com você”. “Não temos nada a conversar. Estou muito ocupada” disse, virando as costas e se escondendo no fundo da farmácia. Eu estava numa sinuca de bico. Não podia apresentar Genoveva à minha família, eu ia morrer de vergonha, estava também com vergonha de mim mesmo, de ser um babaca, acho que era porque perdi o meu emprego e não conseguia arranjar outro, larguei o colégio no meio porque só gostava de jogar bilhar e bater bola, minha mãe e os meus irmãos deviam me encher de porrada, mas passavam a mão na minha cabeça. Fiquei rondando a porta da farmácia até a hora de fechar. Quando Genoveva saiu, cheguei perto dela e disse: “Quero te pedir perdão”. Nenhuma mulher resiste quando um homem pede perdão. Ela olhou para mim, viu alguma coisa na minha cara e me perdoou. “Está perdoado” disse, me dando um beijo no rosto. Perdão eu pedi de verdade, mas o que disse em seguida era meio verdade meio mentira. “Não te apresentei minha família porque eles são todos metidos a besta, só por isso”. Eles eram mesmo metidos a besta, até minha mãe, que se chamava Ednalva, era metida a besta, mas o motivo não era só esse, era como a minha família ia reagir quando visse a feiúra de Genoveva. “E qual é o problema de eles serem convencidos? Qual é o problema?” Consegui driblar o assunto e me separei dela numa boa, mas Genoveva parecia preocupada com alguma coisa. No dia seguinte ao aniversário de Clodoaldo, me deu uma coisa e eu chamei Marialva para uma conversa particular. Disse a ela que estava apaixonado por Genoveva. Se você quer abrir o seu peito, abra para uma mulher Se ela for sua irmã, é claro. Mãe é mais complicado, mãe é boa numas coisas, noutras é melhor a irmã. “Aquela moça da rua Larga?” perguntou Marialva. “Aquela.” “Muito apaixonado?” “Loucamente apaixonado. Não posso viver sem ela. Sei que ela é feia, mas não posso viver sem ela”. ‘‘Existe gente mais feia do que aquela moça". Depois, Marialva não disse mais nada. Mordeu o beiço de baixo, só isso. Fiquei andando pela rua, passei na porta do bilhar, resolvi que não ia jogar sinuca nunca mais, nem pelada de futebol, sei que ia sofrer por isso, mas a minha vida já estava mesmo um lixo. Ainda por cima, na quinta-feira era o dia do meu aniversário; a minha família sempre fazia uma festa para mim e eu não ia levar a Genoveva. Se ela soubesse, eu estava frito, Genoveva se chateou só porque não a convidei para o aniversário do Clodoaldo. Eu estava no mato sem cachorro. Fiquei dois dias sem ver Genoveva. No dia do meu aniversário, cheio de remorso, dei uma passada na farmácia. Pensei que ela ia me dar um esporro, mas me recebeu com um sorriso. Achei esquisito, mas a gente nunca sabe o que uma mulher está pensando. “Passei aqui só para te dizer que te amo”. “Mais alguma coisa?” “Não, só isso. A gente se vê amanhã?” “Está bom, a gente se vê amanhã” disse ela, sempre rindo. Parecia ter pirado completamente”. O meu aniversário foi na casa da minha mãe. Eu morava na casa da minha mãe, acontece com os caçulas, ainda mais temporão e desempregado, como eu. Estava a turma toda lá, meus irmãos, as mulheres dos meus irmãos, o doutor da Marialva, aqueles bestalhões todos A festa mal havia começado quando minha mãe disse: “Marialva, vai pegar o presente do Oduvaldo”. Minha irmã desapareceu por algum tempo. A campainha da porta tocou, e todos começaram a cantar, parabéns para você. Aquela musiquinha me dava nojo. Então minha mãe abriu a porta e surgiu Marialva, puxando Genoveva pela mão. “Genoveva...? eu disse, surpreso. “Não tem tanta farmácia assim na rua Larga, foi fácil encontrar a moça” disse Marialva. Tive vontade de chorar, acho que é porque estava desempregado, e sujeito desempregado fica fraco. Para falar a verdade, meus olhos ficaram úmidos quando abracei Genoveva. Depois abracei os meus parentes e todos cobriram Genoveva de beijos. Minha mãe trouxe um bolo da cozinha, cheio de velas acesas. Estou casado com Genoveva. Minha família gosta muito dela, dizem que é meiga, prestativa e cuida bem de mim. Trabalho como garçom no restaurante do Clodoaldo. Não é tão ruim assim, ser garçom, e o meu irmão me ofereceu sociedade. Estou dando duro, sem hora para entrar nem sair. Quem foi que disse que família é uma merda?

terça-feira, 24 de abril de 2012

Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon José Cândido de Carvalho

Lulu Bergantim veio de longe, fez dois discursos, explicou por que não atravessou o Rubicon, coisa que ninguém entendeu, expediu dois socos na Tomada da Bastilha, o que também ninguém entendeu, entrou na política e foi eleito na ponta dos votos de Curralzinho Novo. No dia da posse, depois dos dobrados da Banda Carlos Gomes e dos versos atirados no rosto de Lulu Bergantim pela professora Andrelina Tupinambá, o novo prefeito de Curralzinho sacou do paletó na vista de todo mundo, arregaçou as mangas e disse: — Já falaram, já comeram biscoitinhos de araruta e licor de jenipapo. Agora é trabalhar! E sem mais aquela, atravessou a sala da posse, ganhou a porta e caiu de enxada nos matos que infestavam a Rua do Cais. O povo, de boca aberta, não lembrava em cem anos de ter acontecido um prefeito desse porte. Cajuca Viana, presidente da Câmara de Vereadores, para não ficar por baixo, pegou também no instrumento e foi concorrer com Lulu Bergantim nos trabalhos de limpeza. Com pouco mais, toda a cidade de Curralzinho estava no pau da enxada. Era um enxadar de possessos! Até a professora Andrelina Tupinambá, de óculos, entrou no serviço de faxina. E assim, de limpeza em limpeza, as ruas de Curralzinho ficaram novinhas em folha, saltando na ponta das pedras. E uma tarde, de brocha na mão, Lulu caiu em trabalho de caiação. Era assobiando "O teu-cabelo-não-nega, mulata, porque-és-mulata-na-cor" que o ilustre sujeito público comandava as brochas de sua jurisdição. Lambuzada de cal, Curralzinho pulava nos sapatos, branquinha mais que asa de anjo. E de melhoria em melhoria, a cidade foi andando na frente dos safanões de Lulu Bergantim. Às vezes, na sacada do casarão da prefeitura, Lulu ameaçava: — Ou vai ou racha! E uma noite, trepado no coreto da Praça das Acácias, gritou: — Agora a gente vai fazer serviço de tatu! O povo todo, uma picareta só, começou a esburacar ruas e becos de modo a deixar passar encanamento de água. Em um quarto de ano Curralzinho já gozava, como dizia cheio de vírgulas e crases o Sentinela Municipal do "salutar benefício do chamado precioso líquido". Por força de uma proposta de Cazuza Militão, dentista prático e grão-mestre da Loja Maçônica José Bonifácio, fizeram correr o pires da subscrição de modo a montar Lulu Bergantim em forma de estátua, na Praça das Acácias. E andava o bronze no meio do trabalho de fundição quando Lulu Bergantim, de repente, resolveu deixar o ofício de prefeito. Correu todo mundo com pedidos e apelações. O promotor público Belinho Santos fez discurso. E discurso fez, com a faixa de provedor-mor da Santa Casa no peito, o Major Penelão de Aguiar. E Lulu firme: — Não abro mão! Vou embora para Ponte Nova. Já remeti telegrama avisativo de minha chegada. Em verdade Lulu Bergantim não foi por conta própria. Vieram buscar Lulu em viagem especial, uma vez que era fugido do Hospício Santa Isabel de Inhangapi de Lavras. Na despedida de Lulu Bergantim pingava tristeza dos olhos e dos telhados de Curralzinho Novo. E ao dobrar a última rua da cidade, estendeu o braço e afirmou: — Por essas e por outras é que não atravessei o Rubicon! Lulu foi embora embarcado em nunca-mais. Sua estátua ficou no melhor pedestal da Praça das Acácias. Lulu em mangas de camisa, de enxada na mão. Para sempre, Lulu Bergantim.(CEM MELHORES CONTOS BRASILEIROS DO SÉCULO)

