quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Dica de livro


Setembro 1999 Edição 25.728 Sábado, 11/09/1999 Tiragem 458,037 CADERNO ESPECIAL - JORNAL DE RESENHAS

Órfão de pátria

11/09/1999

Autor: ISABEL LUSTOSA . . 6306isabEditoria: CADERNO ESPECIAL Página: Especial-6 9/3733Edição: Nacional Tamanho: 6494 caracteres Sep 11, 1999Observações: JORNAL DE RESENHAS; COM SUB-RETRANCA; PÉ BIOGRÁFICOAssuntos Principais: AS BARBAS DO IMPERADOR /LIVRO/; LILIA MORITZ SCHWARCZ

Órfão de pátria ISABEL LUSTOSA Assim como se disse de Truman que fora a primeira criança adotada por uma empresa, de D. Pedro 2º pode-se dizer que foi a primeira criança adotada por um país. Possivelmente a cena mais traumática de sua infância deve ter sido a da manhã de 7 de abril de 1831, em que acordara imperador do Brasil, sem pai, mãe e madrasta. Naquele dia, D. Pedro 1º abdicou em nome de seu pequeno filho. O menino, muito afeiçoado ao pai, já não o encontrou ao acordar. Foi vestido e levado, em prantos, de São Cristóvão ao Paço Imperial, para ser aclamado imperador. Talvez tenha lembrado dessa cena quando, a 17 de novembro de 1889, pisou pela última vez terra brasileira, expulso pelo país que o educara. Dois abandonos, duas orfandades: neste interregno cresceu o homem e cresceu a nação, numa simbiose que parecia impossível de ser desfeita.Lilia Schwarcz recupera em seu livro a trajetória de D. Pedro e das várias imagens que se veicularam de sua "persona": de órfão da nação a imperador tropical e mecenas do movimento romântico; de senhor da guerra a rei-cidadão; de soberano viajante, amigo e divulgador das ciências e das belas-letras, a mártir da pátria, morto no exílio. Aparentemente D. Pedro ia se deixando moldar, apático e dissimulado, mesmo quando a questão foi a do casamento. No entanto, mais de um contemporâneo registra sua decepção diante da imperatriz que viera de encomenda da Europa e que em nada se assemelhava aos retratos que a antecederam. D. Teresa Cristina era feia, baixa, gorda e mancava de uma perna. Sob o impacto do primeiro encontro, o jovem monarca desolado chorou nos braços de sua aia, a condessa de Belmonte, mas acabou por se submeter ao que ela lhe recomendou: "Cumpra seu dever, meu filho".O imperador tropical Após o casamento, o príncipe começa a intervir na vida cultural do país. Filho do ambiente beletrista e bacharelesco do tempo, produto de uma esmerada educação que privilegiava os aspectos mais ornamentais do conhecimento, como era típico no Brasil do século 19, D. Pedro logo encontraria sua turma no Instituto Histórico e Geográfico e na Academia de Belas-Artes.Durante as décadas de 40 e 50, no período que antecedeu a Guerra do Paraguai, foi o centro de uma incipiente vida cultural e científica. Além de dedicar-se aos estudos de astronomia, engenharia, medicina, hebraico e à tradução de textos clássicos, comandava um salão literário no Palácio de São Cristóvão, dirigia as sessões do Instituto Histórico, ia à ópera, acompanhava exames do Colégio Pedro 2º e inaugurava as exposições anuais da Academia de Belas-Artes.São dessa fase as representações pictóricas do imperador tropical, sempre cercado de palmeiras, abacaxis, cajus e outros que tais. Por meio da mistura de elementos nativos e estrangeiros, caracterizavam-se simultaneamente o monarca e a nação: um Habsburgo, alto, louro, de olhos azuis, envolto num manto de penas de galo da serra, em meio à natureza exuberante. Este imperador e este império americano pediam um símbolo. A imagem escolhida, o índio, deixava na sombra tanto o negro, por demais associado à vergonhosa escravidão, quanto o branco, seu feitor. Encarnação americana do "bom selvagem", o índio era o representante mais digno e legítimo para o jovem país. Do contato entre essas duas imagens, diz Lilia, saíram alterados tanto o imperador quanto o índio: os indígenas nunca foram tão brancos, o monarca jamais foi tão tropical.Nessa fase do mecenato imperial, o indígena se torna tema privilegiado na literatura e nas artes. Entre os "patriotas caboclos", como os apelidaria Varnhagen, avesso à elevação do índio àquelas alturas, logo se daria um racha. Tudo começou com a polêmica iniciada em 1856 em torno do poema de Gonçalves Magalhães: "A Confederação dos Tamoios". Magalhães fazia parte daquela plêiade de artistas e intelectuais que, liderados pelo jovem imperador, pretendiam estabelecer as matrizes de nossa identidade cultural. Seu poema deveria ser um dos pilares daquele projeto. Mas o jovem e ambicioso filho do padre Alencar, o então quase desconhecido José de Alencar, publicou violenta crítica ao poema de Magalhães. Alencar pagaria caro por sua oposição à liderança intelectual do príncipe. Excluído do ministério, só lhe restaria vociferar pela imprensa contra as veleidades literárias do monarca.A segunda encarnação de D. Pedro seria a de "senhor da guerra". Ou por total aversão aos caudilhos latino-americanos, ou para se vingar de ter sido chamado nos jornais paraguaios de "El gran macacon, rey de los macaquitos", o fato é que D.Pedro prolongou a Guerra do Paraguai além do que até mesmo Caxias considerara necessário. Apenas para garantir que não sobrasse nem sombra de Solano López.Ao senhor da guerra sucederá o monarca cidadão, e o império tropical, apesar da escravidão, dar-se-á ares de democracia coroada. De cartola e casaca o rei viaja pelo mundo, renuncia ao título de soberano porque a soberania era do povo, abole o beija-mão e rejeita títulos e estátuas. O país acompanha o rei e procura mostrar sua melhor imagem nas grandes exposições universais. Desde a primeira, em 1862, o esforço das elites e do imperador será no sentido de veicular uma imagem diversa deste país distante, agrícola, monárquico e escravocrata, mas que queria se ver representado como uma nação moderna e cosmopolita. Seu rei é um pioneiro, aberto às novas tecnologias, um dos primeiros a incorporar e popularizar a fotografia e o telefone.Ao final de seu reinado, D. Pedro 2º parecia farto do cargo e da farsa. Farto de carregar o personagem, como confidenciaria à condessa de Barral. O imperador, que aos 12 anos parecia um homem de 40, era, aos 64, quando foi deposto, um velho cansado e doente. Sua incredulidade diante dos acontecimentos que resultaram na República parecia fruto de seu gradativo alheamento dos negócios públicos. Lilia acentua a representação do exílio e da morte do imperador como fecho ideal, quase necessário para a consolidação definitiva do mito. Da mesma maneira que o suicídio o foi para Vargas.A rica e detalhada iconografia funciona aqui como fonte e objeto, na medida em que a autora constrói seu argumento aliando a análise das imagens à dos fatos e da versão dos fatos. Lilia estabelece um proveitoso diálogo com as imagens, e estas, com o que têm de problemático, intencional, duvidoso, acabam sendo tão reveladoras no que pretendem esconder quanto no que querem mostrar.Isabel Lustosa é pesquisadora da Casa de Ruy Barbosa (RJ).

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