sexta-feira, 27 de julho de 2012

Uma senhora Marques Rebelo



Dona Quinota não se importava com a aspereza do ano inteiro. Com ela
era ali no duro - trabalho, trabalho e mais trabalho. O ordenado das
empregadas, na verdade, era uma pouca-vergonha que a polícia devia pôr
um paradeiro. Não punha. Vivia metida com a maldita da política. Falta
duma boa revolução!... Ah, se ela fosse homem!... Enquanto a revolução
não vinha para botar tudo nos eixos, obrigando-a a endireitar as empregadas,
fazia de criada - cozinhava, varria, cosia. Encerava a casa também, aos
sábados, depois que disseram pelo rádio ser higiénico e muito econômico.
- Econômico? Então se encera mesmo.
O marido, que já estava acostumado àquelas resoluções, largou no
melhor pedaço o segundo volume de Os Miseráveis, meteu sobre o pijama a
gabardine cheirando a gasolina na gola e foi telefonar para a loja de ferragens,
pedindo duas latas de cera- da boa, vê lá! - chorando um abatimentozinho
na escova e na palha de aço: está ouvindo, Seu Fernandes?
Estava sempre para tudo que, graças a Deus, era mulher forte. Saíra à
mãe, que também o fora, morrendo velha de desastre, desastre doméstico,
uma chaleira de água fervendo para o escalda-pé do marido, um coronel
reformado, que lhe virou por cima do corpo.
Nunca se queixava da vida. Não ia à cidade passear, as suas compras
eram em regra feitas pelo marido, precisava que a fita fosse muito falada para
ela se abalar até ao cinema do bairro, onde cochilava a bom cochilar;
contavam-se os domingos em que ia à missa, não fazia visitas, nem recebia.
Não reclamava o trabalho que lhe davam os filhos, três desmazelados
que andavam na escola pública, Elcio, Ëlcia e Elcina, respectivamente quinze,
quatorze e treze anos, o que atesta bem a força do marido e dá idéia o que
seria depois de dez anos de casada, se depois da Elcina não tomasse as devidas
precauções.
- Não se esqueçam de dar lembranças à Dona Margarida - aconselhava na hora
da saída, enquanto punha nas bolsas as bananas e o pão com
manteiga da merenda. Dona Margarida fora sua amiga no colégio das Irmãs,
uma bicha no francês, cearense, um talento! Mandar lembranças para ela
equivalia a dizer: Olha que são meus filhos, Margarida; os filhos da tua amiga
Quinota...
E os exames estavam perto, com prêmios de cadernetas da Caixa
Econômica dados pelo prefeito, ridicularizados pelos jornais oposicionistas,
elogiados pelos do governo - a Folha dizia que era um gesto de Mecenas
mas enfim fartamente anunciados em todos os jornais para incentivo da
meninada estudiosa. Ela queria ser mordida por um macaco se não arranjasse
três cadernetas para casa. Os filhos é que não faziam fé. Bordava para fora, cuidava do Joli, o bichano para sujar a casa era um
desespero, e sobrava tempo ainda para ter ciúmes do marido com as vizinhas,
principalmente Dona Consuelo, uma descarada, é certo, mas muito chique,
confessava.
Chegando o carnaval, tirava a forra.
As economias acumuladas saíam do Banco Popular juntas com os juros.
Não ficava nada. Metia-se numa fantasia de baiana e inundava a capota do
automóvel com seus oitenta e cinco quilos honestíssimos. As meninas iam
de baianas também, menos saias, mais berloques, e o menino de pierrô, cada
ano de uma cor, porque não é para outra coisa que o dono do Tinto! gasta
aquele dinheirão em anúncios. Tirava do cabide a casaca do casamento,
dezesseis anos por isso (como o tempo corre!), dava um jeito nas manchas:
- No automóvel, ninguém repara, meu filho - dizia com um sorriso,
ora para a casaca, ora para o marido, que se traduzia: lembras-te?
Ele, então, com uma faixa vermelha na cintura, brincos em forma de
argola, pendentes das orelhas demasiadas, enfiava na cabeça um turbante de
seda branca com pérolas em profusão, e ia em pé, no carro, de rajá diplomata.
No terceiro dia, graças a Deus não choveu em nenhum dos três,
perguntava para o marido:
- Quanto temos ainda?
Ele remexia a carteira (bolso de casaca é o tipo da coisa encrencada!),
fura-bolos trabalhava passado na língua, e cantava a quantia:
- Duzentos e oitenta.
- E os oitocentos do automóvel?
- Já estão fora.
- Ah! Bem... - Para fazer contas no ar era um assombro: ... pode
gastar mais cento e cinqüenta.
O resto ficava para gastar depois do carnaval - mas entrava na verba
dele - com o fígado do marido, porque depois da pândega (a experiência
de Dona Quinota é que falava) Seu Juca tinha rebordosas, vômitos biliosos,
uma dor do lado danada, de tanta canseira, tanta serpentina e tanta cerveja
gelada.
Não faz mal. Não fazia não. A vida era aquilo mesmo: três dias - falava.
Mas pensava: por ano. Podia dizer, mas não dizia. Deixava ficar lá dentro.
O “lá dentro” de Dona Quinota era uma coisa complicada, complícadíssima,
que ninguém compreendia. Só ela mesma e o marido, às vezes.
Desciam do automóvel à porta de casa, quando o vizinho veio vindo
com o rancho da filharada.
- Brincaram muito? - fez Seu Adalberto, com um jeito de despeitado.
- Assim, assim...
Dona Quinota dizia aquele “assim-assim” de propósito. Que lhe
importava os outros saberem se ela tinha gozado ou não? Quem gozava era
ela. Mas gostava de ficar deliciando-se por dentro com a inveja dos vizinhos:
assim, assim... Ah! Ah! Ah!
Seu Adalberto exultava:
- E isso mesmo. Faz-se despesas enormes (e Dona Quinota sorria) e
não se diverte nada. (Dona Quinota olhava para o céu.) É sempre assim. Pois
olhe: nós fomos a pé mesmo. Estivemos ali na Avenida na esquina do Derbi,
apreciamos o baile do Clube Naval, muita fantasia rica, muita, vimos
perfeitamente as sociedades, tomamos refrescos, brincamos à grande. Não foi?
As mocinhas fizeram que sim, humilhadas, mas os guris foram sinceros:
- Aquele carro do girassol que rodava, hem, papai!
Seu Adalberto corrigiu logo:
- Girassol, não, Artur; crisântemo.
Depois que corrigiu, ficou azul, sem saber ao certo se era crisântemo
ou crisantemo - quer ver que eu disse besteira?
Seu Juca não havia meio de encontrar o raio da chave. Esses bolsos de casaca!...
- O ano que vem - Dona Quinota falou firme - nós iremos
também a pé.
O marido até se virou. Ficou olhando, espantado. Que diabo é isto? -
ia perguntando. Por um triz que não perguntou. Mas ficou assim...
Compreendeu? Parece... Esta Quinota!...
Foi quando Seu Adalberto, evidentemente mortificado, se refez e
sentenciou como experiente na matéria, apesar de nunca ter entrado num
automóvel pelo carnaval: é melhor mesmo.
A tribo sumiu pela porta do 37. A maçaneta fechou por dentro.
Torreco, torreco. Agora foi a chave - duas voltas. O pigarro do seu
Adalberto, ainda com o acento do crisântemo a fuzilar-lhe na cabeça, veio
até cá fora se misturar com um resto de choro, pandeiro e chocalhos, do
bonde que passava mais longe. Passos apressados no fundo da rua. O burro
do inglês estava na janela do apartamento fumando para a lua. Dona Quinota
ficou olhando-o um pouco, depois cerrou a porta bem e fixou o marido que
dava por falta dum brinco: Que cretinos!
Seu Juca parou no meio do corredor, cara de ressaca, pernas abertas, o
turbante nas mãos e esperou mais. Mas Dona Quinota era hermética. O resto
ficou lá dentro onde ninguém ia buscar, porque o marido, o único interessado
na ocasião, mais morto do que vivo, preferiu tirar o colarinho e a casaca.
Dona Quinota atirou-se na cama escangalhada e feliz, só acordando na
quarta-feira de cinzas ao meio-dia.
Quando o resto da família se levantou, o almoço (feito por ela) já estava
na mesa, e Dona Quinota se desesperava porque tinha lido no Jornal do Brasil
que foram os Fenianos que pegaram o primeiro prêmio, quando todo mundo
viu perfeitamente que só o carro-chefe dos Democráticos...