sexta-feira, 20 de abril de 2012

O defunto inaugural Relato de um fantasma Aníbal Machado

a Rodrigo M. F. de Andrade Vamos subindo devagar. Quando alcançarmos o espigão, poderei saber para onde... Saber, não: desconfiar. Mas os homens não falam; apenas exalam um ou outro gemido nas rampas mais fortes. Eu não sou tão pesado assim. Pelo contrário: tantos dias exposto ao ar livre, o sol reduziu-me bastante, curtindo-me as carnes. Conheço estes caminhos. Muitas vezes, bêbado ou vencido pelo cansaço, deixei-me ficar encostado à cangalha, sobre o pedregulho do leito, enquanto o meu cachorro farejava os bichos e a mula aproveitava o capinzinho das margens. Só acordava quando trovejava lá em cima e me vinha o medo de ser arrastado pelas enxurradas; ou então quando se aproximavam esses caminhões enormes que começam a invadir a serra depois que se abriu a estrada que vira para a encosta de lá. A garoa afastou-se do vale. Não sei por que os galos ainda cantam. Chegamos ao alto onde o pé de coqueiro joga uma sombra curta para o lado das jazidas. Deve ser pouco mais de meio-dia. Tomara que o nosso rumo seja no sentido contrário ao dessa sombra. Conquanto para a minha pele seja indiferente solou chuva, prefiro a vertente de cá, onde deve ter ficado o molde irregular das patas da alimária. Os homens param. Depois se decidem: será mesmo pela estrada nova! Tal corno eu queria. O dia clareou bonito. Nunca o vira assim. Estou feliz. Circulo nele agora participo-lhe da atmosfera. Vem subindo Josefina com a criança ao colo. Eu queria dar-lhe bom-dia, mas não posso. Se ela soubesse quem vai aqui!... Passou sem desconfiar... Na ponte provisória um dos homens falseia o pé, e meu corpo rola. Vão pescá-lo mais adiante. Tive receio de que o deixassem seguir com as águas. Já começo a ser menos indiferente ao destino de minha carcaça. Ao longe — mancha de sangue na vegetação — uma bomba de gasolina. A primeira instalada nestes ermos de montanha. Depois, a estalagem. O dono grita, ao dar com os meus despojos: — Que há lá em cima que estão mandando defuntos cá para baixo? Já é o segundo!... Os homens não respondem. Desanimaram não sei por quê. Quererão largar-me ali mesmo, nalguma grota, tal como me encontraram. Se fosse antes, não me importaria. Mas já agora nasce em mim um capricho: chegar primeiro, ganhar a corrida. Eles prosseguem mais soturnos. A que distância andaria o outro? Foi um tropeiro que informou mais adiante: — Cruzei com ele há coisa de duas léguas da Igrejinha; levantei o lenço. Imagine quem era? O Antão, caçador de parasitas. Catingando já, coitado... E reconhecendo a qualidade da mercadoria que ia na rede: - Se vosmecês querem chegar na dianteira, carece andar ligeiro. A festança vai ser de arromba. Só estão esperando o material. Parece que pagam bem. Comprar defunto pra cemitério, foi coisa que nunca vi! concluiu o tropeiro soltando uma gargalhada. E depois de relancear o meu corpo embrulhado no lençol: — Óiá! o pé dele tá aparecendo!... Agora sim, compreendo por que, e sei para onde me estão carregando: fizeram cemitério nalgum lugar, mas faltou defunto para inaugurá-lo. Daí o pedido às redondezas. Que cemitério será? O dia vinha escurecendo. Os homens tinham agora pela frente uma planície animada de sapos e pirilampos. — Engulam a cachaça, disse eu, já impaciente. E toquem depressa! Minha voz não ressoa, mas produz efeito. Tanto assim que os homens empunham logo o pau da rede e me erguem aos ombros. E eu vou seguindo, o rosto voltado para a primeira estrela. Um era careca, o outro tinha bigode. Atravessaram o pântano. Se não conhecessem tão bem o caminho, ficaríamos os três atolados na lama. Quase não se falavam. — Espanta a varejeira da testa, gritei para o careca... Isto é, quis gritar. O homem sacudiu a cabeça. — Por menos de quatrocentas pratas, nós voltamos com ele, disse o de bigode. — Até trezentos, a gente fecha o negócio, responde o careca. — Vosmecê vê que ele nem tá cheirando!... Era a minha vantagem sobre o concorrente. Pelo que percebi da conversa deles, e pela marcha batida em que vínhamos, o outro devia ser alcançado na curva do Bananal, antes de o sol raiar. A esse pensamento, trocaram-me de ombro e apressaram a marcha. Surgiram na cerração as primeiras mulheres que se encaminhavam para o eito. Ao darem comigo, caíram de joelhos, persignando-se. A mais moça fez uma pergunta; a que só de longe o careca respondeu: — Foi tiro, não; morte de Deus. — Toca depressa, toca! gritava eu sem poder gritar. Receavam os homens que outros cadáveres, além do que seguia à frente, estivessem afluindo ao mesmo tempo para o Arraial Novo. Morrer, sempre se morre por estas terras abandonadas. Mas com a friagem dos últimos dias e o advento dos caminhões, contando-se bem, é fácil encontrar defunto apodrecendo pelos caminhos, ou dentro da mata. O interesse dos que me carregavam era chegar primeiro e negociar depressa os despojos: o meu, era ganhar a corrida com o colega que ia na frente. — O outro já deve estar perto, diz o de bigode. Tá largando catinga... Surge ao longe um bananal oscilando suas folhas tostadas de vento frio. Experimento certo bem-estar, como nunca na vida. Não propriamente um bem-estar comum, mas o sentimento, quase apagado em mim, quando me apanharam na grota, de que ainda vagueio e vaguearei algum tempo pelas imediações de meu corpo. Mais de quarenta anos tem esta carcaça. À frente dela vou seguindo, como a projeção de uma luz distanciada mas não excluída de sua lanterna. Que bom este passeio! Tudo tão fluido que posso perceber o que se faz e acontece na área mais próxima de meu corpo. E lá vai o tropeiro Fagundes — eu me chamava Fagundes (Fagundes?) — descendo de rede para o cemitério do Arraial Novo!... Por que, nesse arraial, tanta pressa em inaugurá-lo? Por que não esperar pelos defuntos da localidade? A vida lá é boa, eu sei. Tem aguadas, milharais, moinhos; terras férteis e homens fortes. Ninguém há de querer morrer ali, só para estrear cemitério!... — Eh, Bigode!... Eh, Careca! Depressa!... No Ribeirão das Mulatas alcançamos os outros. Vão perder a partida. Além do mais, a mercadoria que oferecem apodrece tão depressa que será capaz de ser recusada, mesmo que chegue em primeiro lugar; ao passo que meu corpo, magro e curtido, parece intacto. E os meus homens passaram silenciosos. Os do outro defunto olharam com raiva. Meus fluidos atravessaram depressa aquela área, como que fugindo ao mau cheiro... Ao avistarem o arraial que sorria ao longe, no meio do arvoredo, os dois homens suspiraram. Fui recebido por um bando de crianças em meio do latido geral dos cães. Colocaram-me num estrado que me esperava no centro da igrejinha. Correram a avisar a professora rural, enquanto os meus carregadores, à porta, discutiam o preço. Os curiosos foram chegando. Descobriram-me a cara. Era a primeira vez que viam defunto. Ante o meu dente único plantado na gengiva esbranquiçada, puseram-se a rir. A maioria eram rapazes. — Agora o cemitério vai ser cemitério mesmo, dizia um. — Lá se vai o nosso campo de futebol! suspirava outro. — Acho que não se devia recorrer a defunto de fora, opinava um terceiro. — Uma vergonha para nossa terra! Entrou um cachorro. Dentro da pequena nave ecoavam-lhe os latidos. Entrou em seguida uma velha que se ajoelhou junto de mim, impondo silêncio aos rapazes e ao cachorro. Ao se retirarem de lenço ao nariz, os moços tropeçaram na escadaria com um fardo que cheirava mal, envolto em jornais e folhas de bananeira. Era o outro. Com bastante atraso, numa carrocinha, vinha chegando o terceiro concorrente. Três defuntos ao todo. Os rapazes indignaram-se. Era a invasão do Arraial por gente podre. Revoltante, aquilo. Foram queixar-se ao Fundador: na pressa de inaugurar o cemitério as mulheres inundam o povoado de cadáveres! Um, ainda passava. Mas tantos assim!... Não acha um perigo, Fundador? Assim chamava todo mundo a esse velho robusto, três vezes casado, figura principal e dono de quase todo o povoado, que enchera de filhos e netos. — Vocês se entendam com as mulheres. Elas que inventaram esse negócio de cemitério. Eu, por mim, quando chegar a minha hora, vou morrer sozinho lá em cima, no mato, já disse. Um dos jovens entristeceu subitamente. — Não se amofine, rapaz, disse o Fundador batendo-lhe no ombro. Mandarei fazer outro campo para vocês. — Não estou pensando no campo. Me refiro aos defuntos. — Ele está fingindo, Fundador! interveio o companheiro. Está com o sentido é no campo mesmo. Não pensa noutra coisa. Eu também. Nosso clube foi desafiado, o senhor sabe. Estávamos treinando todos os dias. Agora, depois desse enterro, como é que vai ser? E com certa astúcia: — O senhor não acha que um só defunto é pouco para dar àquilo um ar de cemitério? Ainda mais um sujeito que ninguém conhece... que nem é cidadão do Arraial. — Isso mesmo, isso mesmo! ciciava eu aos ouvidos do rapaz. Mas ele não me ouvia, não me podia ouvir... — São vocês os culpados, disse o Fundador. Eu mandei abrir um cemitério, vocês fizeram um campo de futebol. — Saiu sem querer, Fundador, saiu sem querer... — Até as medidas são iguais, me disseram! Calou-se o primeiro rapaz, a fisionomia transtornada. E num impulso de paixão que lhe venceu a timidez, dirigiu-se ao velho: — Fundador, nós nunca tivemos disso aqui! Ninguém falava em morte. Todo mundo só pensava em trabalhar e viver. O senhor bem que podia salvar o nosso time. O jogo está marcado para o fim do mês. Virá gente da redondeza. Nosso clube é novo, mas a vitória é certa. Vai ser uma honra para o Arraial. Se o senhor deixar, nós damos um jeito no cadáver, adia-se a inauguração e em três semanas fazemos outro cemitério. Talvez até melhor do que este... — Agora é tarde, respondeu o Fundador. Realmente, era tarde. As velhas já me tinham lavado e agora me vestiam. Nunca me vi tão bem trajado. Larguei os trapos; enfiaram-me um casaco impreciso e negro, entre jaquetão e fraque. Fiquei um defunto bem passável. Pelo menos, limpo. A professora assumiu um ar doloroso. Vestida também de preto, a face chorosa, embora sem lágrima - era a dona do enterro. Cercavam-na outras mulheres. Conduzia-se como se fora a minha viúva. Notaram os rapazes nos modos reticentes do Fundador certa indiferença pelos preparativos do enterro. Combinaram não comparecer. Faziam mesmo trabalho surdo contra a cerimônia da inauguração. Serviam-se de dois argumentos: um, que eu não era do lugar; outro que, enchendo-se o povoado de cadáveres, uma epidemia era iminente ali. Se alguém duvidasse, fosse perguntar aos doutores da cidade vizinha. O Fundador invalidou o último argumento mandando fechar as estradas e enterrar logo os defuntos restantes. À outra razão responderam as mulheres que ninguém sabe quando o nosso dia chegará. Que destino se daria então à nossa carne? Os rapazes ouviram desconcertados. Jamais cuidaram de tal coisa. — Sim, é porque vocês são moços, não pensam nisso, insistiam as mulheres. Saibam que não é só de velhice que se morre neste mundo. Vamos pensar um pouco no futuro. Lembrem-se de que a morte anda pegada à nossa pele. E como os sinos começassem a repicar forte anunciando o meu enterro para o dia seguinte, os rapazes se retiraram desanimados. Desceram até a pracinha. Um sentimento novo amargava-lhes o coração. — Tudo perdido. Temos que mandar avisar que o jogo foi adiado. Que azar! Na conversa junto ao chafariz, circulavam uns termos até então desconhecidos no Arraial: "esquife", "féretro", "funeral" e outros, lançados pela professora. As moças não pareciam tristes. Iam perder o futebol, é verdade; em compensação, o enterro valeria a pena como festa. A primeira cerimônia pública desse gênero que se ia realizar no Arraial. Muitas ficaram em casa, preparando os vestidos. Vendo-me de preto entre círios e mulheres que rezavam ou fingiam rezar — os rapazes se impressionaram. Ecoava neles a advertência fúnebre da velha, reforçada agora pelo sino que não parava de tocar. Desistiram da campanha contra o enterro. A cancha ia mesmo virar cemitério... Eu estava de fato um defunto convincente. As crianças