sábado, 30 de junho de 2012

Passeio noturno Rubem Fonseca


- Parte 1

Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos,
pesquisas, propostas, contratos. Minha mulher, jogando paciência na
cama, um copo de uísque na mesa de cabeceira, disse, sem tirar os olhos das
cartas, você está com um ar cansado. Os sons da casa: minha filha no quarto
dela treinando impostação de voz, a música quadrifônica do quarto do meu
filho. Você não vai largar essa mala?, perguntou minha mulher, tira essa
roupa, bebe um uisquinho, você precisa aprender a relaxar.
Fui para a biblioteca, o lugar da casa onde gostava de ficar isolado e como
sempre não fiz nada. Abri o volume de pesquisas sobre a mesa, não via as letras
e nÚmeros, eu esperava apenas. Você não pára de trabalhar, aposto que os teus
sócioS não trabalham nem a metade e ganham a mesma coisa, entrou a minha
mulher na sala com o copo na mão, já posso mandar servir o jantar?
A copeira servia à francesa, meus filhos tinham crescido, eu e a minha
mulher estávamos gordos. É aquele vinho que você gosta, ela estalou a língua
com prazer. Meu filho me pediu dinheiro quando estávamos no cafezinho,
minha filha me pediu dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada pediu, nós tínhamos conta bancária conjunta.
Vamos dar uma volta de carro?, convidei. Eu sabia que ela não ia, era
hora da novela. Não sei que graça você acha em passear de carro todas as
noites, também aquele carro custou uma fortuna, tem que ser usado, eu é
que cada vez me apego menos aos bens materiais, minha mulher respondeu.
Os carros dos meninos bloqueavam a porta da garagem, impedindo
que eu tirasse o meu. Tirei os carros dos dois, botei na rua, tirei o meu,
botei
na rua, coloquei os dois carros novamente na garagem, fechei a porta, essas
manobras todas me deixaram levemente irritado, mas ao ver os pára-choques
salientes do meu carro, o reforço especial duplo de aço cromado, senti o
coração bater apressado de euforia. Enfiei a chave na ignição, era um motor
poderoso que gerava a sua força em silêncio, escondido no capô aerodinâmico.
Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta,
nesta cidade que tem mais gente do que moscas. Na avenida Brasil, ali não
podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal iluminada, cheia de
árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente não fazia
grande diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar
tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi
mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser
mais fácil. Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de
papel ordinário, coisas de padaria ou de quitanda, estava de saia e blusa,
andava depressa, havia árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um
interessante problema a exigir uma grande dose de perícia. Apaguei as luzes
do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu
o som da borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima
dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda,
um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões, dei
uma guinada rápida para a esquerda, passei como um foguete rente a uma
das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor
bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos. Ainda deu
para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido
de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio.
Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de leve
pelos pára-lamas, os pára-choques sem marca. Poucas pessoas, no mundo
inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas.
A família estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora está mais
calmo?, perguntou minha mulher, deitada no sofá, olhando fixamente o
vídeo. Vou dormir, boa noite para todos, respondi, amanhã vou ter um dia
terrível na companhia.
Passeio noturno - Parte II 
 Eu ia para casa quando um carro encostou no meu, buzinando insistentemente.  Uma mulher dirigia, abaixei os vidros do carro para entender o que ela dizia.
Uma lufada de ar quente entrou com o som da voz dela:
Não está mais conhecendo os outros?
Eu nunca tinha visto aquela mulher. Sorri polidamente. Outros carros
buzinaram atrás dos nossos. A avenida Atlântica, às sete horas da noite, é
muito movimentada.
A mulher, movendo-se no banco do seu carro, colocou o braço direito
para fora e disse, olha um presentinho para você.
Estiquei meu braço e ela colocou um papel na minha mão. Depois
arrancou com o carro, dando uma gargalhada. Guardei o papel no bolso. Chegando em casa, fui ver o que estava
escrito. Ângela, 287-3594.
À noite, saí, como sempre faço.
No dia seguinte telefonei. Uma mulher atendeu. Perguntei se Ângela
estava. Não estava. Havia ido à aula. Pela voz, via-se que devia ser a
empregada. Perguntei se Ângela era estudante. Ela é artista, respondeu a
mulher.
Liguei mais tarde. Ângela atendeu.
Sou aquele cara do Jaguar preto, eu disse.
Você sabe que eu não consegui identificar o seu carro?
Apanho você às nove horas para jantarmos, eu disse.
Espera aí, calma. O que foi que você pensou de mim?
Nada.
Eu laço você na rua e você não pensou nada?
Não. Qual é o seu endereço?
Ela morava na Lagoa, na curva do Cantagalo. Um bom lugar.
Estava na porta me esperando.
Perguntei onde queria jantar. Ângela respondeu que em qualquer
restaurante, desde que fosse fino. Ela estava muito diferente. Usava uma
maquiagem pesada, que tornava o seu rosto mais experiente, menos humano.
Quando telefonei da primeira vez disseram que você tinha ido à aula.
Aula de quê?, eu disse.
Impostação de voz.
Tenho uma filha que também estuda impostação de voz. Você é atriz,
não é?
Sou. De cinema.
Eu gosto muito de cinema. Quais foram os filmes que você fez?
Só fiz um, que está agora em fase de montagem. O nome é meio bobo,
As virgens desvairadas, não é um filme muito bom, mas estou começando,
posso esperar, tenho só vinte anos. Na semi-escuridão do carro ela parecia
ter vinte e cinco.
Parei o carro na Bartolomeu Mitre e fomos andando a pé na direção
do restaurante Mário, na rua Ataulfo de Paiva.
Fica muito cheio em frente ao restaurante, eu disse.
O porteiro guarda o carro, você não sabia?, ela disse.
Sei até demais. Uma vez ele amassou o meu.
Quando entramos, Ângela lançou um olhar desdenhoso sobre as
pessoas que estavam no restaurante. Eu nunca havia ido àquele lugar.
Procurei ver algum conhecido. Era cedo e havia poucas pessoas. Numa mesa
um homem de meia-idade com um rapaz e uma moça. Apenas três outras
mesas estavam ocupadas, com casais entretidos em suas conversas. Ninguém
me conhecia.
Ângela pediu um martíni.
Você não bebe?, Ângela perguntou.
As vezes.
Agora diga, falando sério, você não pensou nada mesmo, quando eu te
passei o bilhete?
Não. Mas se você quer, eu penso agora, eu disse.
Pensa, Ângela disse.
Existem duas hipóteses. A primeira é que você me viu no carro e se
interessou pelo meu perfil. Você é uma mulher agressiva, impulsiva e decidiu
me conhecer. Uma coisa instintiva. Apanhou um pedaço de papel arrancado
de um caderno e escreveu rapidamente o nome e o telefone. Aliás quase não
deu para eu decifrar o nome que você escreveu.
E a segunda hipótese?
Que você é uma puta e sai com uma bolsa cheia de pedaços de papel
escritos com o seu nome e o telefone. Cada vez que você encontra um sujeito num carro grande, com cara de rico e idiota, você dá o número para ele. Para
cada vinte papelinhos distribuídos, uns dez telefonam para você.
E qual a hipótese que você escolhe?, Ângela disse.
A segunda. Que você é uma puta, eu disse.
Ângela ficou bebendo o martíni como se não tivesse ouvido o que eu
havia dito. Bebi minha água mineral. Ela olhou para mim, querendo
demonstrar sua superioridade, levantando a sobrancelha - era má atriz,
via-se que estava perturbada - e disse: você mesmo reconheceu que era um
bilhete escrito às pressas dentro do carro, quase ilegível.
Uma puta inteligente prepararia todos os bilhetinhos em casa, dessa
maneira, antes de sair, para enganar os seus fregueses, eu disse.
E se eu jurasse a você que a primeira hipótese é a verdadeira. Você
acreditaria?
Não. Ou melhor, não me interessa, eu disse.
Como que não interessa?
Ela estava intrigada e não sabia o que fazer. Queria que eu dissesse algo
que a ajudasse a tomar uma decisão.
Simplesmente não interessa. Vamos jantar, eu disse.
Com um gesto chamei o maitre. Escolhemos a comida.
Ângela tomou mais dois martínis.
Nunca fui tão humilhada em minha vida. A voz de Ângela soava
ligeiramente pastosa.
Eu se fosse você não bebia mais, para poder ficar em condições de fugir
de mim, na hora em que for preciso, eu disse.
Eu não quero fugir de você, disse Ângela esvaziando de um gole o que
restava na taça. Quero outro.
Aquela situação, eu e ela dentro do restaurante, me aborrecia. Depois
ia ser bom. Mas conversar com Ângela não significava mais nada para mim,
naquele momento interlocutório.
O que é que você faz?
Controlo a distribuição de tóxicos na zona sul, eu disse.
Isso é verdade?
Você não viu o meu carro?
Você pode ser um industrial.
Escolhe a sua hipótese. Eu escolhi a minha, eu disse.
Industrial.
Errou. Traficante. E não estou gostando desse facho de luz sobre a
minha cabeça. Me lembra as vezes em que fui preso.
Não acredito numa só palavra do que você diz.
Foi a minha vez de fazer uma pausa.
Você tem razão. É tudo mentira. Olha bem para o meu rosto. Vê se
você consegue descobrir alguma coisa, eu disse.
Ângela tocou de leve no meu queixo, puxando meu rosto para o raio
de luz que descia do teto e me olhou intensamente.
Não vejo nada. Teu rosto parece o retrato de alguém fazendo uma pose,
um retrato antigo, de um desconhecido, disse Ângela.
Ela também parecia o retrato antigo de um desconhecido.
Olhei o relógio.
Vamos embora?, eu disse.
Entramos no carro.
Às vezes a gente pensa que uma coisa vai dar certo e dá errado, disse
Ângela.
O azar de um é a sorte do outro, eu disse.
A lua punha na lagoa uma esteira prateada que acompanhava o carro.
Quando eu era menino e viajava de noite a lua sempre me acompanhava,
varando as nuvens, por mais que o carro corresse.
Vou deixar você um pouco antes da sua casa, eu disse. Por quê?
Sou casado. O irmão da minha mulher mora no teu edifício.
Não é aquele que fica na curva? Não gostaria que ele me visse. Ele
conhece o meu carro. Não há outro igual no Rio.
A gente não vai se ver mais?, Ângela perguntou.
Acho difícil.
Todos os homens se apaixonam por mim.
Acredito.
E você não é lá essas grandes coisas. O teu carro é melhor do que você,
disse Ângela.
Um completa o outro, eu disse.
Ela saltou. Foi andando pela calçada, lentamente, fácil demais, e ainda
por cima mulher, mas eu tinha que ir logo para casa, já estava ficando tarde.
Apaguei as luzes e acelerei o carro. Tinha que bater e passar por cima.
Não podia correr o risco de deixá-la viva. Ela sabia muita coisa a meu respeito,
era a única pessoa que havia visto o meu rosto, entre todas as outras. E
conhecia também o meu carro. Mas qual era o problema? Ninguém havia
escapado.
Bati em Ângela com o lado esquerdo do pára-lama, jogando o seu corpo
um pouco adiante, e passei, primeiro com a roda da frente - e senti o som
surdo da frágil estrutura do corpo se esmigalhando - e logo atropelei com
a roda traseira, um golpe de misericórdia, pois ela já estava liquidada, apenas
talvez ainda sentisse um distante resto de dor e perplexidade.
Quando cheguei em casa minha mulher estava vendo televisão, um
filme colorido, dublado.
Hoje você demorou mais. Estava muito nervoso?, ela disse.
Estava. Mas já passou. Agora vou dormir. Amanhã vou ter um dia
terrível na companhia. 