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Gaetaninho Alcântara Machado



Gaetaninho, como é bom!

Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e ele não viu o Ford. O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o palavrão.

- Eh! Gaetaninho! Vem pra dentro.
Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de sardento, viu a mãe e viu o chinelo.
- Subito!
Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno. Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo.  Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia-volta instantânea e varou pela esquerda porta adentro.  Eta salame de mestre!
Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro
só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento.
Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um
sonho.
O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro
a cidade. Mas como? Atrás da Tia Peronetta que se mudava para o Araçá.
Assim também não era vantagem.
Mas se era o único meio? Paciência.
Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.
Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados
levavam a Tia Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério
noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele. Na boléia do carro. Ao lado do
cocheiro. Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: ENCOURAÇADO
SÃO PAULO. Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com
a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas
segurando as meias. Que beleza, rapaz! Dentro do carro o pai, os dois irmãos
mais velhos (um de gravata vermelha, outro de gravata verde) e o padrinho
Seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos
palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Gaetaninho.
Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queria ir carregando o
chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem por um instantinho
só.
Gaetaninho ia berrar mas a Tia Filomena com a mania de cantar o
“Ahi, Mari!” todas as manhãs o acordou.
Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio.
Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de
Gaetaninho. Tão forte que ele sentiu remorsos. E para sossego da família
alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia por outra pessoa numa
nova versão de seu sonho. Matutou, matutou, e escolheu o acendedor
da Companhia de Gás, Seu Rubino, que uma vez lhe deu um cocre danado
de doído.
Os irmãos (esses) quando souberam da história resolveram arriscar de
sociedade quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram loucos de raiva
por não haverem logo adivinhado que não podia deixar de dar a vaca mesmo.
O jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho
não estava ligando.
- Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?
- Meu pai deu uma vez na cara dele.
- Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!
O Vicente protestou indignado:
- Assim não jogo mais! O Gaetaninho está atrapalhando!
Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de responsabilidades.
O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos
abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa.
- Passa pro Beppino!
Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque.
Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.
- Vá dar tiro no inferno!
- Cala a boca, palestrino!
- Traga a bola!
Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou.
Pegou e matou.
No bonde vinha o pai do Gaetaninho.
A gurizada assustada espalhou a notícia na noite.
- Sabe o Gaetaninho?
- Que é que tem?
- Amassou o bonde!
A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.  Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e Gaetaninho não ia na boléia de nenhum dos carros do acompanhamento.  Ia no da frente dentro de um caixão fechado com flores pobres por cima.
Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas, mas não levava a palhetinha.  Quem na boléia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino. 

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Pai contra mãe Machado de Assis



A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras
instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo oficio. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado.
Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco,
e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.
O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também, à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.
Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e
nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem
pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas
repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcassem aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha a promessa: “gratificar-se-a generosamente”, -ou “receberá uma boa gratificação”. Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse.
Ora, pegar escravos fugidios era um oficio do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal oficio por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.  Cândido Neves, - em família, Candinho, - é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o. ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo.
Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum
a tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi
o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira
boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de
cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade, fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao ministério do império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos.
Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador de oficio.  Depois de várias tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito.  Contava trinta anos, Clara vinte e dois. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras.
O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi - para lembrar o primeiro oficio do namorado, - tal foi a página inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas.
- Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto.
- Não, defunto não; mas é que...
Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora viesse agravar a necessidade.  - Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha.
- Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara.  Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi.
A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço. Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma coisa e outra; não tinha emprego certo.  Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia, porém, deu sinal de si a criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos.
- Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe.
A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a
aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim
era preciso, uma vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com
retalhos o enxoval da criança. À força de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era escassa, os intervalos
longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade.
- Vocês verão a triste vida, suspirava ela.
- Mas as outras crianças não nascem também? perguntou Clara.  - Nascem, e acham sempre alguma coisa certa que comer, ainda que pouco...
- Certa como?
- Certa, um emprego, um oficio, uma ocupação, mas em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem, gasta o tempo?  Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero, mas muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer.
- A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau...  - Bem sei, mas somos três.
- Seremos quatro.
- Não é a mesma coisa.
- Que quer então que eu faça, além do que faço?  - Alguma coisa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo...  Não fique zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu, é vaga. Você passa semanas sem vintém.  - Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo.
Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado.
Cândido Neves perdera já o oficio de entalhador, como abrira mão de
outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um
encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho
vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios,
copiava-os, metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória.  Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade também.
Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de coisas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso. Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão.  Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelos aluguéis.
Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta
era a necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha,
naturalmente. Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia
vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda
que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu
senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os parentes do homem.
- É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o equívoco e suas conseqüências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro emprego.
Cândido quisera efetivamente fazer outra coisa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de oficio; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa.  A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser mais amargos.  - Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca!
Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal
o conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade,
não podia haver palavra mais dura de tolerar a dois jovens pais que espreitavam
a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular...  Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio:
- Titia não fala por mal, Candinho.
- Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem, seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de aumentar? E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua. Enfim...  Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor, - crueldade, se preferes.  Clara estendeu a mão ao marido, como a amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dois foi interrompida por alguém que batia à porta da rua.  - Quem é? perguntou o marido.
- Sou eu.
Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse.  - Não é preciso...
- Faça favor.
O credor entrou e recusou sentar-se; deitou os olhos à mobília para ver se daria algo à penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais.  - Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo.
Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao
desespero, contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas a contava. Demais, recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas
em vão os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não alcançando mais que a ordem de mudança.
A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de alcançar aposento para os três em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio. Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dois, para que Cândido Neves, no desespero da crise, começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que cuidassem.
Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dois dias depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também.  Tia Mônica insistiu em dar a criança à Roda. “Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à rua dos Barbonos.” Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria. Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite seguinte.
Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos. As gratificações pela
maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma,
porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de
gesto e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna,
e
abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse
recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram
Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e
indagar pela rua e largo da Carioca, rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia
andar, segundo o anúncio. Não achou; apenas um farmacêutico da rua da Ajuda
se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à pessoa
que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata.
Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação do menino; seria a maior miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da rua dos Barbonos.  Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos certo é que o agasalhava muito, que o beijava, que lhe cobria o rosto para preservá-lo do sereno. Ao entrar na rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo.
- Hei de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele.
Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acabá-la; foi então
que lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavam aquela à rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na direção do largo da
Ajuda, viu do lado oposto, um vulto de mulher: era a mulata fugida. Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, a desceu eie também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viria buscá-la sem falta.  -Mas...
Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até o ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulata fujona.  - Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio.  Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus.
- Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei sua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço!  - Siga! repetiu Cândido Neves.
- Me solte!
- Não quero demoras; siga!
Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho.  Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoites, - coisa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoites.  - Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois?  perguntou Cândido Neves.
Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia,
à espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes coisas. Foi
arrastando a escrava pela rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde
residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede,
recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor.  - Aqui está a fujona, disse Cândido Neves.
- É ela mesma.
- Meu senhor!
- Anda, entra...
Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinqüenta mil-réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.
O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os
gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo
esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia
correr à rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as conseqüências
do desastre.
Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo, com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.  - Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração. 