trepavam para espiar, e recuavam de pavor, repelidas sempre pela ponta de lança de meu dente único. No dia seguinte, o povoado acordou cedo. Fora uma noite diferente, noite em que cada um se deitara com a convicção de que eu estava presente a seu lado. Os cães ganiam a cada minuto. Ninguém punha o rosto à janela. Para todos, eu era um defunto imenso e difuso, presidindo à noite do Arraial. Na verdade, não passei um minuto sequer junto a meu corpo. Quem se incumbira disso fora a professora e uma velha. Flutuei por cima dos telhados, penetrei de mansinho nos lares. Quedei-me junto de várias criaturas, acompanhei-lhes os movimentos íntimos. Como toda essa gente é. simples, a portas fechadas! De alguns que dormitavam toquei-lhes de leve a nuca. Apenas toquei. O suficiente para apreciar-lhes o estremecimento de pavor. Ninguém me viu. Senti não poder apresentar meu vulto em forma de vapor, como no tempo em que se acreditava em fantasmas. Nem mesmo consegui apagar as lamparinas acesas por minha causa. Talvez porque meus fluidos estivessem enfraquecendo, talvez porque não tardasse a desintegração de meu corpo. Estou reduzido ao mínimo, pensei. Mas posso perfeitamente dar uma chegadinha até o cemitério, onde vão instalar-me hoje à tarde. O portão foi colocado, os muros caiados de novo. A cova está aberta. Retiraram as traves do gol. Foi pena. Aquilo tinha mesmo formato de cancha de futebol, mais que de campo-santo. Não sei como vão se arranjar agora os rapazes. O sino começa a badalar. Os cachorros põem-se a latir. Está chegando a hora. Eu me recolho aonde se acha meu cadáver para assistir ao saimento. Lá está a mesma mulher. (— Mas a senhora não me larga, professora!) Ah, se eu pudesse articular as palavras. Que olheiras as dela, que maneira suspeita de olhar para um corpo morto. Já vou sendo levado. O ambiente é festivo. Todo mundo me acompanha exceto o Fundador. Alegou que precisava cortar uns toros lá em cima, deixou Dona Maria doente e grávida na cama, sumiu-se. Não quer saber de nada com a morte; diz que não gosta de cemitério. Eu também não gosto. Principalmente nas condições em que estou sendo enterrado, com esse péssimo sino que mais parece batucada confusa e sem ritmo. Nunca ouvi tocar tão mal a finados. A população me acompanha com relativa decência. Pelo menos, faz o possível. Os rapazes compareceram, afinal. Friamente. Sob a aparência fúnebre, as senhoras escondem certo entusiasmo. Algumas quase sorrindo. Estou perto, e estou vendo. De vez em quando se lembram e simulam consternação. Consternação verdadeira, porém, reina atrás, perto da bandinha de música, onde os rapazes deploram ainda a perda do campo. Como compensação, namoram as moças. — Aqui não, diz uma. Olha o morto. — Deixa, deixa que ele te aperte, moça — insuflo aos ouvidos dela. Não te preocupes com o que vai lá na frente; aquilo é apenas um corpo abandonado, arranjo de velhas que só pensam na morte. Parece que a moça me atendeu... O préstito atravessa o portão de ferro. Meu caixão é colocado perto de seu lugar definitivo. Começo a achar aborrecido o papel a que me obrigaram. Despertar tantas idéias tristes numa aldeia tão despreocupada!... Não reclamo nenhum respeito pelo meu corpo. Será que já está descendo à sepultura? Um momento. Deixem-me voar até lá... O padre terminava as palavras em latim. Referiu-se depois ao significado da cerimônia: entregava aos futuros mortos do Arraial Novo a sua verdadeira morada; e exortava o povo "a que pensasse sempre na morte!" Quando terminou, todos olhavam para o chão e simulavam tristeza. Ouviu-se em seguida a voz bonita do vereador distrital. Disse que ali se enterrava um dos últimos tropeiros do nosso amado sertão, "raça que se extingue -ante a avançada progressista dos caminhões"; que me conhecera (onde? como? se nunca me viu, se nunca votei!) e tinha importante declaração a fazer: "Eu não era um defunto estranho ao local, nascera ali mesmo!..." Baixa demagogia... Pois se o Arraial não tinha trinta anos! Os rapazes sorriram. E resolveram, baixinho, expulsar do clube o sujeito amarelento que se prestara ao papel de coveiro. A professora avança e dá instruções. As moças me cercam e eu me surpreendo numa onda de alegria indefinida. Aura de juventude emanando delas! Que fazer de tanta primavera desaproveitada? Meus fluidos roçam-lhes o colo. Somente os fluidos. A invisível carícia arrepia-lhes a pele, enquanto a musiquinha toca uma coisa triste debaixo das árvores. Que se passou com elas que enrubesceram de repente? Algumas cruzam os braços ou tapam com o xale o busto arrepiado; outras se escondem, perturbadas, no meio do povo. Está na hora de eu ir para o fundo. Quem é que me aparece à boca do buraco? A mula com a cangalha! Ó mulinha, ainda bem que não esqueceste o antigo dono. Coitada! Meio desmanchada, como um brinquedo abandonado... Logo atrás, sorrindo com os dentes brancos, a metade do corpo comida pela sombra, quem vejo? Isabela! — Tu te lembras, pretinha, daquele banho no ribeirão? o único momento bom de minha vida. Ah! agora não posso, mulinha!... Agora não posso, Isabela! Pois vocês não vêem que estou muito ocupado, inaugurando?! Os rojões explodem, rejubilam-se as velhas. Só não conseguem chorar. E com frenesi atiram sobre o meu corpo uma chuva de pétalas. Em seguida, torrões de terra, como se me apedrejassem. Abraçam-se e despedem-se felizes. Tinham arranjado sede para os seus despojos. O portão foi fechado. E eu fiquei lá dentro, como ovo de indez. A espera dos mortos que hão de vir... Fiquei, é modo de dizer; saía sempre. A idéia de corpo sepultado sossegou a princípio os meus fluidos. Durante dias perdi a memória; alguma interrupção, talvez mergulho mais demorado no vazio. O fato é que reapareci depois. E ainda há pouco dei um giro até à pracinha. Há lá um arbusto onde gosto de ficar. Uma moça que passava perto parou de repente, assustada, olhando para mim, sem me ver. Tratei de voltar logo ao cemitério. E foi bom, pois um vira-lata, o mesmo da chegada, o que mais latiu na igreja e rosnou todo tempo no enterro, o cachorro de sempre, esgravatava com fúria o meu túmulo em direção aos ossos! E eu, pensando em seus dentes, experimentava a sensação de mal-estar análoga à que em vida se chama pavor. Afinal de contas, é mesmo ao meu corpo que pertenço; dele não devo afastar-me muito, sem risco de me dissolver para sempre. Francamente, o que não me agrada é ser o usufrutuário único deste local. Se uma só andorinha não faz verão - disseram os rapazes -, uma única sepultura não devia fazer cemitério. Deram para chegar atrasados e abatidos ao eito. Põem-se a sorrir quando encontram as velhas. Elas não compreendem, sentem-se satisfeitas com o seu cemitério. O Fundador desconfia, mas finge que não sabe. E para ter a certeza, usa um estratagema: — Para apanhar? — Que jeito! Não temos onde treinar... — Então? Ficou de pé o desafio? — Nós jogaremos assim mesmo. — Por que não falam com a professora? Ela tem a chave do portão. — Mas só abre quando vai rezar lá dentro. — Para um morto que não conhecem... acrescentou o outro. — É isso mesmo, exclama o Fundador. Inventaram a morte no Arraial Novo! As velhas, de fato, não largam o cemitério. Entram ao cair da tarde e se ajoelham. Não rezam por mim, rezam pelo futuro defunto, rezam para a morte. Há pouco, entrou a professora. Debruçada sobre a sepultura não fez senão murmurar: — José, meu José... Ora, eu não me chamo José... Esqueci meu nome, é verdade; mas sei que não era José... Razão tem o Fundador. O espírito da morte apoderou-se do Arraial. Ainda ontem senti isso quando estive pousado nos arbustos da pracinha. Todo mundo silencioso e triste, aguardando a abertura da igreja. Só não vi os rapazes. É o cemitério, pensei; é a minha presença! De alguns dias para cá, se uma parte da população se entrega aos trabalhos de rotina, a outra se ocupa em interrogar a alma. As velhas dizem que se alguma dúvida houver, é só passar a noite pelas imediações. Ouvem-se barulhos estranhos, estrupidos de correria. E se não fosse o rumor dos moinhos, todo o arraial poderia escutar. Ao saber disso, tomou-se a população de certo orgulho: já havia fantasmas no cemitério do Arraial Novo! Um defunto extranumerário, um simples tropeiro tivera a força de transformar em campo-santo uma área terraplenada, logradouro inexpressivo antes. Que todos respeitassem agora o cemitério com as almas que nele transitam!... Essas almas eram quase sempre vinte e duas, fora as que permaneciam a certa distância, olhando apenas. Escalavam o muro e, uma vez lá dentro, vestiam depressa os calções. As lavadeiras que passavam perto mal ouviam o barulho, saíam correndo. Se tivessem coragem de verificar, poderiam reconhecer vultos familiares sob o projetor da lua cheia. Eu adorava ficar ali. Acompanhava o movimento do jogo. Torcia. Metia-me no meio dos jogadores. Só faltava gritar. Não sei como ninguém dava pela minha presença. A bola saltava às vezes o muro e ia aninhar-se no capinzal de fora. Um dos jogadores cobria-se de uma capa escura e saía a buscá-la. O jogo então recomeçava forte. De repente, fora de propósito, parava. — Que houve? quem apitou? Ninguém apitara. Era eu que soprara no apito do juiz. Muitas e muitas vezes intervinha sem que ninguém soubesse, só para animar, só para mostrar que me achava ali, vendo, participando. Substituído o juiz, as marcações continuavam desencontradas. Ninguém desconfiava. Antes de raiar a madrugada, esvaziava-se o campo. Os "fantasmas" seguiam para o eito e eu ficava... Ficava... Era bem triste, à hora quente dos comentários, continuar sozinho ali. Deliciava-me só de pensar em novas noites de jogo. Às vezes os rapazes demoravam, e eu me tornava impaciente. Primeiro, atiravam a bola. Sabia então que estavam perto, preparando-se para a escalada. A bola corria até para junto de minha sepultura. Despertado do sono, eu subia depressa no muro e, sem garganta, sem voz, punha-me a chamá-los. Iniciava-se então mais uma partida animada. Evitei repetir a proeza do apito, não só porque podia afugentar os jogadores, privando-me do espetáculo, como pelo receio de submeter a uma prova infeliz a força cada vez menor de meus fluidos. As velhas já desconfiavam. Não todas. E, por certo, nenhuma, se a professora não deparasse com a minha cruz de madeira caída ao chão. Culpa dos rapazes que se esqueceram de recolocá-la quando, da última vez, fugiram do sol que raiara depressa. — Fantasma não faz isso, disse a professora, suspeitosa. Quem teria sido? As mulheres foram de novo queixar-se ao Fundador: — Isso não é comigo. Falem com D. Maria, mas depois que nascer a criança, pois a minha velha já está em dores. — Mas jogaram uma bola na cruz! É uma profanação! exclamava a professora. — Deve ter sido algum fantasma, explicava um dos rapazes. — Ou então chutaram de fora, disse outro. — O muro não deixa, insistiu uma das mulheres. — Só se foi um tiro de parábola e aqui ninguém sabe chutar assim... — O Zequinha, lembrou o coveiro, chuta suspendendo a bola. Ora, todo mundo sabe que Zequinha fugiu com a mulher do vereador. Jogava tão bem, que ela fugiu com ele... Os rapazes só contavam agora com a mediação de Dona Maria que não estava bem, depois que lhe nascera a criança. Daí por diante, nunca mais se bateu bola no cemitério. Reforçada a vigilância, meus fantasmas não apareciam. Fiquei mais triste. Agora, nem para voar até o arraial tenho força. Para nada, aliás, tenho mais forças. Já não percebo bem o que se passa atrás dos muros. A paisagem se dissolve ao meu olhar que está se apagando. Parece que ainda resta para os ouvidos um canto de lavadeira batendo roupa. Tão longe... Mas está acontecendo qualquer coisa lá na entrada. O portão se abriu todo! O povo chegando!... Ah, é a senhora?! Pois entre, a casa é sua... Eu, sozinho, já não podia responder por todo este cemitério. Estou sumindo... O espaço endureceu. Meu prazo terminou. Só vejo figuras opacas imobilizadas no gesto de chutar a bola. E essa coisa fixa, mancha final de luz remota que deve ser o Sol. Entre, Dona Maria. Sirva-se de seu cemitério...