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Uma galinha Clarice Lispector



Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não
olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram,
apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se
era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar
o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante
ainda vacilou - o tempo da cozinheira dar um grito - e em breve estava
no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um
telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé.
A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de
uma chaminé. O dono da casa lembrando-se da dupla necessidade de fazer
esporadicamente algum esporte e de almoçar vestiu radiante um calção de
banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou
o telhado onde esta hesitante e trêmula escolhia com urgência outro rumo.
A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido
mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela
vida a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar sem
nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido.
E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.
Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda,
concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e
enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer
por um momento. E então parecia tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga.
Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser.
Ë verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria
contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que
havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra
tão igual como se fora a mesma.
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz
alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em
triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com
certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e
indecisos.
Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo.
Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que
fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre
o ovo e assim ficou respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu
coração tão pequeno num prato solevava e abaixava as penas enchendo de
tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e
assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do
acontecimento despregou-se do chão e saiu aos gritos:
- Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer
o nosso bem!
Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente.
Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre
nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum
sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem
propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma
cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:
- Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na
minha vida!
- Eu também! jurou a menina com ardor.
A mãe, cansada, deu de ombros.
Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar
com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se
lembrava: “E dizer que a obriguei a correr naquele estado!” A galinha
tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a
cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e
a do sobressalto.
Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido,
enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga - e circulava
pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo,
embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho
susto de sua espécie já mecanizado.
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha
que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses
momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado
às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora
nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga,
no
descanso, quando deu à luz ou bicando milho - era uma cabeça de galinha,
a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.
Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.


quinta-feira, 28 de junho de 2012

Conto (não conto) Sérgio Sant'Anna



Aqui, um território vazio, espaços, um pouco mais que nada. Ou muito,
não se sabe. Mas não há ninguém, é certo. Uma cobra, talvez, insinuando-se
pelas pedras e pela pouca vegetação. Mas o que é uma cobra quando
não há nenhum homem por perto? Ela pode apenas cravar seus dentes numa
folha, de onde escorre um líquido leitoso. Do alto desta folha, um inseto alça
vôo, solta zumbidos, talvez de medo da cobra. Mas o que são os zumbidos se não há ninguém para escutá-los? São nada. Ou tudo. Talvez não se possa
separá-los do silêncio ao seu redor. E o que é também o silêncio se não existem
ouvidos? Perguntem, por exemplo, a esses arbustos. Mas arbustos não
respondem. E como poderiam responder? Com o silêncio, lógico, ou um
imperceptível bater de suas folhas. Mas onde, como, foi feita essa divisão
entre som e silêncio, se não com os ouvidos?
Mas suponhamos que existissem, um dia, esses ouvidos. Um homem
que passasse, por exemplo, com uma carroça e um cavalo. Podemos imaginá-los.
O cavalo que passa um dia e depois outro e depois outro, cumprindo
sua missão de cavalo: passar puxando uma carroça. Até que um dia veio a
cobra e zás: o sangue escorrendo da carne do cavalo. O cavalo propriamente
dito - isto é, o cérebro do cavalo - sabe que algo já não vai tão bem quanto
antes. Onde estariam certos ruídos, o eco de suas patas atrás de um morro,
o correr do riacho muito longe, o cheiro de bosta, essas coisas que dão
segurança a um cavalo? Onde está tudo isso, digam-me?
O carroeiro olha tristemente para o cavalo: somos apenas nós dois aqui
neste espaço, mas o cavalo morre. Relincha, geme, sem entender. Ou
entendendo tudo, com seu cérebro de cavalo. Diga-me, cavalinho: o que
sente um cavalo diante da morte?
Diga-me mais, cavalinho: o que é a dor de um homem quando não há
ninguém por perto? Um homem, por exemplo, que caiu num buraco muito
fundo e quebrou as duas pernas. Talvez essa dor devore a si mesma, como
uma cobra se engolindo pelo rabo.
Mas tudo isso é nada. Não se param as coisas por causa de um cavalo.
Não se param as coisas nem mesmo por causa de um homem. Esse homem
que enterrou o cavalo, não sem antes cortar um pedaço da sua carne, para
comer mais tarde. E agora o homem tinha que puxar ele mesmo a carroça.
E logo afastou do pensamento a dor por causa de seu cavalinho querido. O
homem agora tinha até raiva do cavalo, por ele ter morrido. O homem estava
com vergonha de que o vissem - ele, um ser humano - puxando uma
carroça. Mas por que seria indigno de um ser humano puxar uma carroça?
Por que não seria indigno também de um cavalo? Ora, um cavalo não liga
para essas coisas, vocês respondem. No que têm toda a razão.
E, afinal, não podemos saber se o viram ou não, o homem puxando sua
carroça, pois nos ocupamos apenas do que se passa aqui, neste espaço, onde
nada se passa. Mas de uma coisa temos certeza: esse homem também
encontrou um dia sua hora. E talvez - porque não tinha mãe, nem pai, nem
mulher, nem filhos ou amigos - ele haja se lembrado, na hora da morte, de
seu cavalo. O homem pensou, talvez, que agora iria encontrar-se com o
cavalo, do outro lado. Sim, do outro lado: de onde vêm os ecos e o vento e
onde se encontram para sempre homens e cavalos.
Para esse outro lado há uma linha tênue, que às vezes se atravessa -
uma fronteira. Essa linha, você atravessa, retorna; atravessa outra vez,
retorna,
recua de medo. Até que um dia vai e não volta mais.
Aquele homem, no tempo em que atravessava este espaço aqui, beirando
a fronteira do outro lado, gritava para escutar o eco e sorria para o cavalo.
O homem tinha certeza de que o cavalo sorria de volta, com seus enormes
dentes amarelos. O homem era louco. Mas o que é a loucura num espaço
onde só existem um homem e um cavalo? E talvez o cavalo sorrisse mesmo,
de verdade, sabendo que ali não poderiam acusá-lo de animal maluco e chicoteá-lo por causa disso.
Depois foram embora o homem e o cavalo. O cavalo, para debaixo da
terra, alimentar os vermes que também ocupam este espaço, apesar de
invisíveis. Principalmente porque não há olhos para vê-los. Já o homem foi
morrer mais longe. E ficou de novo este território vazio, espaços, um pouco
mais que nada. Não sabemos por quanto tempo, pois não existe tempo
quando não existem coisas, homens, movimentando-se no espaço.
Mas, subitamente, eis que este território é de novo invadido. Vieram
outros homens e máquinas, acenderam fogo, montaram barracas, coisas
desse tipo, que os homens fazem. Tudo isso, imaginem, para estender fios
em postes de madeira. (Fios telegráficos, explicamos, embora aqui se
desconheçam
tais nomes e engenhos.) Então o silêncio das noites e dias era
quebrado por um tipo diferente de zumbidos. Mas para quem esses zumbidos,
se aqui ninguém escuta, a não ser insetos? E de que valem novos
zumbidos para os insetos, que já os produzem tão bem? Sim, vocês estão
certos: os zumbidos destinavam-se a pessoas mais distantes, talvez no lugar
onde morreu o dono do cavalo. O que não nos interessa, pois só cuidamos
daqui, deste espaço.
Mas, de qualquer modo, todos eles (insetos, cobras, animaizinhos cujo
nome não se conhece, sem nos esquecermos dos vermes, que haviam
engordado com a carne do cavalo) sentiram-se melhor quando vieram outros
homens - bandidos, com certeza - e roubaram os postes, fios e zumbidos.
Agora tudo estava novamente como antes, tudo era normal: um território
vazio, espaços, um pouco mais que nada. Ou muito, não se sabe. Mas não
há ninguém, é certo. Uma pequena cobra, talvez, insinuando-se pelas pedras
e pela pouca vegetação - e a cravar seus dentes numa folha.
às vezes, porém, aqui é tão monótono que se imagina ver um vulto que
se move por detrás dos arbustos. Alguém que passa, agachado? Um fantasma?
Mas como, se há soluços? Por acaso soluçam os fantasmas? Mas o fato é que,
de repente, escutam-se (ou se acredita escutar) esses lamentos, uma angústia
quase silenciosa.
Ah, já sei: um menino perdido, a chorar de medo. Ou talvez um
macaquinho perdido, a chorar de medo. Ah, apenas um macaquinho, vocês
respiram aliviados. Mas quem disse que a dor de um macaquinho é mais
justa que a dor de um menino?
Mas o que estão a imaginar? Isso aqui é apenas um menino - ou
macaquinho - de papel e tinta. E, depois, se fosse de verdade, o menino
poderia morrer mordido pela cobra. Ou então matar a cobra e tornar-se um
homem. No caso do macaquinho, tornar-se um macacão. Um desses gorilas
que batem no peito cabeludo, ameaçando a todos. Talvez porque se recordasse
do medo que sentiu da cobra. Mas não se esqueçam, são todos de papel e
tinta: o menino, o macaquinho, a cobra, o homem, o macacão, seus urros e
os socos que dá no próprio peito cabeludo. Cabelos de papel, naturalmente.
E, portanto, não há motivos para sustos.
Pois aqui é somente um território vazio, espaços, um pouco mais que
nada. Quase um deserto, onde até os pássaros voam muito alto. Porque
depois, em certa ocasião, houve uma aridez tão terrível que os arbustos se
queimaram e a cobra foi embora, desiludida. No princípio, os insetos
sentiram-se muito aliviados, mas logo perceberam como é vazia de emoções
a vida dos insetos quando não existe uma cobra a persegui-los. E também se mandaram, no que logo foram seguidos subterraneamente pelos vermes, que
já estavam emagrecendo na ausência de cadáveres.
Então aqui ficou um território ainda mais vazio, espaços, um pouco
mais que nada. Ou muito, não se sabe. Mas não há ninguém, é certo. Nem
mesmo uma cobra a insinuar-se pelas pedras e pela vegetação. Pois não há
vegetação e, muito menos, cobras.
Mas digam-me: se não há ninguém, como pode alguém contar esta
história? Mas isto não é uma história, amigos. Não existe história onde nada
acontece. E uma coisa que não é uma história talvez não precise de alguém
para contá-la. Talvez ela se conte sozinha.
Mas contar o que, se não há o que contar? Então está certo: se não há
o que contar, não se conta. Ou então se conta o que não há para contar.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Flor de cerrado Maria Amélia Mello