domingo, 22 de julho de 2012

O homem que sabia javanês Lima Barreto



Em uma confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro, contava eu as partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades para poder viver.
Houve mesmo, uma dada ocasião, quando estive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de bacharel, para mais confiança obter dos clientes, que afluíam ao meu escritório de feiticeiro e adivinho.  Contava eu isso.
O meu amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil Blas vivido, até que, em uma pausa da conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo:
- Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo!  - Só assim se pode viver... Isto de uma ocupação única: sair de casa a certas horas, voltar a outras, aborrece, não achas? Não sei como me tenho agüentado lá, no consulado!
- Cansa-se; mas, não é disso que me admiro. O que me admira, é que tenhas corrido tantas aventuras aqui, neste Brasil imbecil e burocrático.
- Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se podem arranjar belas
páginas de vida. Imagina tu que eu já fui professor de javanês! - Quando? Aqui, depois que voltaste do consulado?
- Não; antes. E, por sinal, fui nomeado cônsul por isso.
- Conta lá como foi. Bebes mais cerveja?
- Bebo.
Mandamos buscar mais outra garrafa, enchemos os copos e continuei:
- Eu tinha chegado havia pouco ao Rio e estava literalmente na miséria. Vivia fugido de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no Jornal do Commercio o anúncio seguinte:
“Precisa-se de um professor de língua javanesa. Cartas, etc.
Ora, disse cá comigo, está ali uma colocação que não terá muitos
concorrentes; se eu capiscasse quatro palavras, ia apresentar-me. Saí do café
e andei pelas ruas, sempre a imaginar-me professor de javanês, ganhando
dinheiro, andando de bonde e sem encontros desagradáveis com os “cadáveres”. Insensivelmente dirigi-me à Biblioteca Nacional. Não sabia bem que livro iria pedir; mas, entrei, entreguei o chapéu ao porteiro, recebi a senha e subi. Na escada, acudiu-me pedir a Grande Encyclopédie, letra J, a fim de consultar o artigo relativo a Java e à língua javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que Java era uma grande ilha do arquipélago de Sonda, colônia holandesa, e o javanês, língua aglutinante do grupo malaio-polinésico, possuía uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho alfabeto hindu.
A Encyclopédie dava-me indicação de trabalhos sobre a tal língua malaia
e não tive dúvidas em consultar um deles. Copiei o alfabeto, a sua pronunciação
figurada e saí. Andei pelas ruas, perambulando e mastigando letras.
Na minha cabeça dançavam hieróglifos; de quando em quando consultava as minhas
notas; entrava nos jardins e escrevia estes calungas na areia para guardá-los bem na memória e habituar a mão a escrevê-los. À noite, quando pude entrar em casa sem ser visto, para evitar indiscretas perguntas do encarregado, ainda continuei no quarto a engolir o meu “a-b-c” malaio, e, com tanto afinco levei o propósito que, de manhã, o sabia perfeitamente.  Convenci-me que aquela era a língua mais fácil do mundo e saí; mas não tão cedo que não me encontrasse com o encarregado dos aluguéis dos cômodos:
- Senhor Castelo, quando salda a sua conta?
Respondi-lhe então eu, com a mais encantadora esperança:
- Breve... Espere um pouco... Tenha paciência... Vou ser nomeado professor de javanês, e...
Por aí o homem interrompeu-me:
- Que diabo vem a ser isso, Senhor Castelo?
Gostei da diversão e ataquei o patriotismo do homem:
- É uma língua que se fala lá pelas bandas do Timor. Sabe onde é?  Oh! alma ingênua! O homem esqueceu-se da minha dívida e disse-me com aquele falar forte dos portugueses:
- Eu cá por mim, não sei bem; mas ouvi dizer que são umas terras que temos lá para os lados de Macau. E o senhor sabe isso, Senhor Castelo?  Animado com esta saída feliz que me deu o javanês, voltei a procurar o anúncio. Lá estava ele. Resolvi animosamente propor-me ao professorado do idioma oceânico. Redigi a resposta, passei pelo Jornal e lá deixei a carta.  Em seguida, voltei à biblioteca e continuei os meus estudos de javanês. Não fiz grandes progressos nesse dia, não sei se por julgar o alfabeto javanês o único saber necessário a um professor de língua malaia ou se por ter me empenhado mais na bibliografia e história literária do idioma que ia ensinar.
Ao cabo de dois dias, recebia eu uma carta para ir falar ao doutor Manuel
Feliciano Soares Albernaz, Barão de Jacuecanga, à Rua Conde de Bonfim, não me recordo bem que número. É preciso não te esqueceres que entrementes
continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal javanês. Além do alfabeto, fiquei sabendo o nome de alguns autores, também perguntar e responder - “como está o senhor?” - e duas ou três regras de gramática, lastrado todo esse saber com vinte palavras do léxico.  Não imaginas as grandes dificuldades com que lutei, para arranjar os quatrocentos réis da viagem! É mais fácil - podes ficar certo - aprender o javanês... Fui a pé. Cheguei suadíssimo; e, com maternal carinho, as anosas mangueiras, que se perfilavam em alameda diante da casa do titular, me receberam, me acolheram e me reconfortaram. Em toda a minha vida, foi o único momento em que cheguei a sentir a simpatia da natureza...
Era uma casa enorme que parecia estar deserta; estava maltratada, mas
não sei por que me veio pensar que nesse mau tratamento havia mais desleixo
e cansaço de viver que mesmo pobreza. Devia haver anos que não era pintada.
As paredes descascavam e os beirais do telhado, daquelas telhas vidradas de
outros tempos, estavam desguarnecidos aqui e ali, como dentaduras decadentes
ou malcuidadas.
Olhei um pouco o jardim e vi a pujança vingativa com que a tiririca e o carrapicho tinham expulsado os tinhorões e as begônias. Os crótons continuavam, porém, a viver com a sua folhagem de cores mortiças. Bati.  Custaram-me a abrir. Veio, por fim, um antigo preto africano, cujas barbas e cabelo de algodão davam à sua fisionomia uma aguda impressão de velhice, doçura e sofrimento.
Na sala, havia uma galeria de retratos: arrogantes senhores de barba em colar se perfilavam enquadrados em imensas molduras douradas, e doces perfis de senhoras, em bandós, com grandes leques, pareciam querer subir aos ares, enfunadas pelos redondos vestidos à balão; mas, daquelas velhas coisas, sobre as quais a poeira punha mais antiguidade e respeito, a que gostei mais de ver foi um belo jarrão de porcelana da China ou da Índia, como se diz. Aquela pureza da louça, a sua fragilidade, a ingenuidade do desenho e aquele seu fosco brilho de luar, diziam-me a mim que aquele objeto tinha sido feito por mãos de criança, a sonhar, para encanto dos olhos fatigados dos velhos desiludidos...
Esperei um instante o dono da casa. Tardou um pouco. Um tanto trôpego, com o lenço de alcobaça na mão, tomando veneravelmente o simonte de antanho, foi cheio de respeito que o vi chegar. Tive vontade de ir-me embora. Mesmo se não fosse ele o discípulo, era sempre um crime mistificar aquele ancião, cuja velhice trazia à tona do meu pensamento alguma coisa de augusto, de sagrado. Hesitei, mas fiquei.  - Eu sou, avancei, o professor de javanês, que o senhor disse precisar.
- Sente-se, respondeu-me o velho. O senhor é daqui, do Rio?
- Não, sou de Canavieiras.
- Como? fez ele. Fale um pouco alto, que sou surdo.
- Sou de Canavieiras, na Bahia, insisti eu.
- Onde fez os seus estudos?
- Em São Salvador.
- E onde aprendeu o javanês? indagou ele, com aquela teimosia peculiar aos velhos.
Não contava com essa pergunta, mas imediatamente arquitetei uma mentira. Contei-lhe que meu pai era javanês. Tripulante de um navio mercante, viera ter à Bahia, estabelecera-se nas proximidades de Canavieiras como pescador, casara, prosperara e fora com ele que aprendi javanês.  - E ele acreditou? E o físico? perguntou meu amigo, que até então me ouvira calado.
- Não sou, objetei, lá muito diferente de um javanês. Estes meus
cabelos corridos, duros e grossos e a minha pele basané podem dar-me muito
bem o aspecto de mestiço de malaio... Tu sabes bem que, entre nós, há de tudo: índios, malaios, taitianos, malgaches, guanches, até godos. É uma
comparsaria de raças e tipos de fazer inveja ao mundo inteiro.
- Bem, fez o meu amigo, continua.
- O velho, emendei eu, ouviu-me atentamente, considerou demoradamente o meu
físico, pareceu que me julgava de fato filho de malaio e
perguntou-me com doçura:
- Então está disposto a ensinar-me javanês?
- A resposta saiu-me sem querer: - Pois não.
- O senhor há de ficar admirado, aduziu o Barão de Jacuecanga, que
eu, nesta idade, ainda queira aprender qualquer coisa, mas...
- Não tenho que admirar. Têm-se visto exemplos e exemplos muito
fecundos...
- O que eu quero, meu caro senhor...?
- Castelo, adiantei eu.