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Amor - O Interminável Aprendizado Affonso Romano de Sant'Anna

Criança, ele pensava: amor, coisa que os adultos sabem. Via-os aos pares namorando nos portões enluarados se entrebuscando numa aflição feliz de mãos na folhagem das anáguas. Via-os noivos se comprometendo à luz da sala ante a família, ante as mobílias; via-os casados, um ancorado no corpo do outro, e pensava: amor, coisa-para-depois, um depois-adulto-aprendizado. Se enganava. Se enganava porque o aprendizado de amor não tem começo nem é privilégio aos adultos reservado. Sim, o amor é um interminável aprendizado. Por isto se enganava enquanto olhava com os colegas, de dentro dos arbustos do jardim, os casais que nos portões se amavam. Sim, se pesquisavam numa prospecção de veios e grutas, num desdobramento de noturnos mapas seguindo o astrolábio dos luares, mas nem por isto se encontravam. E quando algum amante desaparecia ou se afastava, não era porque estava saciado. Isto aprenderia depois. É que fora buscar outro amor, a busca recomeçara, pois a fome de amor não sabia nunca, como ali já não se saciara. De fato, reparando nos vizinhos, podia observar. Mesmo os casados, atrás da aparente tranqüilidade, continuavam inquietos. Alguns eram mais indiscretos. A vizinha casada deu para namorar. Aquele que era um crente fiel, sempre na igreja, um dia jogou tudo para cima e amigou-se com uma jovem. E a mulher que morava em frente da farmácia, tão doméstica e feliz, de repente fugiu com um boêmio, largando marido e filhos. Então, constatou, de novo se enganara. Os adultos, mesmo os casados, embora pareçam um porto onde as naus já atracaram, os adultos, mesmo os casados, que parecem arbustos cujas raízes já se entrançaram, eles também não sabem, estão no meio da viagem, e só eles sabem quantas tempestades enfrentaram e quantas vezes naufragaram. Depois de folhear um, dez, centenas de corpos avulsos tentando o amor verbalizar, entrou numa biblioteca. Ali estavam as grandes paixões. Os poetas e novelistas deveriam saber das coisas. Julietas se debruçavam apunhaladas sobre o corpo morto dos Romeus, Tristãos e Isoldas tomavam o filtro do amor e ficavam condenados à traição daqueles que mais amavam e sem poderem realizar o amor. O amor se procurava. E se encontrando, desesperava, se afastava, desencontrava. Então, pensou: há o amor, há o desejo e há a paixão. O desejo é assim: quer imediata e pronta realização. É indistinto. Por alguém que, de repente, se ilumina nas taças de uma festa, por alguém que de repente dobra a perna de uma maneira irresistivelmente feminina. Já a paixão é outra coisa. O desejo não é nada pessoal. A paixão é um vendaval. Funde um no outro, é egoísta e, em muitos casos, fatal. O amor soma desejo e paixão, é a arte das artes, é arte final. Mas reparou: amor às vezes coincide com a paixão, às vezes não. Amor às vezes coincide com o desejo, às vezes não. Amor às vezes coincide com o casamento, às vezes não. E mais complicado ainda: amor às vezes coincide com o amor, às vezes não. Absurdo. Como pode o amor não coincidir consigo mesmo? Adolescente amava de um jeito. Adulto amava melhormente de outro. Quando viesse a velhice, como amaria finalmente? Há um amor dos vinte, um amor dos cinqüenta e outro dos oitenta? Coisa de demente. Não era só a estória e as estórias do seu amor. Na história universal do amor, amou-se sempre diferentemente, embora parecesse ser sempre o mesmo amor de antigamente. Estava sempre perplexo. Olhava para os outros, olhava para si mesmo ensimesmado. Não havia jeito. O amor era o mesmo e sempre diferenciado. O amor se aprendia sempre, mas do amor não terminava nunca o aprendizado. Optou por aceitar a sua ignorância. Em matéria de amor, escolar, era um repetente conformado. E na escola do amor declarou-se eternamente matriculado.