A primeira coisa que ele fez foi olhar para o meu sapato. Logo depois para minha roupa e se eu dissesse que arriscou um olhar para minhas pernastalvez não fosse mentira. Fato é que abriu uns dentes bem maiores que a boca e sorriu uma vantagem e meia sobre minha surpresa.
Foi questão de segundos aquela troca animada de palavras, misturando
anda logo pra cá e fica quietinha ou te passo fogo. Se eu dissesse que o medo nasce no estômago como uma flor de cerrado, deveria acrescentar que nascia uma plantação bem no meio da minha barriga, seca como meus lábios e a garganta vazada de vodca. Ele era ágil, embora nervoso. Sacudia a bolsa como uma caixa de surpresas e só não adivinhava porque metia a mão dentro dela e vasculhava. Toma os documentos, dona, não preciso dessa merda. E nada de gritos.
A ameaça vinda de um menino parecia um rio em busca do mar. E,
sem saber muito bem das respostas, era como deixar-se afogar num poço
aturdido pelo próprio eco.
Com a carteira na mão, ele já podia me ver. A rua pedia silêncio àquelashoras. O olhar dele entregava o medo e o medo vinha bater nos meus pésfeito um gato ou outro bicho qualquer que se ajeita diante do dono. As mãosqueriam a certeza de que assalto não é brinquedo e que se a polícia passasse ou eu cismasse de gritar, aquilo era um calaboca ruidoso, mas muito eficiente.
Nada disso. Ele me olhava como um menino, e ia pedir pão, dinheiro,
trocado pro doce. Parecia mais sereno agora, o dinheiro garantido, a bolsa atirada longe, fora da luz que nos denunciava.
Quem olhasse de longe, teria certeza de que vivíamos confissões. E, no
fundo, era isso que fazíamos. Ele, me roubando, revelava sua miséria e sua dor. Sem falar no espanto que percorria sua cara, os olhos livres, as mãos prontas. E eu, inerte, lhe confessava as sobras, o supérfluo, as cadeiras vazias reverenciando a mesa. Enfim, era somente uma bolsa de couro cru entupidade inutilidades fundamentais.
Foi a primeira troca. A vantagem estava comigo.
De que valeria uma carteira cheia e essa vida aberta para o nada? Éramos dois pensamentos, bóias luminosas em alto-mar. Ninguém a ser salvo, a correnteza. A voz dele timbrava o escuro e o escuro engolia as sílabas, os ss,as palavras truncadas que atirava na minha cara. Que que tá olhando, hein dona? Nunca viu não, é? A voz dele batia na minha pele e eu deixava escorrer,fazendo ele pensar que comandava o espetáculo. Verdadeiro circo, pau e cerco. Num se move não, moça, esse bicho aqui num gosta de conversa. Ele chove bala e fura seu corpinho todo.
Foi o segundo tempo. Ele falou "corpinho todo". E me olhou mais
fundo, varando o escuro, metendo a mão no silêncio e abrindo a porta sem bater. E ele logo percebeu que estávamos desaguando no meio do mar. E ali boiávamos, lado a lado, náufragos de uma solidão ao contrário. A fome dele não parecia ter destino. A minha esperava, estava aprisionada e gritava no cerrado. Depois de tanta água, tanto sal, a seca rachando a terra, flor enfiada no meio do barro, resistindo sabe-se lá o quê.
Me diz seu nome, diz. Ele se espantou. Que qui há, dona? A curiosidade
começou a crescer. De um lado beirava o abismo, do outro o muro não
deixava passar. É, o seu nome. Como você se chama? Os dois olhos do
menino dançavam numa esquina e noutra. Acha que sou otário, é moça?
Passar assim o serviço, sem nada. Qualé? Tem nome não, dona. É menino
mesmo, tá falado? Ora, você tem que ter um apelido, ser chamado de alguma coisa. Sai dessa!
A vantagem aumentava. Ele, sem perceber, cedia. Era só uma bolsa,
uns trocados e os documentos - graças a Deus - ele devolvia. Por que é
que você assalta? Ah! que isso, dona? Tá a fim de sacanear, pô! Tá tudo aí na rua, soltinho, pedindo preu levar. Eu levo. Quantos anos você tem? Ih! dona,a senhora tá mesmo esticando o gumex. Vô nessa, num se mexe que leva chumbo. E nunca me viu, tá falado? A ameaça era mais uma tentação. Pra que ele fazia tanto jogo de cintura se não ia nem sair dali assim? Acho que ele gostava era de fazer cena. Será? Coisa de cinema, a porta do bar tem que ser de mola e se não estiver escrito saloon, entrou no filme errado.
Tá querendo o quê, hein dona? Fazer uma sacanagenzinha, é? Isso é
mais caro, tá sabendo? Num vale essa merda de dinheiro que tava aí, não, saca? E foi chegando mais perto.
Aí pude ver que a cara dele estava toda marcada, desenhada a traço de
navalha, podia ser canivete, gilete, essas alegorias da sobrevivência. Os cabelos escorriam até o ombro e não estavam sujos. Aliás, ele não parecia um pivete, nem tampouco um adolescente. Era um náufrago. Molhado, suado, debatendo-se para não morrer. Atirei-lhe um braço de bóia. Vem, sobe, te salvo. Ele se aproximou mais. A dona gostou do material, é? Ele não sabia fazer nada calado. Tinha que falar alto, explicar direitinho tudo o que acontecia. Gostava de se exibir. Tem gente que gosta de se mostrar nas mínimas coisas e tem gente que não tem o que mostrar e, por isso, tira partido do que é de graça. Foi a natureza, dona. Exclamava cheio de um orgulho compensador. Vem cá, vem. Cara a cara com a miséria, ela se enrolava no meu peito. Ele beijava sem rancor, nem parecia o mesmo. O carro apoiavaa perna dele na minha. E me batia uma vontade sem freios de beijar ele todinho, lamber aquela fome toda, saquear todos aqueles assaltos em nome de nada. Ele balançava o corpo contra o meu, metendo pela minha coxa. E
avançava a avenida do meu corpo, acelerando entre um vão e outro.
Babava um pouco, o que não me importava. Segurava forte minha coxa,
bem perto da calcinha. Machucava e eu gostava. A liberdade dele não tinha preço, nem etiqueta. Arfava mais forte pelo balanço ritmado contra meu corpo encostado no carro. A perna dele sacudia e ele ia endurecendo, marcando a calça. Tremia e não parecia nada à vontade. Devia ser aquela história de comer "gente muito fina", como ele se referia a mim quando estava quase gozando. Fincava os dentes no meu ombro e a língua dura arrepiava minhas costas, arredondando um tanto assim a boca só pra ficar mais gostoso. E ele era. Mas me intrigava aquele furor todo sem pasto. Daípisava na grama desobedecendo a placa. Depois cuspia nos dizeres só pra ter certeza de que comia o impossível. A fome faz destas coisas. E outras também.
O prazer é uma aventura perto do coração selvagem. E agora esse
menino vem mexer nas minhas veias e ativar meu sangue, sacudir a poeira
das minhas estantes, ferir dance e cole porter, rir alto de todos os
pensamentos, de todas as teorias, bulir com o improvável, liquidificar larousse com azulão. Sacana. Arrombar o silêncio da minha casa a quilômetros de distância,radiografar meu cotidiano sem o menor pudor e violar minha correspondência com a segurança dos amantes. Meter o pé no meu gato, pôr água pra ferver o chá e nem poder sentir o cheiro que o tchaika exalava.
Dormir Maré e acordar Manhattan. Ora, imagens, imagens, imagens.
Cheirava e alisava meu corpo como se não tivesse coisa melhor pra fazer. E vai ver não tinha mesmo. Por isso atiçava fogo em sua própria pele, apertava meu peito, mostrava a língua e melava um pouco os dedos, enfiando minha mão inteira na boca. Não respondia às perguntas que eu ainda fazia. Talvez não pudesse. Falava de boca cheia, comia sôfrego e não me ouvia, protegido pelo tesão e pelo olho atento, em vigília, com medo que passasse alguém naquele fim de mundo. Eu sabia que ali, àquelas horas, nem fantasma assustaria. Era o preço da tranquilidade.
Eu saboreava aquele fruto silvestre e ele pensava que transava com uma
grã-fina, como gemia pra dentro. Gostosa, faz assim, abre mais. Eu deixava tudo.
Ele passava a mão, esfregava o peito contra o meu, forçava a perna,mordia meu ombro, babava meu rosto todo e me chamava de puta, vaca, vagabunda... E eu flutuava, asas ao vento, subindo e descendo, acariciada pelos tapas, pela barba rala. A mão dele raspava a pintura do meu corpo, rachava os conceitos alicerçados pela educação, varava a escuridão das insônias, perfurava o prazer como umcartão
de computador, programando um inesperado de situações que aquele assalto e os poucos trocados não valeriam.
Esfrega, vaca. Pega nele, toca, anda. Se eu dissesse que obedecia, estaria mentindo. Eu queria adivinhar o que ele queria, encharcar as mãos dele de um prazer incontrolável, naufragar de vez numa ressaca e tragar a força dele,sem a menor piedade. Ele suava, a camisa empastava, afogueado no meu pescoço. Vai, vai, vai, desesperado, pronto para a entrega. Meu corpo amolecia ainda mais e ele montava na minha coxa como um aleijado e partiapara caçada em mata desconhecida. Estou gozando, gozando, faz, a voz misturava prazer e gana, agarrado a meu braço, pedindo, quase, pra eu perdoar. Eu estava aberta, vasculhada, escancarada pra rua, a polícia entrando sala adentro, sem ordem, invadindo as dependências, virando livros e papéis- no chão. Os olhos dele entornavam, a boca deixava escapar um sorriso, osbraços pendiam sem forças, anestesiados por um prazer incógnito. Eulimpava a testa dele, botava remédio, aliviava o incêndio estampado na cara. Ainda colado em mim, amparado, ele mandou eu virar. Obedecia.
- Anda, dá logo essa bunda, senão leva é muita porrada. A ameaça estava
enfraquecida, a luz filtrava o pé da porta. Virei devagar e ele metia faminto.
Comecei a sentir dor e dormência, a circulação fluir mais rápido, vontade de segurar ele lá dentro e me redimir. A mão dele roçava na frente, tocava- rápido, movimentos que conhecia de cor. O prazer alastrava corpo inteiro.
Abrandou o movimento. Relaxamos. A voz do menino cortou o silêncio.
Fica aí quietinha, nada de virar. Te manjo, puta velha. E se tu passar pra polícia esta história, tu vai ver, hein?
Meu corpo se confundia com a lataria do carro. Ouvi os passos dele se
afastando, correndo no asfalto. Minha perna estava bamba e mesmo que
quisesse gritar por ele, a voz tinha perdido as palavras e as palavras nãofariam muito sentido. Resolvi virar e a noite permanecia no mesmo lugar, os edifícios tapando a lua, as árvores protegendo os carros, os postes chovendo um cone de luz contra a calçada. Mais adiante, minha bolsa já pertencia àquela rua e os meus pés esqueciam o comando de seguir. Por um instanteolhei em volta, subi a calcinha, apanhei a bolsa, arrumei os movimentos,ensaiei uns passos sem convicção. Estranho, ele não levou o relógio. Ficaria tão bem nele. Fui recompondo as cenas devagar, medindo os passos na direção de casa.
A primeira coisa que ele fez foi olhar para o meu sapato. Ele podia ter
me matado, eu sei. Ele bem que podia ter me salvado.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Estranhos Sérgio Sant'Anna