- O que eu quero, meu caro Senhor Castelo, é cumprir um juramento de família. Não sei se o senhor sabe que eu sou neto do Conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou Pedro 1, quando abdicou. Voltando de Londres, trouxe para aqui um livro em língua esquisita, a que tinha grande estimação.  Fora um hindu ou siamês que lho dera, em Londres, em agradecimento a não sei que serviço prestado por meu avô. Ao morrer meu avô, chamou meu pai e lhe disse: “Filho, tenho este livro aqui, escrito em javanês. Disse-me quem mo deu que ele evita desgraças e traz felicidades para quem o tem. Eu não sei nada ao certo. Em todo o caso, guarda-o; mas, se queres que o fado que me deitou o sábio oriental se cumpra, faze com que teu filho o entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz.” Meu pai, continuou o velho barão, não acreditou muito na história; contudo, guardou o livro. às portas da morte, ele mo deu e disse-me o que prometera ao pai. Em começo, pouco caso fiz da história do livro. Deitei-o a um canto e fabriquei minha vida.  Cheguei até a esquecer-me dele; mas, de uns tempos a esta parte, tenho passado por tanto desgosto, tantas desgraças têm caído sobre minha velhice que me lembrei do talismã de família. Tenho que o ler, que o compreender, se não quero que os meus últimos dias anunciem o desastre da minha posteridade; e, para atendê-lo, é claro, que preciso entender o javanês. Eis aí.
Calou-se e notei que os olhos do velho se tinham orvalhado. Enxugou discretamente os olhos e perguntou-me se queria ver o tal livro. Respondi-lhe que sim. Chamou o criado, deu-lhe as instruções e explicou-me que perdera todos os filhos, sobrinhos, só lhe restando uma filha casada, cuja prole, porém, estava reduzida a um filho, débil de corpo e de saúde frágil e oscilante.
Veio o livro. Era um velho calhamaço, um inquarto antigo, encadernado em couro,
impresso em grandes letras, em um papel amarelado e grosso.  Faltava a folha do rosto e por isso não se podia ler a data da impressão. Tinha ainda umas páginas de prefácio, escritas em inglês, onde li que se tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito.  Logo informei disso o velho barão que, não percebendo que eu tinha chegado aí pelo inglês, ficou tendo em alta consideração o meu saber malaio.  Estive ainda folheando o cartapácio, à laia de quem sabe magistralmente aquela espécie de vasconço, até que afinal contratamos as condições de preço e de hora, comprometendo-me a fazer com que ele lesse o tal alfarrábio antes de um ano.
Dentro em pouco, dava a minha primeira lição, mas o velho não foi tão diligente quanto eu. Não conseguia aprender a distinguir e a escrever nem sequer quatro letras. Enfim, com metade do alfabeto levamos um mês e o Senhor Barão de Jacuecanga não ficou lá muito senhor da matéria: aprendia e desaprendia.
A filha e o genro (penso que até aí nada sabiam da história do livro) vieram a ter notícias do estudo do velho; não se incomodaram. Acharam
graça e julgaram a coisa boa para distraí-lo.
Mas com o que tu vais ficar assombrado, meu caro Castro, é com a admiração que o genro ficou tendo pelo professor de javanês. Que coisa única! Ele não se cansava de repetir: “É um assombro! Tão moço! Se eu soubesse isso, ah! onde estava!”
O marido de Dona Maria da Glória (assim se chamava a filha do barão) era desembargador, homem relacionado e poderoso; mas não se pejava em mostrar diante de todo o mundo a sua admiração pelo meu javanês. Por outro lado, o barão estava contentíssimo. Ao fim de dois meses desistira da aprendizagem e pedira-me que lhe traduzisse, um dia sim outro não, um trecho do livro encantado. Bastava entendê-lo, disse-me ele; nada se opunha que outrem o traduzisse e ele ouvisse. Assim evitava a fadiga do estudo e cumpria o encargo. Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem tolas e impingi-as ao velhote como sendo do cronicon.  Como ele ouvia aquelas bobagens!...
Ficava extático, como se estivesse a ouvir palavras de um anjo. E eu crescia aos seus olhos!
Fez-me morar em sua casa, enchia-me de presentes, aumentava-me o ordenado. Passava, enfim, uma vida regalada.
Contribuiu muito para isso o fato de vir ele a receber uma herança de um seu parente esquecido que vivia em Portugal. O bom velho atribuiu a cousa ao meu javanês; e eu estive quase a crê-lo também.
Fui perdendo os remorsos; mas, em todo o caso, sempre tive medo que
me aparecesse pela frente alguém que soubesse o tal patuá malaio. E esse meu
temor foi grande, quando o doce barão me mandou com uma carta ao Visconde de Caruru, para que me fizesse entrar na diplomacia. Fiz-lhe todas as objeções: a minha fealdade, a falta de elegância, o meu aspecto tagalo.  “Qual! retrucava ele. Vá, menino; você sabe javanês!” Fui. Mandou-me o visconde para a Secretaria dos Estrangeiros com diversas recomendações. Foi um sucesso.
O diretor chamou os chefes de secção: “Vejam só, um homem que sabe javanês - que portento!”
Os chefes de secção levaram-me aos oficiais e amanuenses e houve um destes que me olhou mais com ódio do que com inveja ou admiração. E todos diziam: “Então sabe javanês? É difícil? Não há quem o saiba aqui!” O tal amanuense, que me olhou com ódio, acudiu então: “É verdade, mas eu sei canaque. O senhor sabe?” Disse-lhe que não e fui à presença do ministro.
A alta autoridade levantou-se, pôs as mãos às cadeiras, concertou o pince-nez no nariz e perguntou: “Então, sabe javanês?” Respondi-lhe que sim; e, à sua pergunta onde o tinha aprendido, contei-lhe a história do tal pai javanês. “Bem, disse-me o ministro, o senhor não deve ir para a diplomacia; o seu físico não se presta... O bom seria um consulado na Ásia ou Oceania. Por ora, não há vaga, mas vou fazer uma reforma e o senhor entrará. De hoje em diante, porém, fica adido ao meu ministério e quero que, para o ano, parta para Bâle, onde vai representar o Brasil no Congresso de Lingüística. Estude, leia o Hovelacque, o Max Múller, e outros!” Imagina tu que eu até aí nada sabia de javanês, mas estava empregado e iria representar o Brasil em um congresso de sábios.  O velho barão veio a morrer, passou o livro ao genro para que o fizesse chegar ao neto, quando tivesse a idade conveniente e fez-me uma deixa no testamento.
Pus-me com afã no estudo das línguas malaio-polinésicas; mas não havia meio!
Bem jantado, bem vestido, bem dormido, não tinha energia necessária para fazer entrar na cachola aquelas coisas esquisitas. Comprei livros, assinei revistas: Revue Anthropologique et Linguistique, Proceedings of the English- Oceanic Association, Archivo Glottologico Italiano, o diabo, mas nada! E a minha fama crescia. Na rua, os informados apontavam-me, dizendo aos outros: “Lá vai o sujeito que sabe javanês.” Nas livrarias, os gramáticos consultavam-me sobre a colocação dos pronomes no tal jargão das ilhas de Sonda. Recebia cartas dos eruditos do interior, os jornais citavam o meu saber e recusei aceitar uma turma de alunos sequiosos de entenderem o tal javanês. A convite da redação, escrevi, no Jornal do Commercio, um artigo de quatro colunas sobre a literatura javanesa antiga e moderna...  - Como, se tu nada sabias? interrompeu-me o atento Castro.  - Muito simplesmente: primeiramente, descrevi a ilha de Java, com o auxílio de dicionários e umas poucas de geografias, e depois citei a mais não poder.
- E nunca duvidaram? perguntou-me ainda o meu amigo.  - Nunca. Isto é, uma vez quase fico perdido. A polícia prendeu um sujeito, um marujo, um tipo bronzeado que só falava uma língua esquisita.  Chamaram diversos intérpretes, ninguém o entendia. Fui também chamado, com todos os respeitos que a minha sabedoria merecia, naturalmente.  Demorei-me em ir, mas fui afinal. O homem já estava solto, graças à intervenção do cônsul holandês, a quem ele se fez compreender com meia dúzia de palavras holandesas. E o tal marujo era javanês - uf!
Chegou, enfim, a época do congresso, e lá fui para a Europa. Que
delícia! Assisti à inauguração e às sessões preparatórias. Inscreveram-me na
secção do tupi-guarani e eu abalei para Paris. Antes, porém, fiz publicar no
Mensageiro de Bâle o meu retrato, notas biográficas e bibliográficas. Quando
voltei, o presidente pediu-me desculpas por me ter dado aquela secção; não
conhecia os meus trabalhos e julgara que, por ser eu americano-brasileiro,
me estava naturalmente indicada a secção do tupi-guarani. Aceitei as
explicações e até hoje ainda não pude escrever as minhas obras sobre o javanês,
para lhe mandar, conforme prometi.
Acabado o congresso, fiz publicar extratos do artigo do Mensageiro de Bâle, em Berlim, em Turim e Paris, onde os leitores de minhas obras me ofereceram um banquete, presidido pelo Senador Gorot. Custou-me toda essa brincadeira, inclusive o banquete que me foi oferecido, cerca de dez mil francos, quase toda a herança do crédulo e bom Barão de Jacuecanga.  Não perdi meu tempo nem meu dinheiro. Passei a ser uma glória nacional e, ao saltar no cais Pharoux, recebi uma ovação de todas as classes sociais e o presidente da República, dias depois, convidava-me para almoçar em sua companhia.
Dentro de seis meses fui despachado cônsul em Havana, onde estive
seis anos e para onde voltarei, a fim de aperfeiçoar os meus estudos das línguas
da Malaia, Melanésia e Polinésia.
- É fantástico, observou Castro, agarrando o copo de cerveja.
- Olha: se não fosse estar contente, sabes que ia ser?
- Quê?
- Bacteriologista eminente. Vamos?
- Vamos. 