terça-feira, 17 de abril de 2012

O vampiro da Alameda Casabranca Márcia Denser

A não ser pelo filme japonês em cartaz, não havia nenhum interessem sair com aquele sujeito, poeta, que se ostentava como "maldito" só para poder filar seu canapezinho de caviar nas altas rodas. Um guru de fachada, meio sobre o charlatão cósmico, adepto que era de uma esotérica seita oriental, babaca como tantas outras, e usando tudo isso em proveito próprio. Pelo menos não era burro. Disso resultavam as sessões de massagem transcendental nas madames com hora marcada, ou mesmo sem ela, ao sabor das prisões de ventre, dores de corno e outras piorréias. Não era mesmo burro. Feioso, devia viver faminto de carne fresca mas, passando-se por espiritual, ia tirando suas casquinhas. A conversa era inconsistente, cheia de expressões pedantes e, até pela sintaxe, tão emaranhada em meandros que obviamente não levavam a parte alguma, notava-se a eterna fome do cara. Uma espécie de vaga ansiedade piedosa de algo que rodeia e rodeia aquilo que seria um alvo não tivesse ele em mira outra coisa. Por exemplo: enquanto sua boca passeava pela evolução da energia cósmica, seus olhos hipnotizavam-se (bem como toda a sua alma) num ponto qualquer entre meus seios, e a energia cósmica ia e vinha, subia e descia, jamais se perdia, enrolava e se desenrolava, mas não chegava a nenhum lugar, uma vez que o verdadeiro objeto daquele papo estéril permanecia fora de alcance. A arenga também seria hipnotizante: eu me sentia como uma criança birrenta que não quer dormir ou um animal relutante em cair na armadilha. O tal filme japonês fora realmente bom, um monumento poético, um estudo profundo sobre as paixões humanas, etc. e assim eu poderia falar sobre ele ad nauseam, mas o Poeta apenas emitiu suas impressões assim: "É barra! Que barra! É uma barra!" dizendo-as de maneiras diferentes e impostando a voz num diapasão enfático que partia da traquéia, explodindo num ruído seco e rouco, feito um peido bucal, e como se a palavra "barra" contivesse, não digo o significado de todo o universo, mas, pelo menos, de todo o filme. Isso no fim da fita. Durante esteve todo o tempo tentando pegar no meu braço. Um verdadeiro saco. Então eu me perguntava: por que sair com aquele cara? Era desses feriados tediosos, todos os amigos queridos, todos os sujeitos interessantes, todas as amigas disponíveis viajando, restando os neuróticos, os chatos e os vampiros na cidade. Já era uma boa razão. Depois, eu apenas desconfiava de tudo isso, ainda não configurara uma imagem nítida do Poeta na minha cabeça. Na hora "H" fico possuída duma puxa-saquice pânica por agradar, mais preocupada com o efeito que com o objeto propriamente dito. Posso acabar fascinando Drácula em pessoa, sem dar pela coisa. Daí me livrar do monstro já é outra estória. Como nesses clássicos de horror, ao sairmos do cinema "um vento gélido açoitou-nos os ossos". Confesso que não fiquei surpreendida quando o Poeta sugeriu passarmos no seu apartamento para pegar um pulôver, coitadinho. Antes tentei aliciá-lo para uma cave de queijos e vinhos, mas ele não entrou. Também não queria ser grossa ou passar por retrô ou sei lá. No fundo, no fundo, estava querendo ver até onde ia o meu fascínio — e eu sei onde vai o meu fascínio — com o Poeta. Sabe-se lá. No apartamento (não fosse pelo excesso de cartazes politicosos, até que bem jeitoso. Um tanto "artístico-displicente" demais, eu acho, como tantos outros onde eu estivera, de poetinhas, atores de teatro, bichas. São todos iguais. Deve ser a fada madrinha) eu aproveitei meu fascínio ao máximo. Munida dos meus trabalhos, submeti o Poeta a uma intermitente sessão de leitura dos melhores trechos por umas duas horas. Minhas estórias são boas, mas lidas assim, no tapete, bebendo um bom vinho tinto, um fogo aqui dentro, ar condicionado, almofadas e mantas peruanas, música suave e um sujeito querendo me comer ali do lado, não há talento que resista. Então, ele me submeteu a mais duas horas de suas poesias, aliás inéditas. Se fossem boas até que valeria o esforço, o fascínio, a atenção fingida (tinha ganas de estourar de rir cada vez que ele pigarreava, afivelando um ar circunspeto, como se preparando para ler um discurso, um obituário, um testamento, enfim, algo muitíssimo sério), o vinho, aquele apartamento, o filme japonês, os feriados, aquelas profundas crateras que lhe sulcavam o rosto, o ligeiro cheirinho oleoso e adocicado que se desprendia delas, a mania de falar de si próprio na terceira pessoa, como se fosse um fantasma, o fato de ser careca de um lado só, daí o cabelo restante se amontoar num topete atrás da orelha esquerda, enfim, mas não eram. Não eram mesmo. Ocas, delírios vagos, desconexos, de um concretismo de cabeça dura e reticências. Na mesma construção e com a mesma ênfase conviviam vísceras e sangue, cosmos e eternidade, como se essas palavras não significassem nada além de meros sons poéticos convencionais. Quando a coisa começava a esquentar, ele sempre botava as tais palavras definitivas como Deus, Espaço, Eternidade, Morte, e esquecia as preposições, tornando tudo assim delirantemente obscuro, como se possuísse uma chave, um código para sua decifração. Para os leigos, as garotas bonitas e os novos-ricos, quanto menos se entende mais a coisa deve ser boa. Palavras bonitas é igual a idéias bonitas. É gongórico, é elementar. O Poeta conhecia muito bem esse princípio e aplicava-o até à exaustão. A minha, por exemplo. Na verdade, algumas eram até sofríveis, mas parece que o sujeito tinha um cadeado no cérebro. Estava prisioneiro. Não se enfrentava. E se começava a botar a mão na merda, lá vinha ele com seus deuses e demônios anti-sépticos, para levar todos os pecados. Pelo menos os dele. Se achava que os tinha. Ser feio, por exemplo, era um. Equilibrava-se definindo-se "pedante e sofisticado". Supunha-se, dessa forma, inacessível. Enganava só os trouxas. Na conversa, Poeta mencionou uma festa. Amigos intelectuais, etc. Então vamos, me animei, e fui emergindo das almofadas, procurando as botas debaixo do sofá, espantando cobertores, relanceando um olhar melancólico para as garrafas vazias, mas ele me reteve. Ainda não, disse, fixando-me um olhar tigrino cor de petróleo. Era como um aquário, a exposição, atrás do vidro córneo, do que havia no interior de suas espinhas mortas: óleo diesel. O pequeno deus Caracol, o deus dos covardes, deve habitar em mim, pois foi ele que me fez encolher, puxando consigo todas as terminais nervosas, todas as sensações de prazer e dor, toda alegria, todo pranto, e me transformar num penhasco árido, num terreno baldio entregue às varejeiras, aos cacos de vidro, lixo, mato ralo, aos cães vira-latas, e aos teus beijos, Poeta. Uma zoeira distante no ouvido, uma sensação incômoda nas costelas, a boca seca avisaram-me que bastava. Fui me desprendendo aos poucos. Tarefa, aliás, bastante embaraçosa. Eu diria hilariante, se não fosse parte ativa. Parecíamos atores de um filme do Harold Lloyd. Eu puxando de cá, ele de lá. Um escorregão providencial da minha parte (estávamos em pé) decidiu a contenda. Fomos à festa. A primeira coisa que chamou minha atenção foi que o dono da casa — por sinal, um belíssimo rapaz — usava, atadas na manga da camisa, duas fitas de seda nas cores da bandeira nacional. Assim como os rapazes da TFP, a juventude de Hitler, os pupilos de Mussolini. Como um ungido, a marca da distinção, do bem-nascido, bem-dotado, bem rico, a nata, a perfeição e vocês fora! E viva Nietzsche e o quarto Reich, logo, o General Pinochet, Idi Amin, Pol Pot, Gengis Khan e a Revolução de 64. Puxei-o pela manga: o que é isso? Sorriu com seus olhos azuis de água doce: Não é um belo país? É. Olhei a mesa: vinhos franceses, queijos suíços, baixela húngara, guarnições de renda austríaca, charutos cubanos, vodca russa, cigarros americanos. Belíssimo país. Belo mesmo é você, pensei cinicamente, cobiçando a belezinha de jovem fascista e seus brinquedinhos, entre eles uma linda esposa loura e psicóloga formada pelo período da tarde do Cursinho Objetivo, altura e peso ideais segundo a revista Cláudia e preocupadíssima com seus encargos de anfitriã (repetiu neuroticamente a noite toda que "a previsão falhou" a propósito de haver terminado o queijo de nozes antes das duas da matina). E os intelectuais? Da "festa" constavam exatamente dez pessoas. Além dos anfitriões, eu e o Poeta/Profeta, havia um outro casal composto de um sujeito enorme, estilo CroMagnon, filho de general, com o curioso nome de Ciro, faixa preta em caratê e que me foi apresentado como um pintor maravilhoso, porém desiludido (o pessoal devia ser positivamente cego) e cocainômano ativo, acompanhado por uma garota misto de Dama das Camélias e Madrasta da Branca de Neve: profundas olheiras azuladas, cabelos crespos e negros acentuando oleosamente o rosto pálido, ossudo, lunar, quase transparente, usando uma camisa branca também transparente (seios nada transparentes) sem sutiã e, a chamar a atenção de todos para os seus pés feridos pelas sapatilha de bailarina? Não sei. A cidade está cheia desses cursinhos de balé e bordado, freqüentados por jovens em idade de casar e manter a forma. Para compensar as festinhas movidas a vinho, coca e mau humor de suas excelências, seus namorados, pelos quais elas são capazes de se foder por toda eternidade, em troca de um sobrenome enganchado no rabo e um apartamento nos Jardins: os homens têm as angústias, as mulheres, os interesses, e por aí vai. Roger, o intelectual oficial, amigo do Poeta de proveta, um sujeitinho magricela, insignificante, (essa palavra é enorme!), apagado na minha memória, acompanhava uma cooperante do governo americano junto ao Brasil, uma garota da Califórnia com cara de porto-riquenha. Ela deveria detestar aquela cara tropical, a pele morena, cabelos negros cortados rente, como se pagando uma pena, os olhos escuros feito morcegos assustados, encolhidos no fundo da fisionomia. Que fazer se sua mãe havia pulado o muro do México? Roger, o colonizado, desmanchava-se em atenções para com o produto de Tio Sam, mas eu imagino que, para ele, bastaria qualquer coisa, uma lata de sopa Campbell, digamos. Que representasse a civilização, a cultura superior, etc. Razões inconfessáveis. Não via nela apenas uma garota assustada num país estranho. Assim como eu não enxergava o aspecto repugnante do meu guru-poeta. Tampava o nariz, os olhos, a boca, e o engolia em nome de uma vaidade idiota. Presentes também um par de primos dentuços e noivos que se despediram cedo. Eu aposto que pra ver televisão e se agarrar no sofá. A madrugada evoluiu naquele apartamento neoclássico, com ativa movimentação de garrafas de vinho, rodadas de coca, camembert rançoso e conversas idiotas. Já estava amanhecendo e restavam os donos da casa, Ciro, Branca de Neve, Poeta e eu, já me sentindo completamente onipotente. Sentimento provavelmente compartilhado por todos, uma vez que a conversa girava sobre vida extraterrena, enquanto Brinquedinho raspava com uma pazinha de sorvete os restos de pó grudados no bumbum da garota na capa da revista Playboy. Excelente anfitriã. Belo Fascista inquiria o Poeta: —Você, Klaus, que é um cara ligado nessas coisas, e entende paca, já deve ter tido revelações, não? — Bem — começou o outro — pode-se dizer que nós (falava sempre no plural, aludindo estranhamente uma cumplicidade invisível. Quem sabe com os deuses.) chegamos a fazer vários contatos realmente inexplicáveis, eu diria, por exemplo, quando morreu a Dorinha... — A Dorinha não morreu trovejou Ciro, olhos vidrados numa faca de cortar frios. — Talvez sim, talvez não condescendeu misteriosamente Klaus — muitos de nós já chegaram a... — Besteiras, não há nada — cortei. Estive lá em cima e vi: estão todos mortos. E voltando-me para o meu anfitrião: Um trechinho de seu autor predileto, beleza... — Como? — Belo Fascista arregalava os doces olhos azuis. — Ela divaga — Poeta endereçou-me um olhar enviesado — mas como eu dizia, a Dorinha... — Agora que estou vendo — interrompi novamente. De repente, Ciro e Branca de Neve me pareceram estranhíssimos: ele enorme, truculento, ela frágil, meio amalucada... — Vocês não têm nada a ver, não é? Sorria para ambos como abençoando-os. Klaus, desorientado, arreganhava os dentes, desculpando sua convidada. — Terrível, terrível, arfava Branca de Neve. — Pensando bem, acho que a garota tem razão, Ciro não tirava os olhos da faca, —E como é que vocês tre. . . Um violento cutucão do Guru, debaixo da mesa, fez-me engolir o resto da frase. Depois disso, fui mergulhando cada vez mais fundo num burburinho ácido e esbranquiçado. As frases se sucediam de cá para lá, e eu as acompanhava como bolinhas num jogo de ping-pong, apenas como bolinhas, que não são nada além de bolinhas brancas. Levantei-me e fui até a janela: É isso, pensei, sufocar a ressaca, afogá-la na boca cinzenta e azeda da manhã como num cesto de roupa suja. Esse é o preço pago pela droga consumida durante a madrugada, porque a droga tem o segredo que afoga a náusea, o vômito, a acidez desse vinho escuro injetado nas veias desde a noite anterior, então, ao amanhecer, foi puxada a descarga, sentido um só tranco, o estômago a brecar e a gemer no alto de um prédio no Pacaembu e isso foi quase tudo. Quase porque eu ainda não terminara. Porque o vazio, após a descarga, é insuportável. O vaso sanitário ficar deserto e se tem medo de tornar a usá-lo e infectar o mundo inteiro. A náusea que se instala expulsa a razão, amedronta as palavras, e eu precisava falar que daquela madrugada ficou um gosto arrepanhado de sal de fruta, a efervescência cinza pérola do antiácido diante dos olhos e uma tristeza secreta e corrompida por me saber mole, dobrável, e ainda uma vez voltar a fazer coisas que não quero, não preciso, não desejo, todavia o álcool e a droga me levam lá, uma espécie de morte incluída nos serviços de buffet; a cada episódio eu morro, e eu morro, e eu morro de novo, e volto a me assassinar, porque contar essa estória é o mesmo que atacar a mesma mulher há anos, violentamente, por trás, e como se ela fosse virgem, então, o toque no ombro, o hálito amanhecido às minhas costas: Klaus. Haviam escurecido a sala. Silenciosamente, colocou-me o casaco e, na condição de irmãozinho mais velho, carregou-me para longe daqueles perigos. Seu apartamento, por exemplo. Lembro de um café da manhã numa mesa com toalha de plástico, e um enorme queijo de Minas. Eu estava chapadíssima, achando o queijo muito engraçado e porque não podia aparecer em casa de modo algum naquele estado. Klaus, este então parecia esmagado sob o peso da recompensa. Ele tinha mesmo uma cara amassada de vilão do faroeste depois da última briga, versão piorada entre Jack Palance e John Carradine. Cara picada pelo ressentimento e pela varíola, obtinha dormir com a mocinha sem mais aquela. Era demais. Ele vai brochar, pensei. Havia sol, mas estava frio e úmido e Poeta, muito solícito, uniu duas camas gêmeas, cobriu-as com mantas, enquanto eu me despia, obedientemente, cumprindo um ritual sem escapatória, filha de Maria, sacerdotisa de Astarté, coroinha alimentado e fodido secretamente pelo padre, eu obedecia, apenas. Fiquei de bruços, fechei os olhos, pensando: o prazer puro, o prazer puro. Não poderia ver aquele rosto agora, seria insuportável, seria inconcebível, e eu acho que ele me ficou agradecido. Mesmo assim não conseguia. Estava submerso em droga e álcool, uma chaga viva de excitação que pulsava e gemia, rilhando os dentes, pobre animal sonâmbulo imaginando-se um ser humano de carne, ossos e fezes, se esvaindo entre minhas nádegas numa tortura aplicada de movimentos ineficientes; uma vez que ele não conseguia, o animal depositava-se como um pedaço morto de carne fria junto ao meu corpo. Vamos liquidar isso, pensei. Sentia-me cansada, nauseada, azeda. A excitação esticava-se como um cordão frouxo contudo sem arrebentar. Vi pela janela a manhã alta, cor de magnésia, e disse: chega, vamos dormir. Às minhas costas, ele desabou, barraquinha de campanha, como se o tempo todo estivesse aguardando a ordem que o libertasse da prontidão. Segundos depois ressonava eloqüentemente. Adormeci pensando onde havia me metido, aquele apartamento de solteiro da Alameda Casabranca tinha algo a ver com um túmulo, gente adormecendo ao nascer do sol, falta só o punhal de prata, mas, por alguma razão maluca, não queria ir para casa e não queria ficar ali. O sono me colocou no lugar certo. Estaria sonhando com um jardineiro espanhol ou com tesouras, não sei, e acordei salgadamente sentindo algo vivo se mover, quente e alerta, entre minhas coxas. Pulei da cama, como se impulsionada por retrofoguetes: fugir, pensava, fugir, correr, vomitar, se vestir. E fui apanhando os destroços das roupas atiradas pelo quarto. Ao subir as meias, espiei com o canto do olho a cara atônita, amassada de Klaus, parecendo um pedaço carbonizado de casca de árvore na brancura de areia dos lençóis. A boca entreaberta não ousava protestar, articular nenhum som, com aquele ar de bagre estúpido, aquele ar de fóssil humano: a qualquer palavra minha, viria a réplica de bernardo-eremita na voz de fariseu sufocado e eu não queria deixar nada claro. A coisa, naquele pé, já parecia suficientemente ridícula, uma pornochanchada sinistra: ele, de pau duro debaixo das cobertas, cara de idiota, observando a mocinha se vestir num desespero vertiginoso, como se perseguida por Jack, O Estripador. Faltava vestir o casaco e me lancei para fora do quarto. Uma empregada velhíssima e cheia de varizes abriu-me a porta da rua. Desci pelas escadas. Nem cogitei estar no 15° andar. Alcançando finalmente a rua, parei ofegante. Porra, estava livre. Leve. Livre. Comecei a rir sozinha: até que fora bem gozado. Cambaleante e feliz, ri por dois quarteirões. As pessoas se voltavam, espantadas. Um perfume de pãezinhos frescos me atraiu para uma padaria cheia de colegiais e empregadinhas. Mastigando um enorme sanduíche de presunto, pedi ao vendedor a lista telefônica. Forrando página por página com lascas de pão fresco, procurei o número do Belo Fascista. Não sabia por que, mas precisava salvar a noite. Alô, uma vozinha sonada gemeu do outro lado. Reconheci Brinquedinho. Escute, princesa, falei, diga ao seu marido que preciso fazer uma substituição (era necessário ir direto ao assunto, nada de formalismos idiotas com a família e os cachorros. Tratamento de choque). O quê? A voz prosseguia estremunhando. Uma outra, de homem, metralhava abafadamente qualquer coisa. Era seca e urgente; falando aos soquinhos parecia martelar ordens. Brinquedinho explicava confusamente algo sobre a namorada de Klaus e uma substituição. Afinal, era uma objetiva formada pelo Objetivo. O que está havendo? Belo Fascista pegara o aparelho. Parecia um bocado irritado. Expliquei da melhor forma. Por fim, convidei-o para tomar café da manhã comigo, ali, na Padaria Flor de Lys, que ficava na rua... Pedi para esperar na linha enquanto ia ver. Quanto retomei o fone, apenas o ruído de discar respondeu melancolicamente ao meu apelo. Belo Fascista não tinha mesmo nenhum senso de humor. Tão bonitinho, murmurei cheia de pena. O pão terminara e enquanto esperava o troco, espiei meu rosto no espelho da balança. Borrado de rímel preto, o rouge coloria mais a face esquerda, olheiras azuladas. Igualzinha Branca de Neve. Esfregar o dedo acentuou a palidez, mas servia. Ainda não dava para espantar as crianças. Na saída, resolvi comprar outro sanduíche para ir comendo no caminho. Esquentara e eu amarrei o casaco na cintura — um casaco lindo, de veludo caramelo — e o pessoal continuou me encarando. Sempre comendo o pão, fui subindo a rua cheia de árvores verdinhas e rendilhada de sol. Lembrei de uma passagem de Faulkner no Som e a Fúria. Afinal, alcancei a Avenida Paulista suando e arrotando salame. Em frente à Casa Vogue — que não é mais a Casa Vogue — tentei pegar um táxi. Nada. Decidi ir andando. Até o Paraíso são quatro quilômetros, mas no plano. Achei razoável. Entrei no Jardim do Trianon. Um pouco de ar puro, pensei, ecologia, patos, marrecos, galinhas, desocupados. Ecologia. Comprei um saquinho de pipoca. Um garoto de seus 17 anos atirava farelo aos perus — detesto esse ar superiormente abestalhado que têm as aves em geral — e perguntei a ele se valia atirar pipoca. Lógico, disse, e enfiando a mão no meu saquinho, retirou um punhado e atirou-o aos bichos. Era um encanto de garoto, um ninfeto dos bosques, cabelos alourados de sol e piscina do clube, a camisa xadrez aberta exibia o peito liso, moreno e uma medalhinha de San Genaro. Perguntei se era italiano. Meu pai, respondeu sorrindo. Falava com simplicidade e delicadeza. Como se fosse a coisa mais natural do mundo topar num domingo com uma garota, às onze da manhã, cara toda borrada de pintura, casaco de veludo amarrado nos quadris, um pão semicomido na mão, um saco de pipoca na outra. Ele era a própria manhã: jovem, fresco, belo, puro. Me senti mal. Queria lavar o rosto, tomar um banho, convidá-lo a passear comigo no Ibirapuera, que é o maior parque que eu conheço, sei lá onde. Melhor ir andando. Ele ficou olhando eu me afastar com simpatia, assim, também sem perguntar nada. Uma névoa de cansaço descia sobre o jardim. Senti-me longe, minha casa longíssimo, o apartamento de Klaus ainda mais longe, em outro país, outro tempo. Ajeitei-me num banco de pedra limosa e dormi. Um segundo depois acordei: alguém me cutucava as costas com um objeto duro e pontudo. Outra vez, pensei. Mas era só uma vassoura e o homem devia ser o zelador do parque. Percebi vagamente que anoitecia. — Levaram sua bolsa e seu casaco, dona, é bom dar parte na polícia, falava com uma voz monótona, anasalada, repetindo sempre sobre o roubo e a polícia. — Pra que a vassoura?, murmurei idiotamente, ainda aturdida pelo sono. O corpo dolorido. Meu casaco e a bolsa? — Você tá mal, hein? Deu moleza, já viu, nego passa a mão mesmo, acho bom dar parte na... — Já vou, já vou. Como fazê-lo calar? Estiquei as pernas. Intactas ainda minha calça de veludo e a camisa de seda. Bem, foi-se, pensei. No que deu o vampirismo poético. Judas, o obscuro, estaria agora em seu lindo apezinho ouvindo Beethoven e jantando carneiro ensopado com legumes, preparado por Lady Varizes, a copeira. Aquela cara amassada, descomposta, mastigando a sobremesa, aqueles olhos duros, machucados, e o animal adormeceria tranqüilamente entre seus panfletos comunistas, fumando cigarros mentolados. Era demais. Vomitei espasmodicamente num canteiro de hortênsias. Resolvi voltar para casa. Lá pagariam o táxi. Então lembrei: estavam todos viajando. Todos os amigos, todos os sujeitos, todas as amigas, etc. Eu estava sem a bolsa, sem as chaves, com frio, fome e precisando de um banho. No táxi, suspirando, dei o endereço de Klaus. (CEM MELHORES CONTOS BRASILEIROS DO SÉCULO)-