Cheguei à portaria daquele edifício, em Botafogo, para ver o apartamento,
quase ao mesmo tempo que uma mulher. Notei que ela estava nervosa,
pelo modo como dava tragadas seguidas no cigarro, amassava com a mão
fortemente cerrada o caderno de classificados de um jornal, e também pelo
batom que transbordava da linha dos seus lábios, como se houvesse se pintado
às pressas. Mas nem por isso era menos bonita ou elegante, usando um
vestido listrado, de tecido meio rústico, que ostentava uma simplicidade que
devia ter custado algum dinheiro. Os sapatos pretos grandões, desses de
amarrar, concediam-lhe uma aparência um tanto exótica, um ar de força,
quase de brutalidade, talvez premeditada, um toque masculino que não
impedia de se evidenciar nela a mulher em todos os seus aspectos. Ou talvez
eu só tenha pensado essas coisas todas depois, tornando-me capaz de escrever
sobre elas desse modo. Naquele instante eu estava preocupado em ver logo
o apartamento.
Quando o porteiro estendeu a chave na minha direção, pois eu chegara
um pouco antes, ela disse com uma voz que pretendia ser durona, igual aos
seus sapatos.
- Não podemos subir todos juntos?
O porteiro tornou a recolher a chave, mantendo-a suspensa nos dedos,
como se fôssemos crianças disputando um doce.
- A senhora vai me desculpar, mas não posso largar a portaria - ele
disse. - O apartamento está vazio e, se a senhora não se importar, pode
subir sozinha com ele - o porteiro apontou a chave na minha direção.
Ela olhou para mim de cima a baixo, como se me avaliasse, até concluir
que eu era inofensivo.
- Por mim, tudo bem - ela disse.
Aquele exame minucioso, e talvez o seu resultado, me irritara. E
também o fato de o porteiro ter perguntado a ela se se importava de subir
comigo, e não a mim, que chegara primeiro, se me importava de subir com
ela. Afinal, estávamos disputando o mesmo apartamento. Então apenas dei
de ombros, indiferente.
Mal fiz isso, ela tomou a chave da mão do porteiro e seguiu em frente
pela aléia, ou fosse lá como fosse que se chamava aquela passagem que,
margeando o estacionamento a céu aberto, ia dar no bloco B, onde ficava o
tal apartamento.
Enquanto ia atrás dela, pensei que não estava sentindo nenhuma
vontade de morar naquele condomínio composto de dois caixotões verticais,
com o nome absolutamente ridículo de Bois de Boulogne. De fato, era todo
ajardinado e havia algumas árvores, para parecer bucólico e ecológico. Havia
também um playground à vista, o que significava muitas crianças quando
não fosse hora de colégio, e uma piscina escondida em algum lugar (eu lera
no classificado), que devia ser um tanque grande, também cheio de crianças. Na verdade eu e Clarice preferíamos começar nossa vida num desses prédios
mais antigos, com uma arquitetura humana, e não tínhamos a menor
intenção de ter filhos tão cedo. Mas eu ia ver o apartamento. Estava de férias
e programado para ver apartamentos.
Depois de subir dois lances de escadinhas, alcancei a mulher no hall
dos elevadores do bloco B, onde nos comportamos como os dois estranhos
que de fato éramos um para o outro. Ela pôs um cigarro na boca, sem
acendê-lo, e uma senhora juntou-se a nós. Logo depois o elevador chegou,
um pessoal saiu, deixamos a senhora entrar primeiro, depois entrou ela,
depois eu. A senhora desceu no quinto andar e, até lá, ficou olhando de cara
feia para o cigarro apagado nos lábios da mulher, que sustentou o seu olhar.
Assim que a senhora saiu, ela acendeu o cigarro, embora houvesse uma
plaqueta de proibição, visível no meio de vários grafitezinhos infantilóides,
alguns meio nazistas, alguns obscenos. Mas não seria eu, um ex-fumante,
que iria me incomodar com o cigarro dela.
- Também está procurando apartamento há muito tempo? - perguntei,
para quebrar o gelo entre nós.
- Não. Este é o segundo. Mas são todos umas merdas.
- É verdade - eu disse, apaziguadoramente, achando graça.
Chegamos ao décimo primeiro andar, o do nosso apartamento, e vi que
a mão dela tremia ao tentar enfiar a chave. Eu disse "Me dá licença , peguei
a chave e a introduzi facilmente na fechadura.
Ela entrou, olhou ao seu redor, até encontrar um banheiro, onde se
trancou imediatamente. Fui abrir a janela da sala, pois fazia um calor abafado
ali dentro, apesar de ser outono. A primeira coisa que notei na paisagem foi
o morro, a menos de um quilômetro de distância. Dava para ver as pessoas
subindo e descendo a favela, como num formigueiro - não se pode ser
original nessas coisas. Depois olhei para baixo e encontrei a piscina. Era
melhor do que um tanque e devia estar fechada a essa hora da tarde, porque
não havia ninguém lá. Mas o playground começava a se povoar e os gritos
chegavam ali em cima, mas eram menos crianças do que eu imaginara. Ainda
observei mais algumas coisinhas nos arredores, tentando vê-los também com
os olhos da Clarice.
Dei-me conta de que a mulher estava demorando no banheiro e
desconfiei de alguma coisa. Cocaína, por exemplo. Mas, afinal, eu não estava
com ela, podia ver o apartamento sozinho e ir logo embora, pois já concluíra,
mais ou menos, que o imóvel não fazia o gênero de Clarice.
Ao virar-me para examinar melhor a sala, reparei numas irregularidades
na parede em frente, onde o sol batia nesse instante. A massa e a pintura tinham
sido retocadas havia muito pouco tempo, em alguns pontos, formando
pequenos calombos. Aproximei-me para vê-los de perto, quando a mulher
saiu do banheiro. Fumava outra vez, o batom em seus lábios fora alinhado e
ela se maquiara em torno dos olhos, que brilhavam, avermelhados. Podia ser
cocaína, porque o seu nariz também estava congestionado, mas achei possível
que ela houvesse apenas chorado e quisesse disfarçar com a maquiagem.
Fingi não reparar nisso e pressionei o dedo num daqueles calombos,
que cedeu um pouco.
- Podem ser tiros - eu disse. - Eles devem ter extraído as balas. Por
isso o aluguel é tão barato.
Percebi que estava querendo impressioná-la, o que, a julgar por sua
resposta, não consegui.
- Você acha barato por uma pocilga dessas? Precisa ver o banheiro. É
ridículo.
- Estou falando de preço de mercado.
- É possível - ela falou, olhando em direção à janela. - Mas a favela
está longe.
- Os fuzis alcançam dois quilômetros - eu disse, e vi que continuava querendo impressioná-la.
- Você é da polícia? - ela perguntou, com uma voz falsamente neutra
e ingênua, que significava ironia com toda a certeza.
- Não, sou jornalista.
Ela se dirigiu para a janela, sem perguntar qual era o meu jornal ou a
área do jornalismo em que eu atuava, e achei melhor assim. Pois, não sei por
que, senti que me sentiria um idiota se dissesse a uma mulher como aquela
que eu era subeditor de um segundo caderno, fazendo entrevistas por telefone
e escrevendo frescuras sobre artistas egocêntricos.
Ela atirou a ponta do cigarro lá embaixo e ficou observando ela cair.
Depois virou-se para mim e disse, antes de se debruçar novamente no
parapeito:
- É uma boa altura.
De repente, me passou pela cabeça que ela só tivesse vindo ver o
apartamento para se jogar lá de cima. Podia ser mera projeção minha, claro,
pois também sou meio neurótico e até fizera um pouco de análise, antes de
conhecer Clarice, que me dava segurança. Mas, por via das dúvidas, resolvi
voltar à janela, onde poderia intervir caso a mulher fizesse menção de pular.
Confesso que, além do fato em si de não querer que um semelhante meu se
autodestruísse, pensei também nas complicações com a polícia, com a
imprensa e com Clarice. Como iria explicar a ela por q e estava vendo
apartamento com outra mulher que ainda por cima se atirara dele?
Mas, assim que me aproximei da mulher, ela disse:
- Vou dar mais uma olhada por aí.
Enquanto ela foi ver um dos quartos, que dava para os fundos do prédio,
fui ver outro bem em frente ao dela, procurando afastar a idéia de suicídio
da cabeça. Na verdade, sabia que deixara a análise antes de remexer num lodo
mais profundo, e talvez para não ter de fazê-lo. E aquela mulher, apesar de
tudo, me dava a impressão de gostar muito da vida. Apenas tinha de ser a
vida que ela gostava.
O quarto que vi era comum, um desses quadrados que os construtores
fazem economizando espaço. Também fora pintado recentemente, mas não
havia calombos nas paredes. Abri a janela e depois fui dar uma olhada no
armário embutido. Tentei abrir uma das gavetas e percebi que alguma coisa
a estava emperrando. Puxei com força e um sutiã, empoeirado, acabou por
soltar-se. Peguei-o e observei que, pelo seu tamanho e desenho, fora usado
por uma mulher de seios pequenos, provavelmente uma jovem.
Nesse instante, ouvi-a exclamar alguma coisa no outro quarto, que não
deu para entender direito. Mas dali eu podia vê-la segurando um objeto que
não consegui identificar. Devolvi o sutiã à gaveta, depressa, fechando-a em
seguida.
- Vem cá ver - a mulher me chamou em voz alta.
Dirigi-me rapidamente para lá e encontrei-a suspendendo uma tira de
cortina japonesa, que ela desenrolava do chão, onde devia ter sido largada
na
mudança. Nela, havia um buraco de bom tamanho.
- Balas! - a mulher disse, com uma espécie de alegria, embora o
buraco fosse só um. - O tiro deve ter entrado pelo outro quarto, atravessou
o corredor e a bala veio se alojar aqui. Aliás, pode até ter saído de novo
-ela mostrou a janela que havia aberto. - Você tinha razão. Os sacanas
deixaram esse lixo aqui (ela largou a cortina com repugnância) e acharam
que a gente não ia perceber.
Fiquei satisfeito com aquele reconhecimento e acrescentei, excitado:
- Vi poucas crianças no playground. Deve ter muita gente deixando
o prédio.
Foi nesse momento que ela disse sua grande frase, que me fez compreendê-la melhor:
- Morrer não tem a menor importância. O horrível é ficar velha!
- Você está longe disso - eu disse, sentindo-me metade idiota,
metade cafajeste. Mas percebi que uma centelha se acendera em seus olhos.
- Estou com trinta e quatro anos - a mulher disse e olhou para mim,
com uma certa expectativa.
- Parece ter bem menos - falei, embora ela pudesse ter também trinta
e seis. - E mesmo que não parecesse, é uma bela idade.
- Ele parece que não acha - ela retrucou, amargamente.
- Ele quem?
- Não interessa. E você, quantos anos tem?
- Trinta e dois.
- Ele tem cinquenta - ela falou com orgulho.
Foi aí que eu disse a grande besteira, ou talvez não, levando-se em conta
o que aconteceu depois.
- Ele te abandonou?
Sem qualquer aviso prévio, ela desatou um choro convulsivo, de dor e
de raiva, e avançou com os punhos cerrados na minha direção. Recuei,
amedrontado. Mas, em vez de me bater, ela se agarrou ao meu corpo,
esfregando-se nele em movimentos sofregamente ritmados. Olhei para a
janela, preocupado que alguém estivesse nos vendo. Felizmente não havia
nenhum edifício alto nas proximidades.
- Ninguém jamais me abandonou, entendeu? - ela gritava. -
Ninguém, ouviu?
- Claro - eu disse, correspondendo ao seu abraço um tanto mecanicamente,
pois continuava com medo.
- Mas o filho da puta também está comendo outra - ela disse, e agora
chorava mais livremente.
Acariciei os seus cabelos de um modo paternal:
- É por isso que você está procurando apartamento?
Ela fez que sim, com a cabeça:
- Ele está comendo uma garota de dezoito anos. Você compreende
bem o que isso significa?
- Compreendo - eu disse. E, de fato, compreendia tudo cada vez
mais. - Essas coisas acontecem - tentei consolá-la.
Foi o suficiente para ela me empurrar, com brutalidade.
- Vocês são todos iguais. Não pense que não vi você pegando aquele
sutiã. Eu não preciso usar, veja!