sexta-feira, 20 de julho de 2012

A caolha Júlia Lopes de Almeida



A caolha era uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto arqueado, braços compridos, delgados, largos nos cotovelos, grossos nos pulsos; mãos grandes, ossudas, estragadas pelo reumatismo e pelo trabalho; unhas grossas, chatas e cinzentas, cabelo crespo, de uma cor indecisa entre o branco sujo e o louro grisalho, desse cabelo cujo contato parece dever ser áspero e espinhento; boca descaída, numa expressão de desprezo, pescoço longo, engelhado, como o pescoço dos urubus; dentes falhos e cariados.  O seu aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos; não tanto pela sua altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada tinha um defeito horrível: haviam-lhe extraído o olho esquerdo; a pálpebra descera mirrada, deixando, contudo, junto ao lacrimal, uma fístula continuamente porejante.
Era essa pinta amarela sobre o fundo denegrido da olheira, era essadestilação incessante de pus que a tornava repulsiva aos olhos de toda a gente.
Morava numa casa pequena, paga pelo filho único, operário numa oficina de alfaiate; ela lavava a roupa para os hospitais e dava conta de todo o serviço da casa inclusive cozinha. O filho, enquanto era pequeno, comia
os pobres jantares feitos por ela, às vezes até no mesmo prato; à proporção que ia crescendo, ia-se-lhe a pouco e pouco manifestando na fisionomia a repugnância por essa comida; até que um dia, tendo já um ordenadozinho, declarou à mãe que, por conveniência do negócio, passava a comer fora...
Ela fingiu não perceber a verdade, e resignou-se.
Daquele filho vinha-lhe todo o bem e todo o mal.
Que lhe importava o desprezo dos outros, se o seu filho adorado lhe apagasse com um beijo todas as amarguras da existência?
Um beijo dele era melhor que um dia de sol, era a suprema carícia para o seu triste coração de mãe! Mas... os beijos foram escasseando também, com o crescimento do Antonico! Em criança ele apertava-a nos bracinhos e enchia-lhe a cara de beijos; depois, passou a beijá-la só na face direita, aquela
onde não havia vestígios de doença; agora, limitava-se a beijar-lhe a mão!
Ela compreendia tudo e calava-se.
O filho não sofria menos.
Quando em criança entrou para a escola pública da freguesia, começaram logo os colegas, que o viam ir e vir com a mãe, a chamá-lo - o filho da caolha.
Aquilo exasperava-o; respondia sempre.
Os outros riam-se e chacoteavam-no; ele queixava-se aos mestres, os mestres ralhavam com os discípulos, chegavam mesmo a castigá-los - mas a alcunha pegou, já não era só na escola que o chamavam assim.  Na rua, muitas vezes, ele ouvia de uma ou de outra janela dizerem: o filho da caolha! Lá vai o filho da caolha! Lá vem o filho da caolha!  Eram as irmãs dos colegas, meninas novas, inocentes e que, industriadas pelos irmãos, feriam o coração do pobre Antonico cada vez que o viam passar!
As quitandeiras, onde iam comprar as goiabas ou as bananas para o lunch, aprenderam depressa a denominá-lo como os outros e, muitas vezes, afastando os pequenos que se aglomeravam ao redor delas, diziam, estendendo uma mancheia de araçás, com piedade e simpatia:
- Taí, isso é pra o filho da caolha!
O Antonico preferia não receber o presente a ouvi-lo acompanhar de tais palavras; tanto mais que os outros, com inveja, rompiam a gritar, cantando em coro, num estribilho já combinado:
- Filho da caolha, filho da caolha!
O Antonico pediu à mãe que o não fosse buscar à escola; e, muito vermelho, contou-lhe a causa; sempre que o viam aparecer à porta do colégio os companheiros murmuravam injúrias, piscavam os olhos para o Antonico e faziam caretas de náuseas!
A caolha suspirou e nunca mais foi buscar o filho.  Aos onze anos o Antonico pediu para sair da escola: levava a brigar com os condiscípulos, que o intrigavam e malqueriam. Pediu para entrar para uma oficina de marceneiro. Mas na oficina de marceneiro aprenderam depressa a chamá-lo - o filho da caolha, a humilhá-lo, como no colégio.  Além de tudo, o serviço era pesado e ele começou a ter vertigens e desmaios. Arranjou então um lugar de caixeiro de venda; os seus ex-colegas agrupavam-se à porta, insultando-o, e o vendeiro achou prudente mandar o caixeiro embora, tanto que a rapaziada ia-lhe dando cabo do feijão e do arroz expostos à porta nos sacos abertos! Era uma contínua saraivada de cereais sobre o pobre Antonico!
Depois disso passou um tempo em casa, ocioso, magro, amarelo,
deitado pelos cantos, dormindo às moscas, sempre zangado e sempre bocejante! Evitava sair de dia e nunca, mas nunca, acompanhava a mãe; esta poupava-o: tinha medo de que o rapaz, num dos desmaios, lhe morresse nos braços, e por isso nem sequer o repreendia! Aos dezesseis anos, vendo-o mais forte, pediu e obteve-lhe, a caolha, um lugar numa oficina de alfaiate.  A infeliz mulher contou ao mestre toda a história do filho e suplicou-lhe que não deixasse os aprendizes humilhá-lo; que os fizesse terem caridade!  Antonico encontrou na oficina uma certa reserva e silêncio da parte dos companheiros; quando o mestre dizia: Sr. Antonico, ele percebia um sorriso mal oculto nos lábios dos oficiais; mas a pouco e pouco essa suspeita, ou esse sorriso, se foi desvanecendo, até que principiou a sentir-se bem ali.
Decorreram alguns anos e chegou a vez de Antonico se apaixonar. Até aí, numa ou outra pretensão de namoro que ele tivera, encontrara sempre uma resistência que o desanimava, e que o fazia retroceder sem grandes mágoas. Agora, porém, a coisa era diversa: ele amava! amava como um louco a linda moreninha da esquina fronteira, uma rapariguinha adorável, de olhos negros como veludo e boca fresca como um botão de rosa. O Antonico voltou a ser assíduo em casa e expandia-se mais carinhosamente com a mãe; um dia,
em que viu os olhos da morena fixarem os seus, entrou como um louco no quarto da caolha e beijou-a mesmo na face esquerda, num transbordamento de esquecida ternura!