sábado, 14 de abril de 2012

Gato gato gato Otto Lara Resende

Familiar aos cacos de vidro inofensivos, o gato caminhava molengamente por cima do muro. O menino ia erguer-se, apanhar um graveto, respirar o hálito fresco do porão. Sua úmida penumbra. Mas a presença do gato. O gato, que parou indeciso, o rabo na pachorra de uma quase interrogação. Luminoso sol a pino e o imenso céu azul, calado, sobre o quintal. O menino pactuando com a mudez de tudo em torno — árvores, bichos, coisas. Captando o inarticulado segredo das coisas. Inventando um ser sozinho, na tontura de imaginações espontâneas como um gás que se desprende. Gato — leu no silêncio da própria boca. Na palavra não cabe o gato, toda a verdade de um gato. Aquele ali, ocioso, lento, emoliente — em cima do muro. As coisas aceitam a incompreensão de um nome que não está cheio delas. Mas bicho, carece nomear direito: como rinoceronte, ou girafa se tivesse mais uma sílaba para caber o pescoço comprido. Girafa, girafa. Gatimonha, gatimanho. Falta um nome completo, felinoso e peludo, ronronante de astúcias adormecidas. O pisa-macio, as duas bandas de um gato. Pezinhos de um lado, pezinhos de outro, leve, bem de leve para não machucar o silêncio de feltro nas mãos enluvadas. O pêlo do gato para alisar. Limpinho, o quente contato da mão no dorso, corcoveante e nodoso à carícia. O lânguido sono de morfinômano. O marzinho de leite no pires e a língua secreta, ágil. A ninhada de gatos, os vacilantes filhotes de olhos cerrados. O novelo, a bola de papel — o menino e o gato brincando. Gato lúdico. O gatorro, mais felino do que o cachorro é canino. Gato persa, gatochim — o espirro do gato de olhos orientais. Gato de botas, as aristocráticas pantufas do gato. A manha do gato, gatimanha: teve uma gata miolenta em segredo chamada Alemanha. Em cima do muro, o gato recebeu o aviso da presença do menino. Ondulou de mansinho alguns passos denunciados apenas na branda alavanca das ancas. Passos irreais, em cima do muro eriçado de cacos de vidro. E o menino songamonga, quietinho, conspirando no quintal, acomodado com o silêncio de todas as coisas. No se olharem, o menino suspendeu a respiração, ameaçando de asfixia tudo que em torno dele com ele respirava, num só sistema pulmonar. O translúcido manto de calma sobre o claustro dos quintais. O coração do menino batendo baixinho. O gato olhando o menino vegetalmente nascendo do chão, como árvore desarmada e inofensiva. A insciência, a inocência dos vegetais. O ar de enfado, de sabe-tudo do gato: a linha da boca imperceptível, os bigodes pontudos, tensos por hábito. As orelhas acústicas. O rabo desmanchado, mas alerta como um leme. O pequeno focinho úmido embutido na cara séria e grave. A tona dos olhos reverberando como laguinhos ao sol. Nenhum movimento na estátua viva de um gato. Garras e presas remotas, antigas. Menino e gato ronronando em harmonia com a pudica intimidade do quintal. Muro, menino, cacos de vidro, gato, árvores, sol e céu azul: o milagre da comunicação perfeita. A comunhão dentro de um mesmo barco. O que existe aqui, agora, lado a lado, navegando. A confidência essencial prestes a exalar, e sempre adiada. E nunca. O gato, o menino, as coisas: a vida túmida e solidária. O teimoso segredo sem fala possível. Do muro ao menino, da pedra ao gato: como a árvore e a sombra da árvore. O gato olhou amarelo o menino. O susto de dois seres que se agridem só por se defenderem. Por existirem e, não sendo um, se esquivarem. Quatro olhos luminosos — e todas as coisas opacas por testemunha. O estúpido muro coroado de cacos de vidro. O menino sentado, tramando uma posição mais prática. O gato de pé, vigilantemente quadrúpede e, no equilíbrio atento, a centelha felina. Seu íntimo compromisso de astúcia. O menino desmanchou o desejo de qualquer gesto. Gaturufo, inventou o menino, numa traiçoeira tentativa de aliança e amizade. O gato, organizado para a fuga, indagava. Repelia. Interrogava o momento da ruptura — como um toque que desperta da hipnose. Deu três passos de veludo e parou, retesando as patas traseiras, as patas dianteiras na iminência de um bote para onde? Um salto acrobático sobre um rato atávico, inexistente. Por um momento, foi como se o céu desabasse de seu azul: duas rolinhas desceram vertiginosas até o chão. Beliscaram levianas um grãozinho de nada e de novo cortaram o ar excitadas,'para longe. O menino forcejando por nomear o gato, por decifrá-lo. O gato mais igual a todos os gatos do que a si mesmo. Impossível qualquer intercâmbio: gato e menino não cabem num só quintal. Um muro permanente entre o menino e o gato. Entre todos os seres emparedados, o muro. A divisa, o limite. O odioso mundo de fora do menino, indecifrável. Tudo que não é o menino, tudo que é inimigo. Nenhum rumor de asas, todas fechadas. Nenhum rumor. Ah, o estilingue distante — suspira o menino no seu mais oculto silêncio. E o gato consulta com a língua as presas esquecidas, mas afiadas. Todos os músculos a postos, eletrizados. As garras despertas unhando o muro entre dois abismos. O gato, o alvo: a pedrada passou assobiando pela crista do muro. O gato correu elástico e cauteloso, estacou um segundo e despencou-se do outro lado, sobre o quintal vizinho. Inatingível às pedras e ao perigoso desafio de dois seres a se medirem, sumiu por baixo da parreira espapaçada ao sol. O tiro ao alvo sem alvo. A pedrada sem o gato. Como um soco no ar: a violência que não conclui, que se perde no vácuo. De cima do muro, o menino devassa o quintal vizinho. A obsedante presença de um gato ausente. Na imensa prisão do céu azul, flutuam distantes as manchas pretas dos urubus. O bailado das asas soltas ao sabor dos ventos das alturas. O menino pisou com o calcanhar a procissão de formigas atarantadas. Só então percebeu que lhe escorria do joelho esfolado um filete de sangue. Saiu manquitolando pelo portão, ganhou o patiozinho do fundo da casa. A sola dos pés nas pedras lisas e quentes. À passagem do menino, uma galinha sacudiu no ar parado a sua algazarra histérica. A casa sem aparente presença humana. Agarrou-se à janela, escalou o primeiro muro, o segundo, e alcançou o telhado. Andava descalço sobre o limo escorregadio das telhas escuras, retendo o enfadonho peso do corpo como quem segura a respiração. O refúgio debaixo da caixa-d'água, a fresca acolhida da sombra. Na caixa, a água gorgolejante numa golfada de ar. Afastou o tijolo da coluna e enfiou a mão: bolas de gude, o canivete roubado, dois caramujos com as lesmas salgadas na véspera. O mistério. Pessoal, vedado aos outros. Uma pratinha azinhavrada, o ainda perfume da caixa de sabonete. A estampa de São José, lembrança da Primeira Comunhão. Apoiado nos cotovelos, o menino apanhou uma joaninha que se encolheu, hermética. A joaninha indevassável, na palma da mão. E o súbito silêncio da caixa-d'água, farta, sua sede saciada. Do outro lado da cidade, partiram solenes quatro badaladas no relógio da Matriz. O menino olhou a esfera indiferente do céu azul, sem nuvens. O mundo é redondo, Deus é redondo, todo segredo é redondo. As casas escarrapachadas, dando-se as costas, os quintais se repetindo na modorra da mesma tarde sem data. Até que localizou embaixo, enrodilhado à sombra, junto do tanque: um gato. Dormindo, a cara escondida entre as patas, a cauda invisível. Amarelo, manchado de branco de um lado da cabeça: era um gato. Na sua mira. Em cima do muro ou dormindo, rajado ou amarelo, todos os gatos, hoje ou amanhã, são o mesmo gato. O gato-eterno. O menino apanhou o tijolo com que vedava a entrada do mistério. Lá embaixo — alvo fácil — o gato dormia inocente a sua sesta ociosa. Acertar pendularmente na cabeça mal adivinhada na pequena trouxa felina, arfante. Gato, gato, gato: lento bicho sonolento, a decifrar ou a acordar? A matar. O tijolo partiu certeiro e desmanchou com estrondo a tranqüila rodilha do gato. As silenciosas patinhas enluvadas se descompassaram no susto, na surpresa do ataque gratuito, no estertor da morte. A morte inesperada. A elegância desfeita, o gato convulso contorcendo as patas, demolida a sua arquitetura. Os sete fôlegos vencidos pela brutal desarmonia da morte. A cabeça de súbito esmigalhada, suja de sangue e tijolo. As presas inúteis, à mostra na boca entreaberta. O gato fora do gato, somente o corpo do gato. A imobilidade sem a viva presença imóvel do sono. O gato sem o que nele é gato. A morte, que é ausência de gato no gato. Gato — coisa entre as coisas. Gato a esquecer, talvez a enterrar. A apodrecer. O silêncio da tarde invariável. O intransponível muro entre o menino e tudo que não é o menino. A cidade, as casas, os quintais, a densa copa da mangueira de folhas avermelhadas. O inatingível céu azul. Em cima do muro, indiferente aos cacos de vidro, um gato — outro gato, o sempre gato — transportava para a casa vizinha o tédio de um mundo impenetrável. O vento quente que desgrenhou o mormaço trouxe de longe, de outros quintais, o vitorioso canto de um galo. (CEM MELHORES CONTOS BRASILEIROS DO SÉCULO)

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Presépio Carlos Drummond de Andrade