Ela arrancou o vestido de baixo para cima, de um só golpe. Havia parado
de chorar tão subitamente quanto começara.
Eram seios perfeitos. Talvez houvessem sofrido uma plástica, mas que
importância tinha isso se eram tão bonitos e gostosos? Não havia outra coisa
a fazer senão acariciá-los, enquanto enfiava a mão em sua calcinha branca,
e
a mulher, por sua vez, desatava o meu cinto, para depois baixar minha calça
e minha cueca, tudo de uma só vez, ajoelhando-se então aos meus pés para
chupar o meu pau, fazendo-o crescer de uma forma incomensurável, que
dava a ela uma satisfação intensa, que talvez não tivesse muita coisa a ver
comigo - eu via em seus olhos de cobra -, mas com o cara que estava
comendo a garota de dezoito anos, como se ela quisesse provar a ele o seu
poder, que acabava provando a mim e muito bem.
Pedi um tempo, porque senão aquilo ia terminar logo, e também para tirar
a camisa e os sapatos nos quais minha calça e cueca haviam se enroscado, fazendo
com que eu tivesse de me apoiar na cabeça da mulher para não perder o equilíbrio.
Enquanto eu tirava tudo, ela tirou a calcinha:
- Você quer que eu fique com ou sem os sapatos? - ela perguntou.
- Com os sapatos - eu disse. Ela deu um risinho:
- Eu sabia. Vocês são todos homossexuais enrustidos.
Ignorei aquele comentário, pois não sou machista, e preferi observar
meticulosamente a xoxota dela, que era bastante ostensiva, mas bem
proporcionada
e agradável de ver, com os cabelinhos aparados.
Ela demonstrava sentir prazer com a minha observação e acendeu
calmamente mais um cigarro.
- Poxa, como você fuma, hein? - eu disse, apenas por dizer, ou
porque aquele silêncio contemplativo me deixava um pouco embaraçado.
A resposta dela foi dar uma tragada funda e provocativa, para depois
aproximar-se de mim, pedindo que eu a beijasse na boca. Foi um desses beijos
profundos, sexuais, sem nada a ver com os beijos dos que se amam. Enquanto
ele transcorria, ela foi soprando a fumaça para dentro da minha boca,
lentamente. Eu só havia parado de fumar por causa da Clarice, que era
antitabagista militante; então não tossi nem me engasguei, pelo contrário;
traguei numa boa até o fundo, retendo o mais que pude a fumaça em meus
pulmões. Se palavras podem descrever tal experiência, devo dizer que ela me
alucinou como se eu fosse um fumador de ópio, e que foi a maior intimidade
que jamais tive com uma mulher, como se eu a conhecesse em todas as suas
entranhas. A falta de hábito, porém, fez com que eu me sentisse meio tonto,
e fui descendo meu corpo, trazendo o dela comigo.
- Quer que eu faça com você uma coisa que faço sempre com ele? -
ela perguntou.
- Quero - eu disse, ainda meio grogue.
- Então vira de bruços.
Saí do meu estupor e ergui a cabeça, assustado:
- Só se você apagar o cigarro.
- Não sou sadomasoquista - ela disse com desprezo, amassando o
cigarro no assoalho.
Virei-me de bruços e ela veio por cima de mim, de um modo que me
fez conhecer melhor o mecanismo das mulheres, ou pelo menos de certas
mulheres, e também dos homens, ou pelo menos de certos homens, como
eu e o coroa devasso. Esfregando ritmadamente a xoxota em minha bunda,
ela dizia coisas como "meu benzinho, eu te adoro, vou te comer todinho".
E assim ela gozou, inquestionavelmente, pois não captei nada de teatral em
seu orgasmo. Foi uma série de tremores silenciosos, apenas ligeiramente
arfantes, quase introspectivos, até ela cair ao meu lado, satisfeita. Depois
deitou a cabeça em meu peito e começou a fazer risquinhos nele, com suas
unhas pontiagudas.
- Por favor, não faça isso - eu disse.
- Não faço por quê? - ela continuou com mais força.
Segurei os braços dela.
- Eu sou noivo.
Ela deu uma gargalhada artificial e levantou-se, abruptamente:
- Não acredito. Estamos quase no século vinte e um e você é noivo.
Cadê a aliança?
- Não uso. Foi apenas uma forma de dizer, já que eu e Clarice vamos
nos casar.
- Bem, nesse caso talvez seja melhor eu ir embora - ela disse,
dirigindo-se até onde estavam jogadas suas coisas. - Não quero atrapalhar
a vida de vocês. Quantos anos a Clarice tem? - ela perguntou, como que
casualmente.
- Dezenove - eu disse, embora a Clarice tivesse vinte e quatro. Só
não falei dezoito porque ia parecer coincidência demais.
Se houvesse algum objeto ali para jogar na parede, tenho certeza que
ela teria jogado. Como não havia, ela dava pontapés no ar, tentando chutar os sapatões para longe, o que não conseguiu, pois eles estavam firmemente
amarrados. Então ela pôs o vestido, mas pelo avesso. Ao retirá-lo, quase se
sufocou com ele, ao contrário da maneira graciosa e segura como o fizera da
primeira vez. E acabou por estar de novo nua, e de sapatos, chorando
mansinho, como se tudo aquilo a houvesse feito amadurecer anos, conformar-se
à realidade.
Eu não sou burro, embora as coisas que escrevia para o segundo caderno
muitas vezes fossem. Continuei ali deitado, nu, esperando que a histeria dela
passasse. Sabia que se aquela mulher não cometesse nenhuma ação sem
retorno, o fato de eu ter uma noivinha de dezenove anos só faria aumentar
o seu desejo, desta vez por mim mesmo, nem que fosse para provar mais
alguma coisa. E, realmente, enxugando as lágrimas, ela acabou por fazer a
inevitável pergunta do final do século.
- Você trouxe camisinha?
- Não, eu e Clarice somos monogâmicos e não usamos.
- Mas eu e ele não somos e não confiamos em ninguém - ela disse,
indo até onde deixara sua bolsa. Remexeu lá dentro e depois atirou para mim
uma camisinha.
- Era para usar com aquele veado - ela fez questão de informar. -
Mas se você fizer alguma perversão comigo eu vou gritar.
- O que você chama de perversão?
- Se chegar perto, eu aviso - ela disse.
Fui pôr aquele troço no banheiro, onde estava mesmo precisando ir. Lá
dentro, tentei descobrir o que ela achara tão ridículo, pois era uma peça comum,
até confortável, com uma boa banheira. Imaginei que deviam ser os
azulejos brancos, com figuras azuis de Vênus e de anjinhos tocando trombetas,
possivelmente copiadas de terceira mão do banheiro de algum palácio
na Europa. E não pude deixar de pensar, incomodado, que Clarice gostaria
daquele banheiro, talvez o consideraria a melhor coisa do apartamento.
Ou teria a mulher implicado com o espelho oval, com bordas trabalhadas
em metal prateado? O espelho no qual agora eu me olhava, percebendo
que alguma coisa mudara em meu rosto, talvez uma inocência perdida,
pois estava traindo Clarice pela primeira vez. Tentei pescar lá no fundo de
mim mesmo uma velha culpa, conhecida minha, e não consegui encontrá-la.
Concluí que aquilo não era uma traição, era um acontecimento tão inexorável
quanto uma catástrofe. Eu fora atropelado pelo destino e só me restava
sair de novo ao seu encontro.
Encontrei a mulher na sala, deitada de costas num colchãozinho que
ela disse ter achado no quarto de empregada. Estava nua até dos sapatos, e,
com as pernas e os olhos semicerrados, parecia a noivinha que, tenho certeza,
ela estava representando, com algum rubor nas faces, talvez de ruge, mas o
que importava?
Descrições de pormenores sexuais são deselegantes e enfadonhas. Se as
cometi, anteriormente, foi por considerar que certos atos obedeciam a uma
lógica e motivações radicais, a uma sexualidade invulgar - e, por que não
dizer?, refinada - que poderão servir ao enriquecimento do eventual leitor
deste relato, feito por quem não se pretende mais do que um repórter.
Mas creio poder revelar que gastamos duas camisinhas e fizemos de
tudo, nesse segundo movimento, menos o que, imaginei, devia ser a tal
perversão. Quanto aos orgasmos dela, da segunda fase, foram quase certamente
falsos e teatrais e, por vezes, tive de tapar sua boca. Como se ela quisesse
anunciá-los ao prédio inteiro, talvez ao mundo, mais particularmente a
Clarice, ao tal coroa e sua garotinha. Mas o que importa, já que os meus
foram verdadeiros, assim como os meus sentimentos?
O meu grande erro, talvez, tenha sido querer traduzir esses sentimentos,
comentando o crepúsculo que vimos cair, o luar que agora banhava os nossos corpos, o canto tardio de cigarras de outono. E houve um momento em que
cheguei a dizer, ternamente:
- Poderíamos até morrer juntos.
Isso lembrou-lhe que devia ir embora.
- É melhor descermos separados, depois de todo esse escândalo. Eu
vou primeiro e você entrega as chaves, está bem? - ela disse.
- Pretende ficar com o apartamento? - perguntei enquanto nos
vestíamos.
- Uma gaiola dessas? Você deve estar brincando.
- Vai voltar para aquele cara?
- Agora já posso - ela disse.
- Vai contar para ele o que aconteceu? - perguntei, ajoelhando-me
para amarrar os seus sapatos, enquanto ela acendia mais um de seus cigarros.
- Tudo é possível - ela disse. - Mas não aconselho você a fazer o
mesmo. Sua noivinha não iria perdoá-lo.
- Talvez eu não queira ser perdoado.
- Você é louco - ela disse, encaminhando-se para a porta.
Quis acompanhá-la até o elevador, mas ela não deixou.
- Me diga ao menos o seu nome - implorei.
- O que passou, passou, está certo? Que importância têm os nomes?
- Não quer nem saber o meu?
- Não - ela disse, batendo a porta.
O que mais dizer?
Terminei com a Clarice, voltei a fumar e vim morar sozinho, pagando
uma mixaria de aluguel, no apartamento 1101, B, do Condomínio Bois de
Boulougne, na expectativa, talvez fantasiosa, pelo menos em sua segunda
parte, de que o coroa um dia aprontasse mais alguma com a mulher, e ela,
farejando o meu destino, viesse me usar para uma nova vingança.
Até o momento em que escrevo, isso não aconteceu. Mas, entre
intervalos mais ou menos longos de tediosa calmaria, muitas coisas acontecem
no Bois e suas redondezas: batalhas entre traficantes no morro Dona
Marta, o pipocar de fuzis e metralhadoras, foguetes sinalizadores cruzando
os ares, incursões da polícia e do exército na favela, helicópteros voando
rasante sobre o bairro e, de vez em quando, balas perdidas, que já furaram
novamente as paredes da sala e dos quartos.
Às vezes, engatinhando com as luzes todas apagadas, vou deitar-me no
assoalho daquele quarto em que fui possuído pela mulher. Entrincheirado
atrás de uma parede, acendo então um cigarro, dou uma tragada funda, e
penso naquela que me penetrou até o âmago.
Troquei o segundo caderno pelo setor de polícia do jornal, comprei um
binóculo potente, para observar o morro, e instalei um fax no quarto
desabitado de empregada, cujo colchão, onde às vezes durmo, conservei.
Dali, o local mais seguro do imóvel, envio as últimas notícias para a redação,
às vezes quase na hora do fechamento do caderno Cidade Escrevo à mão e
assim transmito as páginas, pois meu micro levou um balaço que varreu para
sempre sua memória, igual a um ser humano quando apaga. Estamos furando
todos os concorrentes no noticiário do Dona Marta.
Num domingo, enquanto olhava pensativo da janela lá para baixo,
testemunhei quando um senhor, usando um desses shorts largos, foi alvejado
pelas costas por um franco-atirador, no momento em que mergulhava na
piscina semideserta do condomínio. Caiu já provavelmente morto na água,
cujo azul se tingiu de vermelho, num contraste macabro na manhã ensolarada
de primavera. Foi o que escrevi, e não cortaram.
Pensei, também, que morrer talvez não tivesse mesmo a menor importância.
O sujeito havia saído de cena em grande estilo, enquanto nós, aqui,
continuamos sofrendo por razões diversas, incluindo as minhas. Mas não estava simplesmente fazendo frase quando escrevi, para finalizar
a matéria, com esperança de que a mulher me lesse, entendesse tudo e
viesse me encontrar, que morrer é muito fácil no Bois de Boulogne.