Aquele beijo foi para a infeliz uma inundação de júbilo! tornara a encontrar o seu querido filho! pôs-se a cantar toda a tarde, e nessa noite,aadormecer, dizia consigo:
- Sou muito feliz... o meu filho é um anjo!
Entretanto, o Antonico escrevia, num papel fino, a sua declaração de amor à vizinha. No dia seguinte mandou-lhe cedo a carta. A resposta fez-se esperar.  Durante muitos dias Antonico perdia-se em amarguradas conjeturas.
Ao princípio pensava:
- “É o pudor”. Depois começou a desconfiar de outra causa; por fim recebeu uma carta em que a bela moreninha confessava consentir em ser sua mulher, se ele se separasse completamente da mãe! Vinham explicações confusas, mal alinhavadas: lembrava a mudança de bairro; ele ali era muito conhecido por filho da caolha, e bem compreendia que ela não se poderia sujeitar a ser alcunhada em breve de - nora da caolha, ou coisa semelhante!  O Antonico chorou! Não podia crer que a sua casta e gentil moreninha tivesse pensamentos tão práticos!
Depois o seu rancor voltou-se para a mãe.
Ela era a causadora de toda a sua desgraça! Aquela mulher perturbara a sua infância, quebrara-lhe todas as carreiras, e agora o seu mais brilhante sonho de futuro sumia-se diante dela! Lamentava-se por ter nascido de mulher tão feia, e resolveu procurar meio de separar-se dela; considerar-se-ia humilhado continuando sob o mesmo teto; havia de protegê-la de longe, vindo de vez em quando vê-la à noite, furtivamente...
Salvava assim a responsabilidade de protetor e, ao mesmo tempo, consagraria à sua amada a felicidade que lhe devia em troca do seu consentimento e amor...
Passou um dia terrível; à noite, voltando para casa, levava o seu projeto e a decisão de o expor à mãe.
A velha, agachada à porta do quintal, lavava umas panelas com um trapo engordurado. O Antonico pensou: “A dizer a verdade eu havia de sujeitar minha mulher a viver em companhia de... uma tal criatura?” Estas últimas palavras foram arrastadas pelo seu espírito com verdadeira dor. A caolha levantou para ele o rosto, e o Antonico, vendo-lhe o pus na face, disse:
- Limpe a cara, mãe...
Ela sumiu a cabeça no avental; ele continuou:
- Afinal nunca me explicou bem a que é devido esse defeito!  - Foi uma doença, - respondeu sufocadamente a mãe - é melhor não lembrar isso!
- E é sempre a sua resposta: é melhor não lembrar isso! Por quê?
- Porque não vale a pena; nada se remedeia...
- Bem! agora escute: trago-lhe uma novidade: o patrão exige que eu vá dormir na vizinhança da loja... já aluguei um quarto: a senhora fica aqui e eu virei todos os dias a saber da sua saúde ou se tem necessidade de alguma coisa... É por força maior; não temos remédio senão sujeitar-nos!...
Ele, magrinho, curvado pelo hábito de costurar sobre os joelhos, delgado e amarelo como todos os rapazes criados à sombra das oficinas, onde o trabalho começa cedo e o serão acaba tarde, tinha lançado naquelas palavras toda a sua energia, e espreitava agora a mãe com um olho desconfiado e medroso.
A caolha levantou-se e, fixando o filho com uma expressão terrível, respondeu com doloroso desdém:
- Embusteiro! o que você tem é vergonha de ser meu filho! Saia! que eu também já sinto vergonha de ser mãe de semelhante ingrato!  O rapaz saiu cabisbaixo, humilde, surpreso da atitude que assumira a mãe, até então sempre paciente e cordata; ia com medo, maquinalmente, obedecendo à ordem que tão feroz e imperativamente lhe dera a caolha.  Ela acompanhou-o, fechou com estrondo a porta, e vendo-se só, encostou-se cambaleante à parede do corredor e desabafou em soluços.  O Antonico passou uma tarde e uma noite de angústia.
Na manhã seguinte o seu primeiro desejo foi voltar à casa; mas não teve coragem; via o rosto colérico da mãe, faces contraídas, lábios adelgaçados pelo ódio, narinas dilatadas, o olho direito saliente, a penetrar-lhe até o fundo do coração, o olho esquerdo arrepanhado, murcho - e sujo de pus; via a sua atitude altiva, o seu dedo ossudo, de falanges salientes, apontando-lhe com energia a porta da rua; sentia-lhe ainda o som cavernoso da voz, e o grande fôlego que ela tomara para dizer as verdadeiras e amargas palavras que
lhe atirara no rosto; via toda a cena da véspera e não se animava a arrostar com o perigo de outra semelhante. Providencialmente, lembrou-se da madrinha, única amiga da caolha, mas que, entretanto, raramente a procurava.
Foi pedir-lhe que interviesse, e contou-lhe sinceramente tudo que houvera.
A madrinha escutou-o comovida; depois disse:
- Eu previa isso mesmo, quando aconselhava tua mãe a que te dissesse a verdade inteira; ela não quis, aí está!
- Que verdade, madrinha?
- Hei de dizer-te perto dela; anda, vamos lá!
Encontraram a caolha a tirar umas nódoas do fraque do filho - queria mandar-lhe a roupa limpinha. A infeliz arrependera-se das palavras que dissera e tinha passado toda a noite à janela, esperando que o Antonico voltasse ou passasse apenas... Via o porvir negro e vazio e já se queixava de si! Quando a amiga e o filho entraram, ela ficou imóvel: a surpresa e a alegria amarraram-lhe toda a ação.
A madrinha do Antonico começou logo:
- O teu rapaz foi suplicar-me que te viesse pedir perdão pelo que houve aqui ontem e eu aproveito a ocasião para, à tua vista, contar-lhe o que já deverias ter-lhe dito!
- Cala-te! - murmurou com voz apagada a caolha.  - Não me calo! Essa pieguice é que te tem prejudicado! Olha! rapaz, quem cegou tua mãe foste tu!
O afilhado tornou-se lívido; e ela concluiu:
- Ah, não tiveste culpa! eras muito pequeno quando, um dia, ao almoço, levantaste na mãozinha um garfo; ela estava distraída, e antes que eu pudesse evitar a catástrofe, tu enterraste-lho pelo olho esquerdo! Ainda tenho no ouvido o grito de dor que ela deu!
O Antonico caiu pesadamente de bruços, com um desmaio; a mãe acercou-se rapidamente dele, murmurando trêmula:
- Pobre filho! vês? era por isto que eu não lhe queria dizer nada!