Dasdores (assim se chamavam as moças daquele tempo) sentia-se dividida entre a Missa do Galo e o presépio. Se fosse à igreja, o presépio não ficaria armado antes de meia-noite e, se se dedicasse ao segundo, não veria o namorado. É difícil ver namorado na rua, pois moça não deve sair de casa, salvo para rezar ou visitar parentes. Festas são raras. O cinema ainda não foi inventado, ou, se o foi, não chegou a esta nossa cidade, que é antes uma fazenda crescida. Cabras passeiam nas ruas, um cincerro tilinta: é a tropa. E viúvas espiam de janelas, que se diriam jaulas. Dasdores e suas numerosas obrigações: cuidar dos irmãos, velar pelos doces de calda, pelas conservas, manejar agulha e bilro, escrever as cartas de todos. Os pais exigem-lhe o máximo, não porque a casa seja pobre, mas porque o primeiro mandamento da educação feminina é: trabalharás dia e noite. Se não trabalhar sempre, se não ocupar todos os minutos, quem sabe de que será capaz a mulher? Quem pode vigiar sonhos de moça? Eles são confusos e perigosos. Portanto, é impedir que se formem. A total ocupação varre o espírito. Dasdores nunca tem tempo para nada. Seu nome, alegre à força de repetido, ressoa pela casa toda. "Dasdores, as dálias já foram regadas hoje?" "Você viu, Dasdores, quem deixou o diabo desse gato furtar a carne?" "Ah, Dasdores, meu bem, prega esse botão para sua mãezinha”. Dasdores multiplica-se, corre, delibera e providencia mil coisas. Mas é um engano supor que se deixou aprisionar por obrigações enfadonhas. Em seu coração ela voa para o sobrado da outra rua, em que, fumando ou alisando o cabelo com brilhantina, está Abelardo. Das mil maneiras de amar, ó pais, a secreta é a mais ardilosa, e eis a que ocorre na espécie. Dasdores sente-se livre em meio às tarefas, e até mesmo extrai delas algum prazer. (Dir-se-ia que as mulheres foram feitas para o trabalho... Alguma coisa mais do que resignação sustenta as donas-de-casa.) Dasdores sabe combinar o movimento dos braços com a atividade interior — é uma conspiradora — e sempre acha folga para pensar em Abelardo. Esta véspera de Natal, porém, veio encontrá-la completamente desprevenida. O presépio está por armar, a noite caminha, lenta como costuma fazê-lo no interior, mas Dasdores é íntima do relógio grande da sala de jantar, que não perdoa, e mesmo no mais calmo povoado o tempo dá um salto repentino, desafia o incauto: "Agarra-me!" Sucede que ninguém mais, salvo esta moça, pode dispor o presépio, arte comunicada por uma tia já morta. E só Dasdores conhece o lugar de cada peça, determinado há quase dois mil anos, porque cada bicho, cada musgo tem seu papel no nascimento do Menino, e ai do presépio que cede a novidades. As caixas estão depositadas no chão ou sobre a mesa, e desembrulhá-las é a primeira satisfação entre as que estão infusas na prática ritual da armação do presépio. Todos os irmãos querem colaborar, mas antes atrapalham, e Dasdores prefere ver-se morta a ceder-lhes a responsabilidade plena da direção. Jamais lhes será dado tocar, por exemplo, no Menino Jesus, na Virgem e em São José. Nos pastores, sim, e nas grutas subsidiárias. O melhor seria que não amolassem, e Dasdores passaria o dia inteiro compondo sozinha a paisagem de água e pedras, relva, cães e pinheiros, que há de circundar a manjedoura. Nem todos os animais estão perfeitos; este carneirinho tem uma perna quebrada, que se poderia consertar, mas parece a Dasdores que, assim mutilado e dolorido, o Menino deve querer-lhe mais. Os camelos, bastante miúdos, não guardam proporção com os cameleiros que os tangem; mas são presente da tia morta, e participam da natureza dos animais domésticos, a qual por sua vez participa obscuramente da natureza da família. Através de um sentimento nebuloso, afigura-se-lhe que tudo é uma coisa só, e não há limites para o humano. Dasdores passa os dedos, com ternura, pelos camelinhos; sente neles a macieza da mão de Abelardo. Alguém bate palmas na escada; ô de casa! amigas que vêm combinar a hora de ir para a igreja. Entram e acham o presépio desarranjado, na sala em desordem. Esta visita come mais tempo, matéria preciosa ("Agarra-me! Agarra-me!"). Quando alguém dispõe apenas de uns poucos minutos para fazer algo de muito importante e que exige não somente largo espaço de tempo mas também uma calma dominadora — algo de muito importante e que não pode absolutamente ser adiado - se esse alguém é nervoso, sua vontade se concentra, numa excitação aguda, e o trabalho começa a surgir, perfeito, de circunstâncias adversas. Dasdores não pertence a essa raça torturada e criadora; figura no ramo também delicado, mas impotente, dos fantasistas. Vão-se as amigas, para voltar duas horas depois, e Dasdores, interrogando o relógio, nele vê apenas o rosto de Abelardo, como também percebe esse rosto de bigode, e a cabeleira lustrosa, e os olhos acesos, dissimulados nas ramagens do papel da parede, e um pouco por toda parte. A mão continua tocando maquinalmente nas figuras do presépio dispondo-as onde convém. Nada fará com que erre; do passado a tia repete sua lição profunda. Entretanto, o prazer de distribuir as figuras, de fixar a estrela, de espalhar no lago de vidro os patinhos de celulóide, está alterado, ou subtraí-se. Dasdores não o saboreia por inteiro. Ou nele se insinuou o prazer da missa? Ou o medo de que o primeiro, prolongando-se, viesse a impedir o segundo? Ou um sentimento de culpa, ao misturar o sagrado ao profano, dando, talvez, preferência a este último, pois no fundo da caminha de palha suas mãos acariciavam o Menino, mas o que a pele queria sentir sentia, Deus me perdoe — era um calor humano, já sabeis de quem. Aqui desejaria, porque o mundo é cruel e as histórias também costumam sê-lo, acelerar o ritmo da narrativa, prover Dasdores com os muitos braços de que ela carece para cumprir com sua obrigação, vestir-se violentamente, sair com as amigas — depressa, depressa, ir correndo ladeira acima, encontrar a igreja vazia, o adro já quase deserto, e nenhum Abelardo. Mas seria preciso atribuir-lhe, não braços e pernas suplementares, e sim outra natureza, diferente da que lhe coube, e é pura placidez. Correi, sôfregos, correi ladeira acima, e chegai sempre ou muito tarde ou muito cedo, mas continuai a correr, a matar-vos, sem perspectiva de paz ou conciliação. Não assim os serenos, aqueles que, mesmo sensuais, se policiam. O dono desta noite, depois do Menino, é o relógio, e este vai mastigando seus minutos, seus cinco minutos, seus quinze minutos. Se nos esquecermos dele, talvez pule meia hora, como um prestidigitador furta um ovo, mas, se nos pusermos a contemplá-lo, os números gelam, o ponteiro imobiliza-se, a vida parou rigorosamente. Saber que a vida parou seria reconfortante para Dasdores, que assim lograria folga para localizar condignamente os três reis na estrada, levantar os muros de Belém. Começa a fazê-lo, e o tempo dispara de novo. "Agarra-me! Agarra-me!" Nas cabeças que espiam pela porta entreaberta, no estouvamento dos irmãos, que querem se debruçar sobre o caminho de areia antes que essa esteja espalhada, na muda interrogação da mãe, no sentimento de que a vida é variada demais para caber em instantes tão curtos, no calor que começa a fazer apesar das janelas escancaradas — há uma previsão de malogro iminente. Pronto, este ano não haverá Natal. Nem namorado. E a noite se fundirá num largo pranto sobre o travesseiro. Mas Dasdores continua, calma e preocupada, cismarenta e repartida, juntando na imaginação os dois deuses, colocando os pastores na posição devida e peculiar à adoração, decifrando os olhos de Abelardo, as mãos de Abelardo, o mistério prestigioso do ser de Abelardo, a auréola que os caminhantes descobriram em torno dos cabelos macios de Abelardo, a pele morena de Jesus, e aquele cigarro — quem botou! — ardendo na areia do presépio, e que Abelardo fumava na outra rua.(CEM MELHORES CONTOS BRASILEIROS)

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Obscenidades para uma dona-de-casa Ignácio de Loyola Brandão