segunda-feira, 25 de junho de 2012

A Confraria dos Espadas Rubem Fonseca



Fui membro da Confraria dos Espadas. Ainda me lembro de quando nos
reunimos para escolher o nome da nossa Irmandade. Argumentei, então,
que era importante para nossa sobrevivência que tivéssemos nome e finalidade
respeitáveis, dei como exemplo o que ocorrera com a Confraria de São
Martinho, uma associação de apreciadores de vinho que, como o personagem
do Eça, venderiam a alma ao diabo por uma garrafa de Romanée-Conti 1858,
mas que ficou conhecida como uma fraternidade de bêbedos e, desmoralizada,
fechou suas portas, enquanto a Confraria do Santíssimo, cujo objetivo
declarado é promover o culto de Deus sob a invocação do Santíssimo
Sacramento, continuava existindo. Ou seja, precisávamos ter título e objetivo
dignos. Meus colegas responderam que a sociedade era secreta, que de certa
forma ela já nascia (isso foi dito ironicamente) desmoralizada, e que seu nome
não teria a menor importância, pois não seria divulgado. Acrescentaram que
a maçonaria e o rosa-cruzismo tinham originalmente títulos bonitos e
respeitáveis objetivos filantrópicos e acabaram sofrendo todo tipo de
acusação, de manipulação política a seqüestro e assassinato. Eu insisti, pedi que 
fossem sugeridos nomes para a Confraria, o que acabou sendo feito. E passamos a examinar as várias propostas sobre a mesa. Depois de acaloradas
discussões, sobraram quatro nomes. Confraria da Boa Cama foi descartado
por parecer uma associação de dorminhocos; Confraria dos Apreciadores da
Beleza Feminina, além de muito longo, foi considerado reducionista e
esteticista, não nos considerávamos estetas no sentido estrito, Picasso estava
certo ao odiar o que denominava jogo estético do olho e da mente manejados
pelos connaisseurs que "apreciavam" a beleza e, afinal, o que era "beleza"?
Nossa confraria era de Fodedores e, como disse o poeta Whitman num
poema corretamente intitulado "A Woman Waits for Me", sexo contém
tudo, corpos, almas, significados, provas, purezas, delicadezas, resultados,
promulgações, canções, comandos, saúde, orgulho, mistério maternal, leite
seminal, todas as esperanças, benefícios, doações e concessões, todas as
paixões, belezas, delícias da terra. Confraria dos Mãos Itinerantes, sugerido
por um dos poetas do nosso grupo (tínhamos muitos poetas entre nós,
evidentemente), que ilustrou sua proposta com um poema de John Donne
- "Seduction. License my roving hands, and let them go before, behind,
between, above, below" - ainda que pertinente pela sua singeleza ao
privilegiar o conhecimento através do tato, foi descartado por ser um símbolo
primário dos nossos objetivos. Enfim, depois de muita discussão, acabou
sendo adotado o nome Confraria dos Espadas. Os Irmãos mais ricos foram
seus principais defensores: os aristocratas são atraídos pelas coisas do
submundo, são fascinados pelos delinquentes, e o termo Espada como
sinônimo de Fodedor veio do mundo marginal, espada fura e agride, assim
é o pênis tal como o vêem, erroneamente, bandidos e ignorantes em geral.
Sugeri que se algum nome simbólico fosse usado por nós deveria ser o de
uma árvore ornamental cultivada por causa de suas flores, afinal o pênis é
conhecido vulgarmente como pau ou cacete, pau é o nome genérico de
qualquer árvore em muitos lugares do Brasil (mas, corretamente, não o é dos
arbustos, que têm um tronco frágil) só que meu arrazoado foi por água abaixo
quando alguém perguntou que nome a Confraria teria, Confraria dos Paus?,
dos Caules?, e eu não soube responder. Espada, conforme meus opositores,
tinha força vernácula, e a rafaméia mais uma vez dava sua valiosa contribuição
ao enriquecimento da língua portuguesa.
Como membro da Confraria dos Espadas eu acreditava, e ainda
acredito, que a cópula é a única coisa que importa para o ser humano. Foder
é viver, não existe mais nada, como os poetas sabem muito bem. Mas era
preciso uma Irmandade para defender esse axioma absoluto? Claro que não.
Havia preconceitos, mas esses não nos interessavam, as repressões sociais e
religiosas não nos afetavam. Então qual foi o objetivo da fundação da
Confraria? Muito simples, descobrir como atingir, plenamente, o orgasmo
sem ejaculação. A Rainha de Aragão, como conta Montaigne, bem antes
desse antigo reino unir-se ao de Castela, no século XV, depois de madura
deliberação do seu Conselho privado, estabeleceu como regra, tendo em vista
a moderação requerida pela modéstia dentro dos casamentos, que o número
de seis cópulas por dia era um limite legal, necessário e competente. Ou seja,
naquele tempo um homem e uma mulher copulavam, de maneira competente
e modesta, seis vezes por dia. Flaubert, para quem "une once de sperme
perdue fatigue plus que trois litres de sang" (já falei disso num dos meus
livros), achava as seis cópulas por dia humanamente impossíveis, mas
Flaubert não era, sabemos, um Espada. Ainda hoje acredita-se que a única
maneira de gozar é através da ejaculação, apesar de os chineses há mais de
três mil anos afirmarem que o homem pode ter vários orgasmos seguidos
sem ejacular, e assim evitar a perda da onça de esperma que fatiga mais que
uma hemorragia de três litros de sangue. (Os franceses chamam de petite
mort a exaustão que se segue à ejaculação, por isso um dos seus poetas dizia
que a carne era triste, mas os brasileiros dizem que a carne é fraca, em todos
os sentidos, o que me parece mais pungente, é pior ser fraco do que triste.) Calcula-se que um homem ejacula em média cinco mil vezes durante sua
vida, expelindo um total de un trilhão de espermatozóides. Tudo isso para
que e por quê? Porque na verdade somos ainda uma espécie de macaco, e
todos funcionamos como um banco genético rudimentar quando bastaria
que apenas alguns assim operassem. Nós, da Confraria dos Espadas, sabíamos
que o homem, livrando-se de sua atrofia simiesca, apoiado pelas peculiares
virtudes de sua mente (nosso cérebro não é, repito, o de um orangotango),
poderia ter vários orgasmos consecutivos sem ejacular, orgasmos que lhe
dariam ainda mais prazer do que aqueles de ordem seminal, que fazem do
homem apenas um instrumento cego do instinto de preservação da espécie.
E esse resultado nos encheu de alegria e orgulho, havíamos conseguido,
através de elaborados e penosos exercícios físicos e espirituais, alcançar
Múltiplo Orgasmo Sem Ejaculação, que ficou conhecido entre nós pelo 
acrônimo MOSE. Não posso revelar que "exercícios" eram esses pois o
juramento de manter o segredo mo impede. A rigor eu nem mesmo poderia
falar do assunto, ainda que desta maneira restrita.
A Confraria dos Espadas funcionou muito bem durante os seis meses
que se seguiram à nossa extraordinária descoberta. Até que um dia um dos
nossos Confrades, poeta como eu, pediu a convocação de uma Assembléia
Geral da Confraria para relatar um assunto que considerava de magna
importância.
A mulher dele percebendo a não ocorrência de emissio seminis
durante a cópula, concluíra que isso podia ter várias razões, que em síntese
seriam: ou ele estava economizando o esperma para outra mulher, ou então
fingia sentir prazer quando na verdade agia mecanicamente como um robô
sem alma. A mulher chegou mesmo a suspeitar que nosso colega fizera um
implante no pênis para mantê-lo sempre rijo, alegação que ele facilmente
provou ser infundada. Enfim, a mulher do poeta deixara de sentir prazer na
cópula, na verdade ela queria a viscosidade do esperma dentro da sua vagina
ou sobre a sua pele, essa secreção pegajosa e branca lhe era um símbolo
poderoso de vida. Sexo, como queria Whitman, afinal incluía o leite seminal.
A mulher não disse, mas com certeza o exaurimento dele, macho, representava
o fortalecimento dela, fêmea. Sem esses ingredientes ela não sentia prazer
e, aqui vem o mais grave, se ela não sentia prazer o nosso confrade também
não o sentia, pois nós, da Confraria dos Espadas, queremos (necessitamos)
que nossas mulheres gozem também. Esse é o nosso moto (não o cito em
latim para não parecer pernóstico, já usei latim antes): Gozar Fazendo Gozar.
Ao fim da explanação do nosso Confrade a assembléia ficou em silêncio.
A maioria dos membros da Confraria estava presente. Acabávamos de ouvir
palavras inquietantes. Eu, por exemplo, não ejaculava mais. Desde que
conseguira dominar o Grande Segredo da Confraria, o MOSE, eu não produzia 
mais uma gota sequer de sêmen, ainda que todos os meus orgasmos fossem
muito mais prazerosos. E se a minha mulher, que eu amava tanto, pedisse,
e ela poderia fazer isso a qualquer momento, que eu ejaculasse sobre seus
delicados seios alabastrinos? Perguntei a um dos médicos da Confraria -
havia vários médicos entre nós - se eu poderia voltar a ejacular. A medicina
nada sabe sobre sexo, essa é uma lamentável verdade, e o meu colega respondeu
que isso seria muito difícil, tendo em vista que eu, como todos os outros,
criara uma forte dependência àquele condicionamento físico e espiritual; que
ele já tentara, usando todos os recursos científicos a que tinha acesso, anular
essa função sem o conseguir. Todos nós, ao ouvir a terrível resposta, ficamos
extremamente consternados. Logo outros Confrades disseram que enfrentavam
o mesmo problema, que suas mulheres começavam a achar artificiosa,
ou então assustadora, aquela inesgotável ardência. Acho que me tornei um
monstro, disse o poeta que trouxera o problema ao nosso exame coletivo. E assim terminou a Confraria dos Espadas. Antes da debandada fizemos
todos um juramento de sangue de que jamais revelaríamos o segredo do
Múltiplo Orgasmo Sem Ejaculação, que ele seria levado para o nosso túmulo.
Continuamos tendo uma mulher à nossa espera, mas essa mulher tem de ser
trocada constantemente, antes de descobrir que somos diferentes, estranhos,
capazes de gozar com infinita energia sem derramamento de sêmen. Não
podemos nos apaixonar, pois nossas relações são efêmeras. Sim, eu também
me tornei um monstro e meu único desejo na vida é voltar a ser um macaco.


O vampiro de Curitiba Dalton Trevisan



 Ai, me dá vontade até de morrer. Veja, a boquinha dela está pedindo beijo
beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita vinte e
quatro horas e desmaia feliz. É uma que molha o lábio com a ponta da língua
para ficar mais excitante. Por que Deus fez da mulher o suspiro do moço e
o sumidouro do velho? Não é justo para um pecador como eu. Ai, eu morro
só de olhar para ela, imagine então se. Não imagine, arara bêbada. São onze
da manhã, não sobrevivo até à noite. Se fosse me chegando, quem não quer
nada - ai, querida, é uma folha seca ao vento - e encostasse bem devagar
na safadinha. Acho que morria: fecho os olhos e me derreto de gozo. Não
quero do mundo mais que duas ou três só para mim. Aqui diante dela, pode
que se encante com o meu bigodinho. Desgraçada! Fez que não me enxergou:
eis uma borboleta acima de minha cabecinha doida. Olha através de mim e
lê o cartaz de cinema no muro. Sou eu nuvem ou folha seca ao vento? Maldita
feiticeira, queimá-la viva, em fogo lento. Piedade não tem no coração negro
de ameixa. Não sabe o que é gemer de amor. Bom seria pendurá-la cabeça
para baixo, esvaída em sangue.
Se não quer, por que exibe as graças em vez de esconder? Hei de chupar
a carótida de uma por uma. Até lá enxugo os meus conhaques. Por causa de
uma cadelinha como essa que aí vai rebolando-se inteira. Quieto no meu
canto, ela que começou. Ninguém diga sou taradinho. No fundo de cada
filho de família dorme um vampiro - não sinta gosto de sangue. Eunuco,
ai quem me dera. Castrado aos cinco anos. Morda a língua, desgraçado. Um
anjo pode dizer amém! Muito sofredor ver moça bonita - e são tantas.
Perdoe a indiscrição, querida, deixa o recheio do sonho para as formigas? O,
você permite, minha flor? Só um pouquinho, um beijinho só. Mais um, só
mais um. Outro mais. Não vai doer, se doer eu caia duro aos seus pés. Por
Deus do céu não lhe faço mal - o nome de guerra é Nelsinho, o Delicado.
Olhos velados que suplicam e fogem ao surpreender no óculo o lampejo
do crime? Com elas usar de agradinho e doçura. Ser gentilíssimo. A impaciência
é que me perde, a quantas afugentei com gesto precipitado? Culpa
minha não é. Elas fizeram o que sou - oco de pau podre, onde floresce
aranha, cobra, escorpião. Sempre se enfeitando, se pintando, se adorando no
espelhinho da bolsa. Se não é para deixar assanhado um pobre cristão por
que é então? Olhe as filhas da cidade, como elas crescem: não trabalham nem
fiam, bem que estão gordinhas. Essa é uma das lascivas que gostam de se
coçar. Ouça o risco da unha na meia de seda. Que me arranhasse o corpo
inteiro, vertendo sangue do peito. Aqui jaz Nelsinho, o que se finou de
ataque. Gênio do espelho, existe em Curitiba alguém mais aflito que eu?
Não olhe, infeliz! Não olhe que você está perdido. Ë das tais que se
divertem a seduzir o adolescente. Toda de preto, meia preta, upa lá lá. Órfã
ou viúva? Marido enterrado, o véu esconde as espinhas que, noite para o dia,
irrompem no rosto - o sarampo da viuvez em flor. Furiosa, recolhe o leiteiro
e o padeiro. Muita noite revolve-se na cama de casal, abana-se com leque
recendendo a valeriana. Outra, com a roupa da cozinheira, à caça de soldado
pela rua. Ela está de preto, a quarentena do nojo. Repare na saia curta,
distrai-se a repuxá-la no joelho. Ah, o joelho... Redondinho de curva mais
doce que o pêssego maduro. Ai, ser a liga roxa que aperta a coxa fosforescente
de brancura. Ai, o sapato que machuca o pé. E, sapato, ser esmagado pela
dona do pezinho e morrer gemendo. Como um gato!
Veja, parou um carro. Ela vai descer. Colocar-me em posição. Ai, querida,
não faça isso: eu vi tudo. Disfarce, vem o marido, raça de cornudo. Atraio
pobre
rapaz que se deite com a mulher. Contenta-se em espiar ao lado da cama - acho
que ficaria inibido. No fundo, herói de bons sentimentos. Aquele tipo do bar,
aconteceu com ele. Esse aí um dos tais? Puxa, que olhar feroz. Alguns preferem
é o rapaz, seria capaz de? Deus me livre, beijar outro homem, ainda mais de bigode e catinga de cigarro? Na pontinha da língua a mulher filtra o mel que
embebeda o colibri e enraivece o vampiro.
Cedo a casadinha vai às compras. Ah, pintada de ouro, vestida de
pluma, pena e arminho - rasgando com os dentes, deixá-la com os cabelos
do corpo. O bracinho nu e rechonchudo - se não quer por que mostra em
vez de esconder? -, com uma agulha desenho tatuagem obscena. Tem
piedade, Senhor, são tantas, eu tão sozinho.
Ali vai uma normalista. Uma das tais disfarçada? Se eu desse com o
famoso bordel. Todas de azul e branco - ó mãe do céu! - desfilando com
meia preta e liga roxa no salão de espelhos. Não faça isso, querida, entro
em
levitação: a força dos vinte anos. Olhe, suspenso nove centímetros do chão,
desferia vôo não fora o lastro da pombinha do amor. Meu Deus, fique velho
depressa. Feche o olho, conte um, dois, três e, ao abri-lo, ancião de barba
branca. Não se iluda, arara bêbada. Nem o patriarca merece confiança, logo
mais com a ducha fria, a cantárida, o anel mágico - conheci cada pai de
família!
Atropelado por um carro, se a polícia achasse no bolso esta coleção de
retratos? Linchado como tarado, a vergonha da cidade. Meu padrinho nunca
perdoaria: o menino que marcava com miolo de pão a trilha na floresta. Ora
uma foto na revista do dentista. Ora na carta a uma viuvinha de sétimo dia.
Imagine o susto, a vergonha fingida, as horas de delírio na alcova - à palavra
alcova um nó na garganta.
Toda família tem uma virgem abrasada no quarto. Não me engana, a
safadinha: banho de assento, três ladainhas e vai para a janela, olho
arregalado
no primeiro varão. Lá envelhece, cotovelo na almofada, a solteirona na sua
tina de formol.
Por que a mão no bolso, querida? Mão cabeluda do lobisomem. Não olhe
agora. Cara feia, está perdido. Tarde demais, já vi a loira: milharal ondulante
ao
peso das espigas maduras. Oxigenada, a sobrancelha preta - como não roer
unha? Por ti serei maior que o motociclista do Globo da Morte. Deixa estar,
quer
bonitão de bigodinho. Ora, bigodinho eu tenho. Não sou bonito, mas sou
simpático, isso não vale nada? Uma vergonha na minha idade. Lá vou eu atrás
dela, quando menino era a bandinha do Tiro Rio Branco.
Desdenhosa, o passo resoluto espirra faísca das pedras. A própria égua
de Átila - onde pisa, a grama já não cresce. No braço não sente a baba do
meu olho? Se existe força do pensamento, na nuca os sete beijos da paixão.
Vai longe. Não cheirou na rosa a cinza do coração de andorinha. A loira,
tonta, abandona-se na mesma hora. O morcego, ó andorinha, ó mosca! Mãe
do céu, até as moscas instrumento do prazer - de quantas arranquei as asas?
Brado aos céus: como não ter espinha na cara?
Eu vos desprezo, virgens cruéis. A todas poderia desfrutar - nem uma
baixou sobre mim o olho estrábico de luxúria. Ah, eu bode imundo
e chifrudo, rastejariam e beijavam a cola peluda. Tão bom, só posso morrer.
Calma, rapaz: admirando as pirâmides marchadoras de Quéops, Quéfren e
Miquerinos, quem se importa com o sangue dos escravos? Me acuda,
á Deus. Não a vergonha, Senhor, chorar no meio da rua. Pobre rapaz na
danação dos vinte anos. Carregar vidro de sanguessugas e, na hora do perigo,
pregá-las na nuca?
Se o cego não vê a fumaça e não fuma, ó Deus, enterra-me no olho a
tua agulha de fogo. Não mais cão sarnento atormentado pelas pulgas, que
dá voltas para morder o rabo. Em despedida - á curvas, ó delícias -
concede-me a mulherinha que aí vai. Em troca da última fêmea pulo no
braseiro - os pés em carne viva. Ai, vontade de morrer até. A boquinha dela pedindo beijo - beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita
vinte e quatro horas e desmaia feliz.