quinta-feira, 19 de julho de 2012

A nova Califórnia Lima Barreto



Ninguém sabia donde viera aquele homem. O agente do correio pudera
a penas informar que acudia ao nome de Raimundo Flamel, pois assim
era subscrita a correspondência que recebia. E era grande. Quase diariamente,
o carteiro lá ia a um dos extremos da cidade, onde morava o
desconhecido, sopesando um maço alentado de cartas vindas do mundo
inteiro, grossas revistas em línguas arrevesadas, livros, pacotes...
Quando Fabrício, o pedreiro, voltou de um serviço em casa do novo
habitante, todos na venda perguntaram-lhe que trabalho lhe tinha sido
determinado. - Vou fazer um forno, disse o preto, na sala de jantar.
Imaginem o espanto da pequena cidade de Tubiacanga, ao saber de tão
extravagante construção: um forno na sala de jantar! E, pelos dias seguintes,
Fabrício pôde contar que vira balões de vidros, facas sem corte, copos como
os da farmácia - um rol de coisas esquisitas a se mostrarem pelas mesas e
prateleiras como utensílios de uma bateria de cozinha em que o próprio diabo
cozinhasse.
O alarme se fez na vila. Para uns, os mais adiantados, era um fabricante
de moeda falsa; para outros, os crentes e simples, um tipo que tinha parte
com o tinhoso.
Chico da Tirana, o carreiro, quando passava em frente da casa do
homem misterioso, ao lado do carro a chiar, e olhava a chaminé da sala de
jantar a fumegar, não deixava de persignar-se e rezar um “credo” em voz
baixa; e, não fora a intervenção do farmacêutico, o subdelegado teria ido dar
um cerco à casa daquele indivíduo suspeito, que inquietava a imaginação de
toda uma população.
Tomando em consideração as informações de Fabrício, o boticário
Bastos concluíra que o desconhecido devia ser um sábio, um grande químico,
refugiado ali para mais sossegadamente levar avante os seus trabalhos
científicos.
Homem formado e respeitado na cidade, vereador, médico também,
porque o doutor Jerônimo não gostava de receitar e se fizera sócio da farmácia
para mais em paz viver, a opinião de Bastos levou tranqüilidade a todas as
consciências e fez com que a população cercasse de uma silenciosa admiração
a pessoa do grande químico, que viera habitar a cidade.
De tarde, se o viam a passear pela margem do Tubiacanga, sentando-se
aqui e ali, olhando perdidamente as águas claras do riacho, cismando diante
da penetrante melancolia do crepúsculo, todos se descobriam e não era raro
que às “boas noites” acrescentassem “doutor”. E tocava muito o coração
daquela gente a profunda simpatia com que ele tratava as crianças, a maneira
pela qual as contemplava, parecendo apiedar-se de que elas tivessem nascido
para sofrer e morrer.
Na verdade, era de ver-se, sob a doçura suave da tarde, a bondade de
Messias com que ele afagava aquelas crianças pretas, tão lisas de pele e tão
tristes de modos, mergulhadas no seu cativeiro moral, e também as brancas,
de pele baça, gretada e áspera, vivendo amparadas na necessária caquexia dos
trópicos.
Por vezes, vinha-lhe vontade de pensar qual a razão de ter Bernardin
de Saint-Pierre gasto toda a sua ternura com Paulo e Virgínia e esquecer-se
dos escravos que os cercavam...
Em poucos dias a admiração pelo sábio era quase geral, e, não o era,
unicamente porque havia alguém que não tinha em grande conta os méritos
do novo habitante.
Capitão Pelino, mestre-escola e redator da Gazeta de Tubiacanga, órgão
local e filiado ao partido situacionista, embirrava com o sábio. “Vocês hão
de ver, dizia ele, quem é esse tipo... Um caloteiro, um aventureiro ou talvez
um ladrão fugido do Rio.”
A sua opinião em nada se baseava, ou antes, baseava-se no seu oculto
despeito vendo na terra um rival para a fama de sábio de que gozava. Não que
Pelino fosse químico, longe disso; mas era sábio, era gramático. Ninguém
escrevia em Tubiacanga que não levasse bordoada do Capitão Pelino, e mesmo
quando se falava em algum homem notável lá no Rio, ele não deixava de
dizer: “Não há dúvida! O homem tem talento, mas escreve: um outro’, ‘de
resto ...” E contraía os lábios como se tivesse engolido alguma cousa amarga.
Toda a vila de Tubiacanga acostumou-se a respeitar o solene Pelino,
que corrigia e emendava as maiores glórias nacionais. Um sábio...
Ao entardecer, depois de ler um pouco o Sotero, o Cândido de Figueiredo ou o Castro Lopes e de ter passado mais uma vez a tintura nos cabelos, o velho mestre-escola saía vagarosamente de casa, muito abotoado no seu paletó de brim mineiro, e encaminhava-se para a botica do Bastos a
dar dous dedos de prosa. Conversar é um modo de dizer, porque era Pelino
avaro de palavras, limitando-se tão-somente a ouvir. Quando, porém, dos
lábios de alguém escapava a menor incorreção de linguagem, intervinha e
emendava. “Eu asseguro, dizia o agente do Correio, que...” Por aí, o
mestre-escola intervinha com mansuetude evangélica: “Não diga ‘asseguro’,
Senhor Bernardes; em português é ‘garanto.
E a conversa continuava depois da emenda, para ser de novo interrompida por
uma outra. Por essas e outras, houve muitos palestradores que
se afastaram, mas Pelino, indiferente, seguro dos seus deveres, continuava o
seu apostolado de vernaculismo. A chegada do sábio veio distraí-lo um pouco
da sua missão. Todo o seu esforço voltava-se agora para combater aquele
rival, que surgia tão inopinadamente.
Foram vãs as suas palavras e a sua eloqüência: não só Raimundo Flamel
pagava em dia as suas contas, como era generoso - pai da pobreza - e o
farmacêutico vira numa revista de específicos seu nome citado como químico
de valor.
II
Havia já anos que o químico vivia em Tubiacanga, quando, uma bela
manhã, Bastos o viu entrar pela botica adentro. O prazer do farmacêutico
foi imenso. O sábio não se dignara até aí visitar fosse quem fosse, e, certo
dia, quando o sacristão Orestes ousou penetrar em sua casa, pedindo-lhe uma
esmola para a futura festa de Nossa Senhora da Conceição, foi com visível
enfado que ele o recebeu e atendeu.
Vendo-o, Bastos saiu de detrás do balcão, correu a recebê-lo com a mais
perfeita demonstração de quem sabia com quem tratava e foi quase em uma
exclamação que disse:
- Doutor, seja bem-vindo.
O sábio pareceu não se surpreender nem com a demonstração de
respeito do farmacêutico, nem com o tratamento universitário. Docemente
olhou um instante a armação cheia de medicamentos e respondeu:
- Desejava falar-lhe em particular, Senhor Bastos.
O espanto do farmacêutico foi grande. Em que poderia ele ser útil ao
homem, cujo nome corria mundo e de quem os jornais falavam com tão
acendrado respeito. Seria dinheiro? Talvez... Um atraso no pagamento das
rendas, quem sabe? E foi conduzindo o químico para o interior da casa, sob
o olhar espantado do aprendiz, que, por um momento, deixou a “mão”
descansar no gral, onde macerava uma tisana qualquer.
Por fim, achou aos fundos, bem no fundo, o quartinho que lhe servia
para exames médicos mais detidos ou para as pequenas operações, porque
Bastos também operava. Sentaram-se e Flamel não tardou a expor:
- Como o senhor deve saber, dedico-me à química, tenho mesmo um
nome respeitado no mundo sábio...
- Sei perfeitamente, doutor, mesmo tenho disso informado, aqui, aos
meus amigos.
- Obrigado. Pois bem: fiz uma grande descoberta, extraordinária...
Envergonhado com o seu entusiasmo, o sábio fez uma pausa e depois
continuou:
- Uma descoberta... Mas não me convém, por ora, comunicar ao
mundo sábio, compreende?
- Perfeitamente.
- Por isso precisava de três pessoas conceituadas que fossem testemunhas de uma experiência dela e me dessem um atestado em forma, para
resguardar a prioridade da minha invenção... O senhor sabe: há acontecimentos
imprevistos e...
- Certamente! Não há dúvida!
- Imagine o senhor que se trata de fazer ouro...
Como? O quê? fez Bastos arregalando os olhos.
- Sim! Ouro! disse com firmeza Flamel.
-Como?
- O senhor saberá, disse o químico secamente. A questão do momento
são as pessoas que devem assistir à experiência, não acha?
- Com certeza, é preciso que os seus direitos fiquem resguardados,
porquanto...
- Uma delas, interrompeu o sábio, é o senhor; as outras duas o Senhor
Bastos fará o favor de indicar-me.
O boticário esteve um instante a pensar, passando em revista os seus
conhecimentos e, ao fim de uns três minutos, perguntou:
- O Coronel Bentes lhe serve? Conhece?
- Não. O senhor sabe que não me dou com ninguém aqui.
- Posso garantir-lhe que é homem sério, rico e muito discreto.
- É religioso? Faço-lhe esta pergunta, acrescentou Flamel logo, porque
temos que lidar com ossos de defunto e só estes servem...
- Qual! É quase ateu...
- Bem! aceito. E o outro?
Bastos voltou a pensar e dessa vez demorou-se um pouco mais consultando a sua
memória... Por fim falou:
- Será o Tenente Carvalhais, o coletor, conhece?
_- Como já lhe disse...
- É verdade. É homem de confiança, sério, mas...
- Que é que tem?
- É maçom.
- Melhor.
- E quando é?
- Domingo. Domingo, os três irão lá em casa assistir à experiência e
espero que não me recusarão as suas firmas para autenticar a minha descoberta.
- Está tratado.
Domingo, conforme prometeram, as três pessoas respeitáveis de Tubiacanga foram
à casa de Flamel, e, dias depois, misteriosamente, ele desaparecia sem deixar
vestígio ou explicação para o seu desaparecimento.
III
Tubiacanga era uma pequena cidade de três ou quatro mil habitantes,
muito pacífica, em cuja estação, de onde em onde, os expressos davam a