Três da tarde ainda, ficava ansiosa. Andava para lá, entrava na cozinha, preparava nescafé. Ligava televisão, desligava, abria o livro. Regava a planta já regada, girava a agenda telefônica, à procura de amiga a quem chamar. Apanhava o litro de martíni, desistia, é estranho beber sozinha às três e meia da tarde. Podem achar que você é alcoólatra. Abria gavetas, arrumava calcinhas e sutiãs arrumados. Fiscalizava as meias do marido, nenhuma precisando remendo. Jamais havia meias em mau estado, ela se esquecia que ele é neurótico por meias, ao menor sinal de esgarçamento, joga fora. Nem dá aos empregados do prédio, atira no lixo. Quatro horas, vontade de descer, perguntar se o carteiro chegou, às vezes vem mais cedo. Por que há de vir? Melhor esperar, pode despertar desconfiança. Porteiros sempre se metem na vida dos outros, qualquer situação que não pareça normal, ficam de orelha em pé. Então, ele passará a atenção no que o carteiro está trazendo de especial para a mulher do 91 perguntar tanto, com uma cara lambida. Ah, aquela não me engana! Desistiu. Quanto tempo falta para ele chegar? Ela não gostava de coisas fora do normal, instituiu sua vida dentro de um esquema nunca desobedecido, pautara o cotidiano dentro da rotina sem sobressaltos. Senão, seria muito difícil viver. Cada vez que o trem saía da linha, era um sofrimento, ela mergulhava na depressão. Inconsolável, nem pulseiras e brincos, presentes que o marido trazia, atenuavam. Na fossa, rondava como fera enjaulada, querendo se atirar do nono andar. Que desgraça se armaria. O que não diriam a respeito de sua vida. Iam comentar que foi por um amante. Pelo marido infiel. Encontrariam ligações com alguma mulher, o que provocava nela o maior horror. Não disseram que a desquitada do 56 descia para se encontrar com o manobrista, nos carros da garagem? Apenas por isso não se estatelava alegremente lá embaixo, acabando com tudo. Quase cinco. E se o carteiro atrasar? Meu deus, faltam dez minutos. Quem sabe ela possa descer, dar uma olhadela na vitrine da butique da esquina, voltar como quem não quer nada, ver se a carta já chegou. O que dirá hoje? Os bicos dos teus seios saltam desses mamilos marrons procurando a minha boca enlouquecida. Ficava excitada só em pensar. A cada dia as cartas ficam mais abusadas, entronas, era alguém que escrevia bem, sabia colocar as coisas. Dia sim, dia não, o carteiro trazia o envelope amarelo, com tarja marrom, papel fino, de bom gosto. Discreto, contrastava com as frases. Que loucura, ela jamais imaginara situações assim, será que existiam? Se o marido, algum dia, tivesse proposto um décimo daquilo, teria pulado da cama, vestido a roupa e voltado para casa da mãe. Que era o único lugar para onde poderia voltar, saíra de casa para se casar. Bem, para falar a verdade, não teria voltado. Porque a mãe iria perguntar, ela teria que responder com honestidade. A mãe diria ao pai, para se desabafar. O pai, por sua vez, deixaria escapar no bar da esquina, entre amigos. E homem, sabe-se como é, é aproveitador, não deixa escapar ocasião de humilhar a mulher, desprezar, pisar em cima. As amigas da mãe discutiriam o episódio e a condenariam. Aquelas mulheres tinham caras terríveis. Ligou outra vez a tevê, programa feminino ensinando a fazer cerâmica. Lembrou-se que uma das cartas tinha um postal com cenas da vida etrusca, uma sujeira inominável, o homem de pé atrás da mulher, aquela coisa enorme no meio das pernas dela. Como podia ser tão grande? Rasgou em mil pedaços, pôs fogo em cima do cinzeiro, jogou tudo na privada. O que pensavam que ela era? Por que mandavam tais cartas, cheias de palavras que ela não ousava pensar, preferia não conhecer, quanto mais dizer. Uma vez, o marido tinha dito, resfolegante, no seu ouvido, logo depois de casada, minha linda bocetinha. E ela esfriou completamente, ficou dois meses sem gozar. Nem dizia gozar, usava ter prazer, atingir o orgasmo. Ficou louca da vida no chá de cozinha de uma amiga, as meninas brincando, morriam de rir quando ouviam a palavra orgasmo. Gritavam: como pode uma palavra tão feia para uma coisa tão gostosa? Que grosseria tinha sido aquele chá, a amiga nua no meio da sala, porque tinha perdido no jogo de adivinhação dos presentes. E as outras rindo e comentando tamanhos, posições, jeitos, poses, quantas vezes. Mulher, quando quer, sabe ser pior do que homem. Sim, só que conhecia muitas daquelas amigas, diziam mas não faziam, era tudo da boca para fora. A tua boca engolindo inteiro o meu cacete e o meu creme descendo pela tua garganta, para te lubrificar inteira. Que nojenta foi aquela carta, ela nem acreditava, até encontrou uma palavra engraçada, inominável. Ah, as amigas fingiam, sabia que uma delas era fria, o marido corria como louco atrás de outras, gastava todo o salário nas casas de massagens, em motéis. E aquela carta que ele tinha proposto que se encontrassem uma tarde no motel? Num quarto cheio de espelhos, para que você veja como trepo gostoso em você, enfiando meu pau bem no fundo. Perdeu completamente a vergonha, dizer isso na minha cara, que mulher casada não se sentiria pisada, desgostosa com uma linguagem destas, um desconhecido a julgá-la puta, sem nada a fazer em casa, pronta para sair rumo a motéis de beira de estrada. Para que lado ficam? Vai ver, um dos amigos de meu marido, homem não pode ver mulher, fica excitado e é capaz de trair o amigo apenas por uma trepada. Vejam o que estou dizendo, trepada, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Caiu em si raciocinando se não seria alguém a mando do próprio marido, para averiguar se ela era acessível a uma cantada. Meu deus, o que digo? Fico transtornada com estas cartas que chegam religiosamente, é até pecado falar em religião, misturar com um assunto deste, escabroso. E se um dia o marido vier mais cedo para casa, apanhar uma das cartas, querer saber? Qual pode ser a reação de um homem de verdade, que se preze, ao ver que a mulher está recebendo bilhetes de um estranho? Que fala em coxas úmidas como a seiva que sai de você e que eu provoquei com meus beijos e com este pau que você suga furiosamente cada vez que nos encontramos, como ontem à noite, em pleno táxi, nem se importou com o chofer que se masturbava. Sua louca, por que está guardando as cartas no fundo daquela cesta? A cesta foi a firma que mandou num antigo natal, com frutas, vinhos, doces, champanhe. A carta dizia deixo champanhe gelada escorrer nos pêlos da tua bocetinha e tomo em baixo com aquele teu gosto bom. Porcaria, deixar champanhe escorrer pelas partes da gente. Claro, não há mal, sou mulher limpa, de banho diário, dois ou três no calor. Fresquinha, cheia de desodorante, lavanda, colônia. Coisa que sempre gostei foi cheirar bem, estar de banho tomado. Sou mulher limpa. No entanto, me pediu na carta: não se esfregue desse jeito, deixe o cheiro natural, é o teu cheiro que quero sentir, porque ele me deixa louco, pau duro. Repete essa palavra que não uso. Nem pau, nem pinto, cacete, caralho, mandioca, pica, piça, piaba, pincel, pimba, pila, careca, bilola, banana, vara, trouxa, trabuco, traíra, teca, sulapa, sarsarugo, seringa, manjuba. Nenhuma. Expressões baixas. A ele, não se dá nenhuma denominação. Deve ser sentido, não nomeado. Tem gente que adora falar, gritar obscenidades, assim é que se excitam, aposto que procuram nos dicionários, para encontrar o maior número de palavras. Os homens são animais, não sabem curtir o amor gostoso, quieto, tranqüilo, sem gritos, o amor que cai sobre a gente como a lua em noite de junho. Assim eram os versinhos no almanaque que a farmácia deu como brinde, no dia dos namorados. Tirou o disco da Bethânia, comprou um LP só por causa de uma música, Negue. Ouvia até o disco rachar, adorava aquela frase, a boca molhada ainda marcada pelo beijo seu. Boca marcada, corpo manchado com chupadas que deixam marcas pretas na pele. Coisas de amantes. Esse homem da carta deve saber muito. Um atleta sexual. Minha amiga Marjori falou de um artista da televisão. Podia ficar quantas horas quisesse na mulher. Tirava, punha, virava, repunha, revirava, inventava, as mulheres tresloucadas por ele. Onde Marjori achou estas besteiras, ela não conhece ninguém de tevê? Interessa é que a gente assim se diverte. Se bem que se possa divertir, sem precisar se sujeitar a certas coisas. Dessas que a mulher se vê obrigada, para contentar o marido e ele não vá procurar outras. Que diabo, mulher tem que se impor! Que pensam que somos para nos utilizarem? Como se fôssemos aparelhos de barba, com gilete descartável. Um instrumento prático para o dia-a-dia, com hora certa! Como os homens conseguem fazer barba diariamente, na mesma hora? Nunca mudam. Todos os dias raspando, os gestos eternos. É a impressão que tenho quando entro no banheiro e vejo meu marido fazendo a barba. Há quinze anos, ele começa pelo lado direito, o esquerdo, deixa o queixo para o fim, apara o bigode. Rio muito quando olho o bigode. Não posso esquecer um dia que os pelinhos do bigode me rasparam, ele estava com a cabeça entre as minhas pernas, brincando. Vinha subindo, fechei as pernas, não vou deixar fazer porcarias deste tipo. Quem pensa que sou? Os homens experimentam, se a mulher deixa, vão dizer que sou da vida. Puta, dizem puta, mas é palavra que me desagrada. E o bigode faz cócegas, ri, ele achou que eu tinha gostado, quis tentar de novo, tive de ser franca, desagradável. Ele ficou mole, inteirinho, durante mais de duas semanas nada aconteceu. O que é um alívio para a mulher. Quando não acontece é feriado, férias. Por que os homens não tiram férias coletivas? Ia ser tão bom para as mulheres, nenhum incômodo, nada de estar se sujeitando. Na carta de anteontem ele comentava o tamanho de sua língua, que tem ponta afiada e uma velocidade de não sei quantas rotações por segundo. Esse homem tem senso de humor. É importante que uma pessoa brinque, saiba fazer rir. O que ele vai fazer com uma língua a tantas mil rotações? Emprestar ao dentista para obturar dentes? Outra coisa engraçada que a carta falou, só que esta é uma outra carta, chegou no mês passado, num papel azul bonito: queria me ver de meias pretas e ligas. Ridículo, mulher nua de pé no meio do quarto, com meias pretas e ligas. Nem pelada nem vestida. E se eu pedisse a ele que ficasse de meias e ligas? Arranjava uma daquelas ligas antigas, que meu avô usava e deixava o homem pelado com meias. Igual fazer amor de chinelos. Outro dia, estava vendo o programa do Sílvio Santos, no domingo. Acho o domingo muito chato, sem ter o que fazer, as crianças vão patinar, meu marido passa a manhã nos campos de várzeas, depois almoça, cochila, e vai fazer jockeyterapia. Ligo a televisão, porque o programa Sílvio Santos tem quadros muito engraçados. Como o dos casais que respondem perguntas, mostrando que se conhecem. O Sílvio Santos perguntou aos casais se havia alguma coisa que o homem tivesse tentado fazer e a mulher não topou. Dois responderam que elas topavam tudo. Dois disseram que não, que a mulher não aceitava sugestões, nem achava legal novidade. A que não topava era morena, rosto bonito, lábio cheio e dentes brancos, sorridente, tinha cara de quem topava tudo e era exatamente a que não. A mulher franzina, de cabelos escorridos, boca murcha, abriu os olhos desse tamanho e respondeu que não havia nada que ele quisesse que ela não fizesse e a cara dele mostrava que realmente estavam numa boa. Parece que iam sair do programa e se comer. Como se pode ir a público e falar desse jeito, sem constrangimento, com a cara lavada, deixando todo mundo saber como somos, sem nenhum respeito? Há que se ter compostura. Ouvi esta palavra a vida inteira, e por isso levo uma vida decente, não tenho do que me envergonhar, posso me olhar no espelho, sou limpa por dentro e por fora. Talvez por isso me lave tanto, para me igualar, juro que conservo a mesma pureza de menina encantada com a vida. Aliás, a vida não me desiludiu em nada. Tive pequenos aborrecimentos e problemas, nunca grandes desilusões e nenhum fracasso. Posso me considerar realizada, portanto satisfeita, sem invejas, rancores. Sou uma das mulheres que as famílias admiram neste prédio. Uma casa confortável, bem decorada, qualquer uma destas revistas de onde tiro as idéias podia vir aqui e fotografar, não faria vergonha. Nossa, cinco e meia, se não voar, meu marido chega, o carteiro entrega o envelope a ele, vai ser um sururu. Prestem atenção, veja a audácia do sujo, me escrevendo, semana passada. (Disse que faz três meses que recebo as cartas? Se disse, me desculpem, ando transtornada com elas, não sei mais o que fazer de minha vida, penso que numa hora acabo me desquitando, indo embora, não suporto esta casa, o meu marido sempre na casa de massagens e na várzea, esses filhos com patins, skates, enchendo álbuns de figurinhas e comendo como loucos.) Semana passada o maluco me escreveu: Queria te ver no sururu, ia te pôr de pé no meio do salão e enfiar minha pica dura como pedra bem no meio da tua racha melada, te fodendo muito, fazendo você gritar quero mais, quero tudo, quero que todo mundo nesta sala me enterre o cacete. Tive vontade de rasgar tal petulância, um pavor. Sem saber o que fazer, fiquei imobilizada, me deu uma paralisia, procurei imaginar que depois de estar em pé no meio da sala recebendo um homem dentro de mim, na frente de todos, não me sobraria muito na vida. Era me atirar no fogão e ligar o gás. Entrei em pânico quando senti que as pessoas poderiam me aplaudir, gritando bravo, bravo, bis, e sairiam dizendo para todo mundo: "sabe quem fode como ninguém? A rainha das fodas?" Eu. Seria a rainha, miss, me chamariam para todas as festas. Simplesmente para me ver fodendo, não pela amizade, carinho que possam ter por mim, mas porque eu satisfaria os caprichos e as fantasias deles. Situações horrendas, humilhantes, desprezíveis para mulher que tem um bom marido, filhos na escola, uma casa num prédio excelente, dois carros. Apanho a carta, como quem não quer nada, olho distraidamente o destinatário, agora mudou o envelope, enfio no bolso, com naturalidade, e caminho até a rua, me dirijo para os lados do supermercado, trêmula, sem poder andar direito, perna toda molhada. Fico tão ansiosa, deve ser uma doença que me molho toda, o suco desce pelas pernas, tenho medo que escorra pelas canelas e vejam. Preciso voltar, desesperada para ler a carta. O que estará dizendo hoje? Comprei puropurê, tenho dezenas de latas de puropurê. Cada vez que desço para apanhar a carta, vou ao supermercado e apanho uma lata de puropurê. O gesto é automático, nem tenho imaginação de ir para outro lado. Por que não compro ervilhas? Todo mundo adora ervilhas em casa. Se meu marido entrar na despensa e enxergar esse carregamento de puropurê vai querer saber o que significa. E quem é que sabe? É dele mesmo, o meu querido correspondente. Confesso, o meu pavor é me sentir apaixonada por este homem que escreve cruamente. Querer sumir, fugir com ele. Se aparecer não vou agüentar, basta ele tocar este telefone e dizer: "Venha, te espero no supermercado, perto da gôndola do puropurê." Desço correndo, nem faço as malas, nem deixo bilhete. Vamos embora, levando uma garrafa de champanhe, vamos para as festas que ele conhece. Fico louca, nem sei o que digo, tudo delírio, por favor não prestem atenção, nem liguem, não quero trepar com ninguém, adoro meu marido e o que ele faz é bom, gostoso, vou usar meias pretas e ligas para ele, vai gostar, penso que vai ficar louco, o pau endurecido querendo me penetrar. Corto o envelope com a tesoura, cuidadosamente. Amo estas cartas, necessito, se elas pararem vou morrer. Não consigo ler direito na primeira vez, perco tudo, as letras embaralham, somem, vejo o papel em branco. Ouça só o que ele me diz: Te virar de costas, abrir sua bundinha dura, o buraquinho rosa, cuspir no meu pau e te enfiar de uma vez só para ouvir você gritar. Não é coisa para mulher ler, não é coisa decente que se possa falar a uma mulher como eu. Vou mostrar as cartas ao meu marido, vamos à polícia, descobrir, ele tem de parar, acabo louca, acabo mentecapta, me atiro deste nono andar. Releio para ver se está realmente escrito isso, ou se imaginei. Escrito, com todas as palavras que não gosto: pau, bundinha. Tento outra vez, as palavras estão ali, queimando. Fico deitada, lendo, relendo, inquieta, ansiosa para que a carta desapareça, ela é uma visão, não existe e, no entanto, está em minhas mãos, escrita por alguém que não me considera, me humilha, me arrasa. Agora, escureceu totalmente, não acendo a luz, cochilo um pouco, acordo assustada. E se meu marido chega e me vê com a carta? Dobro, recoloco no envelope. Vou à despensa, jogo a carta na cesta de natal, quero tomar um banho. Hoje é sexta-feira, meu marido chega mais tarde, passa pelo clube para jogar squash. A casa fica tranqüila, peço à empregada que faça omelete, salada, o tempo inteiro é meu. Adoro as segundas, quartas e sextas, ninguém em casa, nunca sei onde estão as crianças, nem me interessa. Porque assim me deito na cama (adolescente, escrevia o meu diário deitada) e posso escrever outra carta. Colocando amanhã, ela me será entregue segunda. O carteiro das cinco traz. Começo a ficar ansiosa de manhã, esperando o momento dele chegar e imaginando o que vai ser de minha vida se parar de receber estas cartas.(CEM MELHORES CONTOS BRASILEIROS DO SÉCULO)