domingo, 24 de junho de 2012

O japonês dos olhos redondos Zulmira Ribeiro Tavares



Meu amigo e informante almoça comigo aos domingos em minha casa.
Ele é desquitado, não tem filhos, eu, um solteirão. Ele vive de rendas, poucas, eu sou tradutor, tenho algumas economias além da casa própria.
Nada nos aflige em particular; nem a velhice um dia - já passamos os
quarenta, somos contemporâneos, a data exata de nosso nascimento vai mais
por conta da imaginação do que dos fatos; com isso mostro-me francamente
otimista, não acho que estamos nos saindo assim tão mal; fazemos o nosso
cooper na pista do parque Ibirapuera nas manhãs de domingo e depois do
chuveiro nos premiamos com um bom almoço comprado no restaurante da
rua de trás; a que sai da avenida larga, aquela avenida extensa onde um dia
existiu apenas o leito para as águas sujas do córrego do Sapateiro.
Digo que meu amigo além de amigo é informante porque é ele que aos
domingos reapresenta o mundo e as coisas para mim. Não que eu não tenha
idéias. Como não? E muitas! Mas ele, por assim dizer, é quem anuncia
primeiro, ele que primeiro assinala, descreve, interpreta. Eu me resguardo.
Quase sempre me calo. Mas quando a discordância é muita, respondo. Em
suma: ele que me informa verdadeiramente sobre as coisas, eu simplesmente
reajo. O que tenho e o que sei são em princípio para o meu uso. Deixo que
as impressões se acumulem, deixo que desçam fundo e formem um depósito.
É o meu amigo que faz nascer, por oposição, o meu mundo desse depósito,
tudo: uma espécie de vórtice ao contrário que se pusesse em movimento por
efeito de alguma palavra sua e, em margens circulares cada vez mais amplas,
fosse largando sucessivamente: minha casa, o bairro, suas ruas, enfim as
idéias, as cidades, fortificações concêntricas, perfeitamente estruturadas
que
ninguém diria pudessem brotar da natureza até certo ponto amorfa como
vem a ser a dos depósitos. Sendo esse o caso, eu dependendo da sua
informação para colocar a minha, tenho-me na conta e acertadamente, de
seu contra-informante. Não deve causar espécie a idéia de eu procurar definir
nossas manifestações recíprocas de amizade como atos de informação e
contra-informação. Afinal somos, como todos em quem esbarramos andando
por aí mais ou menos de pé, os transeuntes da contra-revolução de 64
(que meu amigo insiste em chamar de revolução).
Veios desgarrados e insubmissos do córrego do Sapateiro ou de algum
outro que eu nunca soube, fizeram - ajudados pelos aguaceiros de verão -
o seu trabalho de sapa no subsolo do meu terreno. Metade do muro da frente
desabou. Contratei dois pedreiros que amanhã tornam a erguê-lo, talvez
mova um processo contra a Prefeitura por perdas e danos, mas hoje:
Uma paisagem nova abre-se para mim e meu amigo. Defronte, a casa
do tintureiro torna-se próxima e animada. O tintureiro, coisa que nunca me
ocorreu, também não trabalha ao domingos. Anda de lá para cá na sua
propriedade, ergue-se, senta-se, almoça, cuida da sua cerca-viva de azaléias.
Sorri, cumprimenta:
Meu amigo, duríssimo e preciso, informa-me no ato:
- Dissimulado como todos os japoneses. Reparou no sorriso?
Calo-me como é de meu feitio.
- Reparou no sorriso?
De início acho mais prudente responder-lhe com outra pergunta para
ver se o distraio das vertentes sem volta onde usualmente sua retórica
imbatível o lança. Arrisco:
- Que sorriso?
- Pergunta estapafúrdia! E grosseira se me permite a franqueza! De
quem havia de ser o sorriso? O seu? Não gastaria um perdigoto para
descrevê-lo! O do muro caído? Sorriem os muros por acaso? E ainda que
assim fosse, teria esse muro em especial, razões particulares para sorrir?
Permaneço razoavelmente calmo. Mastigo minha lasanha, bebo um
gole do tinto, brinco com o guardanapo. Ouso mesmo a barbaridade do
lugar-comum:
- Parece que vai chover. Meu informante lambe o dedo indicador e o espeta para fora da janela
na mornidão do dia para ver de que lado vem o vento; não vem de nenhum.
Na casa defronte observa-o o vizinho tintureiro, o sorriso aumenta, quase
um riso. Meu amigo recolhe o dedo sobressaltado; volta à carga:
- Você tem ainda o desplante de me perguntar que sorriso?
Faz calor na sala, acho-me antecipadamente cansado e concedo:
- Suponho que queira se referir ao tintureiro meu vizinho, não?
- Japonês!
Sinto-me no direito de manifestar meu espanto jogando o guardanapo
com força sobre a mesa. Meu amigo o ignora e volta à carga:
- Reparou no sorriso? Se não reparou há pouco tem oportunidade
agora pois o dissimulado continua de boca aberta!
Apesar de ser impossível ao vizinho pegar o conteúdo das palavras de
meu informante, eu, como forma de compensação, cumprimento-o várias
vezes, aceno-lhe, agito aflitivamente o guardanapo como se fosse uma
bandeirinha de sinaleiro.
- Vai em frente, vai em frente - provoca meu amigo. - Só falta
você se jogar pela janela e ir lhe lamber os pés! Inocente útil! E se fosse
um
espião?
- Um espião!? - Confundo-me, interrompo-me, vejo que me deixei
apanhar numa armadilha. É preciso voltar atrás. Retomar o fio. Afasto o copo
de vinho, procuro ficar lúcido como um filamento aceso, falo escandindo as
sílabas:
- Meu caro, o que o leva a supor que estamos diante de um tintureiro
japonês?
Meu amigo e informante responde limpidament , os olhos postos no
outro lado da rua:
- Reparou na natureza do sorriso?
- Muito franco, muito aberto, se quer saber. Particularmente amigável.
- Perfeitamente, aí reside a completa dissimulação; aí também começa
a pista. Meu Deus, meu Deus! Você é mesmo um simples de coração! Um
sorriso dissimulado que se mostrasse francamente dissimulado, o seria? hein?
Sua lógica perfeita mantém minha boca fechada.
- Um sorriso dissimuladamente franco, por sua vez, teria alguma coisa
a ver com esse caso? Não, claro, porque um sorriso dessa espécie nada mais
é que o de um caráter franco que por pudor se oculta, disfarça por timidez
suas manifestações mais sinceras, está me seguindo?
Aprovo com a cabeça e tomo mais vinho.
- Agora, o que me diz de um sorriso francamente franco? Hum?
Aliso a toalha da mesa e me permito regurgitar de forma audível para
mostrar que não apenas estou na minha casa como estou muito à vontade na
minha casa. Mas meu amigo encontra-se surdo para tudo que não diga
respeito à sua cerrada argumentação; continua:
- É na manifestação absoluta de franqueza, no sorriso inteiramente
aberto sem qualquer hesitação que igualmente se manifesta a máxima
dissimulação é lógico! Sendo assim,
Irritado no limite da cólera eu o interrompo:
- Muito bem! E aonde está querendo chegar?
Meu amigo pede calma; repete a lasanha, está seguro como em raros
domingos eu o vi e particularmente satisfeito:
- Meu caro, não estou querendo chegar porque já cheguei. O sorriso
perfeitamente franco desse seu vizinho tintureiro naturalmente não faz mais
do que exprimir a capacidade para a perfeita dissimulação, própria da raça!
- Que raça?
- Recomeçamos como no caso do sorriso? Que raça, que raça!
Amarela, amarela! Japonesa, japonesa! Preciso ficar aqui repetindo como um disco quebrado? Amarela! Amarela! Japonesa! Japonesa!
Respiro fundo, enxugo o suor da testa com a ponta do guardanapo, um
gesto que reconheço desagradável e que nunca pensei fazer diante de
terceiros. Meu amigo desvia os olhos de mim com uma ponta de repugnância
em uma dessas manifestações espontâneas de rejeição pelo outro que mesmo
a maior amizade não consegue sempre ocultar. Pergunto, novamente destacando
as sílabas:
- O que o leva a supor que tenha diante dos olhos, ali defronte, um
cidadão japonês?
- Ora, ora! Não bastasse o sorriso, a profissão!
- E por que os tintureiros teriam que ser necessariamente japoneses?
- Meu caro, não necessariamente. Mas veja, sem querer chamá-lo de
ignorante, suponho que você conheça algo sobre imigração japonesa, as
diversas profissões ocupadas no Estado de S. Paulo no meio urbano depois
que os descendentes dos primeiros japoneses, deixando a lavoura...
- Basta!
- Pois bem, basta. Não pensei em ofendê-lo. Mas quando se junta a
essa característica ocupacional típica, outra característica também típica,
étnica ou cultural, como queira, o sorriso dissimulado, o que mais precisa
para formar um juízo?
Sinto que a minha jugular lateja. Nunca pensei até o dia de hoje na
minha jugular, nunca pensei em nomeá-la, tenho até dúvidas se é a jugular
mesmo, mas algo no meu pescoço pula de forma insistente como se fosse a
qualquer momento escapar do estojo da pele, minhas palavras se atropelam,
afasto o copo de vinho, digo respirando fundo:
- Se outros sinais não lhe foram suficientes, tenho o prazer aqui agora
de lhe afirmar que ali defronte acha-se um tintureiro brasileiro! Um tintureiro
brasileiro, nem mais nem menos!
- Um nisei, quer você dizer?
- Não, não é um nisei o que eu quero dizer. Trata-se de um tintureiro
brasileiro, brasileiro! Cujo pai porém, além de não ter sido um japonês,
também não foi um português! Ou africano, ou italiano!
- Ah, ah, e como então se chama esse senhor "brasileiro"? - Meu
amigo aspeia a palavra no ar com grande habilidade cênica.
- Marcus Czestochowska! não sei se pronuncio certo, o que não vem
ao caso.
- E como vem! Divina Providência! Czestochowska, Kurosawa! O
que quer mais?
- Como o que quero?
- Então, não conhece o diretor japonês de cinema, Akira Kurosawa?
Não percebe que se trata de nomes gêmeos, com o mesmo peso sonoro,
provindos do mesmo chão?
Estou farto e não o escondo:
- Não seja imbecil, é um nome polonês, aliás o nome de uma cidade
da Polônia. Nunca ouviu falar de Matka Boska Czestochowska, analfabeto?
É a Virgem Maria, é uma imagem da Virgem Maria que existe pendurada
numa igreja em Czestochowska! Provavelmente a idéia de adotar o nome da
cidade como nome de família vem de algum ascendente mais remoto que