honra de parar. Há cinco anos não se registrava nela um furto ou roubo. As
portas e janelas só eram usadas... porque o Rio as usava.
O último crime notado em seu pobre cadastro fora um assassinato por
ocasião das eleições municipais; mas, atendendo que o assassino era do
partido do governo, e a vítima da oposição, o acontecimento em nada alterou
os hábitos da cidade, continuando ela a exportar o seu café e a mirar as suas
casas baixas e acanhadas nas escassas águas do pequeno rio que a batizara.
Mas, qual não foi a surpresa dos seus habitantes quando se veio a
verificar nela um dos mais repugnantes crimes de que se tem memória! Não
se tratava de um esquartejamento ou parricídio; não era o assassinato de uma
família inteira ou um assalto à coletoria; era cousa pior, sacrílega aos olhos
de todas as religiões e consciências; violavam-se as sepulturas do “Sossego”,
do seu cemitério, do seu campo-santo.
Em começo, o coveiro julgou que fossem cães, mas, revistando bem o muro, não encontrou senão pequenos buracos. Fechou-os; foi inútil. No dia
seguinte, um jazigo perpétuo arrombado e os ossos saqueados; no outro, um
carneiro e uma sepultura rasa. Era gente ou demônio. O coveiro não quis
mais continuar as pesquisas por sua conta, foi ao subdelegado e a notícia
espalhou-se pela cidade.
A indignação na cidade tomou todas as feições e todas as vontades.
A religião da morte precede todas e certamente será a última a morrer nas
consciências. Contra a profanação, clamaram os seis presbiterianos do lugar
- os bíblias, como lhes chama o povo; clamava o Agrimensor Nicolau,
antigo cadete, e positivista do rito Teixeira Mendes; clamava o Major
Camanho, presidente da Loja Nova Esperança; clamavam o turco Miguel
Abudala, negociante de armarinho, e o céptico Belmiro, antigo estudante,
que vivia ao deus-dará, bebericando parati nas tavernas. A própria filha do
engenheiro residente da estrada de ferro, que vivia desdenhando aquele
lugarejo, sem notar sequer os suspiros dos apaixonados locais, sempre
esperando que o expresso trouxesse um príncipe a desposá-la - a linda e
desdenhosa Cora não pôde deixar de compartilhar da indignação e do horror
que tal ato provocara em todos do lugarejo. Que tinha ela com o túmulo de
antigos escravos e humildes roceiros? Em que podia interessar aos seus lindos
olhos pardos o destino de tão humildes ossos? Porventura o furto deles
perturbaria o seu sonho de fazer radiar a beleza de sua boca, dos seus olhos
e do seu busto nas calçadas do Rio?
Decerto, não; mas era a Morte, a Morte implacável e omnipotente, de
quem ela também se sentia escrava, e que não deixaria um dia de levar a sua
linda caveirinha para a paz eterna do cemitério. Aí Cora queria os seus ossos
sossegados, quietos e comodamente descansando num caixão bem feito e
num túmulo seguro, depois de ter sido a sua carne encanto e prazer dos
vermes...
O mais indignado, porém, era Pelino. O professor deitara artigo de
fundo, imprecando, bramindo, gritando: “Na história do crime, dizia ele, já
bastante rica de fatos repugnantes, como sejam: o esquartejamento de Maria
de Macedo, o estrangulamento dos irmãos Fuoco, não se registra um que o
seja tanto como o saque às sepulturas do ‘Sossego’.”
E a vila vivia em sobressalto. Nas faces não se lia mais paz; os negócios
estavam paralisados; os namoros suspensos. Dias e dias por sobre as casas
pairavam nuvens negras e, à noite, todos ouviam ruídos, gemidos, barulhos
sobrenaturais... parecia que os mortos pediam vingança...
O saque, porém, continuava. Toda noite eram duas, três sepulturas
abertas e esvaziadas de seu fúnebre conteúdo. Toda a população resolveu ir
em massa guardar os ossos dos seus maiores. Foram cedo, mas, em breve,
cedendo à fadiga e ao sono, retirou-se um, depois outro e, pela madrugada,
já não havia nenhum vigilante. Ainda nesse dia o coveiro verificou que duas
sepulturas tinham sido abertas e os ossos levados para destino misterioso.
Organizaram então uma guarda. Dez homens decididos juraram perante o
subdelegado vigiar durante a noite a mansão dos mortos.
Nada houve de anormal na primeira noite, na segunda e na terceira;
mas, na quarta, quando os vigias já se dispunham a cochilar, um deles julgou
lobrigar um vulto esgueirando-se por entre a quadra dos carneiros. Correram
e conseguiram apanhar dous dos vampiros. A raiva e a indignação até aí
sopitadas no ânimo deles, não se contiveram mais e deram tanta bordoada
nos macabros ladrões, que os deixaram estendidos como mortos.
A notícia correu logo de casa em casa e, quando, de manhã se tratou
de estabelecer a identidade dos dous malfeitores, foi diante da população
inteira que foram neles reconhecidos o Coletor Carvalhais e o coronel Bentes,
rico fazendeiro e presidente da Câmara. Este último ainda vivia e, a perguntas
repetidas que lhe fizeram, pôde dizer que juntava os ossos para fazer ouro
e o companheiro que fugira era o farmacêutico.
Houve espanto e houve esperanças. Como fazer ouro com ossos? Seria
possível? Mas aquele homem rico, respeitado, como desceria ao papel de
ladrão de mortos se a cousa não fosse verdade!
Se fosse possível fazer, se daqueles míseros despojos fúnebres se pudesse
fazer alguns contos de réis, como não seria bom para todos eles!
O carteiro, cujo velho sonho era a formatura do filho, viu logo ali meios
de consegui-la. Castrioto, o escrivão do juiz de paz, que o ano passado
conseguiu comprar uma casa, mas ainda não a pudera cercar, pensou no muro,
que lhe devia proteger a horta e a criação. Pelos olhos do sitiante Marques,
que andava desde anos atrapalhado para arranjar um pasto, passou logo o
prado verde do Costa, onde os seus bois engordariam e ganhariam forças...
As necessidades de cada um, aqueles ossos que eram ouro, viriam
atender, satisfazer e felicitá-los; e aqueles dous ou três milhares de pessoas,
homens, crianças, mulheres, moços e velhos, como se fossem uma só pessoa,
correram à casa do farmacêutico.
A custo, o subdelegado pôde impedir que varejassem a botica e conseguir que
ficassem na praça à espera do homem, que tinha o segredo de todo
um Potosi. Ele não tardou a aparecer. Trepado a uma cadeira, tendo na mão
uma pequena barra de ouro que reluzia ao forte sol da manhã, Bastos pediu
graça, prometendo que ensinaria o segredo, se lhe poupassem a vida. “Queremos
já sabê-lo”, gritaram. Ele então explicou que era preciso redigir a receita,
indicar a marcha do processo, os reativos - trabalho longo que só poderia
ser entregue impresso no dia seguinte. Houve um murmúrio, alguns chegaram a
gritar, mas o subdelegado falou e responsabilizou-se pelo resultado.
Docilmente, com aquela doçura particular às multidões furiosas, cada
qual se encaminhou para casa, tendo na cabeça um único pensamento:
arranjar imediatamente a maior porção de ossos de defunto que pudesse.
O sucesso chegou à casa do engenheiro residente da estrada de ferro.
Ao jantar, não se falou em outra cousa. O doutor concatenou o que ainda
sabia do seu curso, e afirmou que era impossível. Isto era alquimia, cousa
morta: ouro é ouro, corpo simples, e osso é osso, um composto, fosfato de
cal. Pensar que se podia fazer de uma cousa outra era “besteira”. Cora
aproveitou o caso para rir-se petropolimente da crueldade daqueles botocudos;
mas sua mãe, Dona Emília, tinha fé que a cousa era possível.
À noite, porém, o doutor percebendo que a mulher dormia, saltou a
janela e correu em direitura ao cemitério; Cora, de pés nus, com as chinelas
nas mãos, procurou a criada para irem juntas à colheita de ossos. Não a
encontrou, foi sozinha; e Dona Emília, vendo-se só, adivinhou o passeio e
lá foi também. E assim aconteceu na cidade inteira. O pai, sem dizer nada
ao filho, saía; a mulher, julgando enganar o marido, saía; os filhos, as filhas,
os criados - toda a população, sob a luz das estrelas assombradas, correu ao
satânico rendez-vous no “Sossego”. E ninguém faltou. O mais rico e o mais
pobre lá estavam. Era o turco Miguel, era o professor Pelino, o doutor
Jerônimo, o Major Camanho, Cora, a linda e deslumbrante Cora, com os
seus lindos dedos de alabastro, revolvia a sânie das sepulturas, arrancava
as carnes ainda podres agarradas tenazmente aos ossos e deles enchia o seu
regaço até ali inútil. Era o dote que colhia e as suas narinas, que se abriam
em asas rosadas e quase transparentes, não sentiam o fétido dos tecidos
apodrecidos em lama fedorenta...
A desinteligência não tardou a surgir; os mortos eram poucos e não
bastavam para satisfazer a fome dos vivos. Houve facadas, tiros, cachações.
Pelino esfaqueou o turco por causa de um fêmur e mesmo entre as famílias
questões surgiram. Unicamente, o carteiro e o filho não brigaram. Andaram
juntos e de acordo e houve uma vez que o pequeno, uma esperta criança de
onze anos, até aconselhou ao pai: “Papai, vamos onde está mamãe; ela era tão gorda...”
De manhã, o cemitério tinha mais mortos do que aqueles que recebera
em trinta anos de existência. Uma única pessoa lá não estivera, não matara
nem profanara sepulturas: fora o bêbedo Belmiro.
Entrando numa venda, meio aberta, e nela não encontrando ninguém,
enchera uma garrafa de parati e se deixara ficar a beber sentado na margem
do Tubiacanga, vendo escorrer mansamente as suas águas sobre o áspero leito
de granito - ambos, ele e o rio, indiferentes ao que já viram, ao que viam,
mesmo à fuga do farmacêutico, com o seu Potosi e o seu segredo, sob o dossel
eterno das estrelas