simples pais ou avós, arrastado, quem sabe, por irresistível surto de
nacionalismo
exaltado ou catolicismo triunfalista, que sei eu?
Meu amigo balança a cabeça penalizado por mim e por meu empenho.
Não serão questiúnculas, ciscos como esses que o irão demover quando algo
verdadeiramente grande se acha à sua frente. Não ele! Enumera em voz alta
contando nos dedos:
- O sorriso, a profissão, a geminação sonora, três dados. Como não
bastassem, o quarto e que arrasta e confirma os outros três: a ocultação da nacionalidade (com ou sem adulteração de documentos o que aqui é
irrelevante). Oh, meu Deus, se fosse no tempo da guerra quando o Brasil
declarou guerra ao Eixo eu simplesmente denunciaria e mandaria prender
esse japonês!
mas as suponho coloridas, são varejeiras, mil, as asas irisadas, batem
na parte interna do crânio, as asas como mica ao sol, cintilam, fracionam-se
em mil outras, enchem-se a cabeça de som, cascalho e loucura. Agarro-me
aos fiapos de razão que sobram, procuro manter-me à tona, contra-argumento:
- Espere que o homem se vire para nós, olhe, vem vindo para mexer
de novo na cerca, aproveite agora que está bem de frente; observe: que cor
tem o seu rost ? é amarelo? pálido? negro?
Meu informante retruca sem medo:
- Rosado, não o nego. E não teria por quê.
Ganho forças paulatinamente, continuo:
- Bem, agora preste muita atenção. E os seus olhos, serão oblíquos?
amendoados? puxados? entrefechados?
Meu amigo dá um pequeno salto e sufoca um grito que me parece de
exultação e que talvez pela proximidade do assunto me lembra muito o sinal
de luta dos samurais como sempre vejo no cinema. Ele investe:
- Era por aqui que você queria me pegar? Oh, meu Deus mas a que
primarismo chegamos! Para você então o real é o imediatamente dado,
suponho? Na sua idade!
Não quero saber de conversa fiada; insisto:
- Seus olhos, seus olhos, responda-me!
- Com prazer, com muito prazer! Redondos, REDONDOS!
As moscas varejeiras retornam pelos ouvidos nas palavras de meu amigo,
entram e dançam dentro da cabeça. Mas eu quase mecanicamente vou em
frente:
-A cor?
Meu amigo informa-me com a segurança e a alegria de um colorista
nato:
- Azuis, azuis! Você duvida? Olhe lá em frente!
Do outro lado da rua, no jardim da casa oposta, os olhos de meu querido
vizinho Marcus Czestochowska reluzem como dois faroletes celestes, cintilam
em nossa direção curiosos. Já perceberam uma movimentação ativa
demais para uma simples mesa de almoço.
Meu amigo agora fará sua preleção final:
- Você talvez veja pouco televisão, talvez a julgue um divertimento
menor, um veículo plebeu. É pena. Se a visse com regularidade como eu,
talvez soubesse que durante muito tempo teve enorme sucesso aqui no país
um seriado japonês, um desenho animado em episódios chamado "Taro
Kid". Pois bem, o herói desse seriado japonês tinha que tipo de olhos?
Puxados, por acaso? Redondos, absolutamente redondos! Mesmo hoje se
você ligar a televisão para ver desenho japonês não vai ver coisa diferente.
Mas o "Taro Kid" é que chamou primeiro atenção para o fato, por isso eu
cito. Se você além disso deixasse essa inércia, descolasse o traseiro aí de
Vila
Nova e fosse dar uma volta pela Liberdade, veria muitos outros desenhos
japoneses onde os heróis sempre, com raríssimas exceções, têm os olhos?
- Absolutamente redondos - respondo com um fio de voz.
- Você em sua cegueira dirá que isso acontece por motivos de
aculturação, exportação, etc. etc. Invocará (pois passei a conhecê-lo bem de
64 para cá) mil fatores heterogêneos, indústria, capital, alteridade,
interculturalidade,
com a maior sem-cerimônia. E botará esse equipamento todo em
cena, para quê? Para complicá-la. E tudo isso com que finalidade? Recusar
mais uma vez teimosamente, - A perfeita dissimulação!
- Própria da raça!
-Amarela!
Mas meu amigo ainda não terminou:
- E a coisa não fica só ao nível da imagem cinematográfica, não senhor,
irradia-se para o humano, lá chega, penetra a carne, o conteúdo mesmo dessa
imagem de cinema! Você naturalmente (ou pelo menos assim espero) já leu
alguma coisa sobre imigração japonesa nos Estados Unidos?
- Não tive a oportunidade.
- É pena, é pena. Pois bem, informo-lhe; não irá perder a informação,
não por mim. A coisa é a seguinte: mesmo sem nenhum casamento misto,
sem nenhum fator de miscigenação, alguns traços físicos desses imigrantes
começam a mudar, inicialmente constatou-se a alteração na altura média,
devida provavelmente à alimentação diversa, ao clima etc. Agora ouça.
Acho-me imóvel com a cabeça ligeiramente estendida para meu amigo
de forma que o sol quente da tarde se abate sobre minhas orelhas, elas ardem
fundo como duas línguas de fogo, duas labaredas apertando-me o crânio,
para todos os efeitos sou mesmo "todo ouvidos".
- Ouça -, insiste mais uma vez meu amigo, não satisfeito com minha
docilidade acesa e visível. - Ouça, ouça que tudo é ganho. Você (e não se
é cientista, mesmo de domingo aqui como eu, se não se tem muito de
imaginação criadora, se não se lança um grão de audácia dentro do rigor
lógico!), você já pensou a que níveis extensos de dissimulação, a apropriação
e controle dessa possibilidade de modificação dos caracteres físicos pode
chegar? A miscigenação, e que seria à primeira vista a dissimulação mais
evidente, fácil e completa, é bem outra coisa, na verdade a nega e por isso
deve ser posta de lado nessa ordem de raciocínio. Pois no caso da miscigenação,
a desaparição de características raciais se irá dar não por sua ocultação
- o que aqui nos interessa - mas pela sua "confusão", pela sua "imersão"
ou "solubilidade" em contato com outros genes, seria portanto na verdade
a extinção da própria dissimulação, marca distintiva do biótipo em pauta
(-e nessa altura meu informante faz uma pequena pausa, dá uma piscadela
e aponta de forma significativa com o queixo, a casa defronte -). Já pensou
como o controle e desenvolvimento dessa possibilidade de alteração física
sem cruzamento vem a ser tão mais grave exatamente na medida em que
ocorre por assim dizer, na superfície, permanece externa, manipula o
fisionômico
para fazê-lo funcionar como cortina de fumaça? Permita-me a
veleidade agora de passar de cientista a poeta! Pense, ao pensar nessa espécie
de disfarce, na natureza dissimulada dos biombos, dos gestos rituais para o
preparo de um cachimbo de ópio (resvalei para os chineses, não importa),
nas engenhosas silenciosas portas (ou paredes!) corrediças de papel de arroz
(volto aos japoneses com sua arquitetura escancaradamente dissimulada) , em
suma: pense em tudo isso e pense mais; pense em como irão funcionar essas
possibilidades ainda em aberto: como uma máscara de infinitos recursos
onde por trás se há de esconder sempre, em quaisquer circunstâncias...
Completo porque não há mesmo outra coisa a fazer:
- O japonês, o amarelo, o oriental.
- Isso - reforça satisfeito meu informante e encerra a preleção com
uma exortação carinhosa:
- Assim, não se deixe perturbar pelo fato dos olhinhos de seu vizinho
serem azuis, muito menos se abale com o fato de serem redondos! Indo por
essa ordem de raciocínio, por que haveria de espantá-lo a circunstância de
estarem tais olhos embutidos numa face rosada e provavelmente (daqui de longe não posso afirmar com segurança) pintalgada de sardas? e (veja que a
nada temo, que nada evito em minha descrição), circundada por cabelos
vermelhos encaracolados e, vou mais longe, vou mais longe, tudo isso
sustentado por uma coluna vertebral e mais duas pernas que, somadas,
totalizam um conjunto de pelo menos metro e noventa e lá vai pedrada? E
se eu nada temo, por que iria você se perturbar? Siga o meu exemplo, olhe
em frente, no sentido literal e figurado do termo porque ambos se ajustam
à situação. Olhe em frente e fique alerta: alerta sim, mas para o significado
oculto de tudo isso, a significação subjacente. Em suma, analise com isenção
e livre de paixões esse curioso espaço que proveitosamente se abre à nossa
frente para o nosso mútuo regozijo intelectual. Observe nele a rigorosa
não-coincidência entre a imagem média do japonês comum e a rica e
complicada configuração de variegadas cores que se movimenta para lá da
cerca-viva de azaléias! E garanto que se você estiver descansado e livre de
preconceito, se o tinto não lhe tiver subido à cabeça, saberá sem dúvida chegar
à conclusão correta.
Uma pausa se dependura no ar parado como bicho preguiça. Migalhas
de pão e salpicos de molho e vinho sujaram a toalha. Meu amigo e informante
não teme a interrupção de nossa amizade. É antiga como o bairro, tem seus
hábitos, seus desacordos que sempre voltam, alguns mais profundos e
definitivos do que esse, como a estória da contra-revolução à qual meu
parceiro de mesa sempre tira o aposto com a teatralidade de quem desembainha
a espada e separa de golpe uma cabeça do tronco. Ele sem dúvida foi
talhado para as situações absolutas e o que irá permanecer é a sua lógica de
ferro, sua lógica fechada de algemas, perfeita como a circunferência do olho
azul que distingo entre uma azaléia e outra, saltando espantado no puro
amarelo do verão.
Disse que minha qualidade de contra-informante nascia e se desenvolvia a partir
da informação, prestada pelo meu companheiro de almoço de
domingo. Isso é verdade. Todavia não disse que ultrapassada a primeira fase,
do diálogo audível, a outra desenvolve-se sempre resistente mas invisível.
Minha contra-informação como o subsolo de meu terreno tem um tipo de
porosidade que a permite se mover perpetuamente e mover aquilo que
sustenta. O bairro, o município e o mundo, as fortificações em que me apóio
vogam docemente, talvez não resistam, mas disso eu gosto. Isso é a razão.
Isso é comigo. Me abro reflexivamente sem forças, cedo porque minha
formação é como essa terra preta do bairro, não presta, não edificará cidades
ou códigos.
Não ficará.