sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012
CATATAU- Leminski
(...) Horas minhas no ouro de relógios perfeitos. Debrucei-me sobre livros a ver passar rios de palavras. Todos os ramos do saber humano me enforcaram, sebastião flechado pelas dúvidas dos autores. Naveguei com sucesso entre a higiene e o batismo, entre o catecismo e o ceticismo, a idolatria e a iconoclastia, o ecletismo e o fanatismo, o pelagianismo e o quietismo, entre o heroísmo e o egoísmo, entre a apatia e o nervosismo, e saí incólume para o sol nascente da doutrina boa, entre a aba e o abismo. Mal emerso dos brincos em que consome puerícia seus dias, dei-me ao florete, os exercícios da espada absorviam-me inteiro. Mestres suguei escolados na arte. Meu pensamento laborava lâminas dia e noite, posturas e maneios, desgarrado numa selva de estoques, florete colhendo as flores do ar. Habitei os diversos aposentos das moradas do palácio da espada. O primeiro florete que te cai na mão exibe o peso de todas as confusões, o ônus de um ovo, estertores de bicho e uma lógica que cinco dedos adivinham. Nos florilégios de posturas das primeiras práticas, Vossa Mercê é bom. A espada se dá, sua mão floresce naturalmente em florete, a primavera à flor da pele. Todavia de repente o florete vira e te morde na mão. Não há mais acerto; Vossmercê não se acha mais naquele labirinto de posições, talhos, estocadas, altabaixos, pontos e formas. Passa-se a onde o menos que acontece é o dar-se meiavolta e lançar de si o florete: abre-se um precipício entre a mão e a espada. Agora convém firmeza. Muitos desandam, poucos perseveram. Vencido este lanço, a prática verdadeira começa. E a segunda morada do palácio: muitos trabalhos, pouca consolação. Aí o florete já é instrumento. Longo dura. Um dia, longe da espada, a mão se contorce no seu entender e pega a primeira ponta do fio, a Lógica. Vosmecê já é de casa, acesso à quarta morada. A conversação com o estilete é sem reservas. O próprio desta morada é o minguado pensar: uma geometria, o mínimo de discurso. Tem a mão a espada como a um ovo, os dedos tão frouxos que o não quebrem e tão firmes que não caia. De que o mesmo destino contempla vosmecê e a espada — você se inteira: inteiro está agora. Aqui se multiplicam corredores, quod vitae sectabor iter? No concernente à minha pessoa, escolhi errado: dei em pensar que eu era espada e desvairar em não precisar dela. As luzes do entendimento bruxuleavam. Não estava longe a medicina dos meus males. Compus o papel de esgrima em que meti a palavreado o resultante de minha indústria passada. O texto escrito, não mais me entendi naquela artimanha. Em idade de milícia pus então minha espada a serviço de príncipes, — estes gêmeos e os Heeren XIX da Companhia das Índias. Larguei de floretes para pegar na pena, e porfiam discretos se a flor ou a pluma nos autorizam mais às eternidades da memória. Hoje, já não florescem em minha mão. Meti números no corpo e era esgrima, números nas coisas e era ciência, números no verbo e era poesia. Ancorei a cabeça cheia de fumaça no mar deste mundo de fumos onde morrerei de tanto olhar. Julgar dói? Arapongas batam ferros no calor, no presente, já não há mais guerra, que assim mal chamo a esses préstimos de mercenários cuja bravura se compra a dez tostões e dez tostões vale. Nem a essa cópia cada vez maior de gente que vencendo combates mais pelo número que pelo denodo ou altos cometimentos — chamarei guerreiro. Esse concurso todo de bombardas por ventura não borrou as linhas dos brasões, insígnias e divisas, num báratro de estrépitos onde se embaralham pessoas, qualidades e estados? Folgo em lembrar um caso digno de porvir que convém a pena e a tinta arrebatem-no dos azares da memória para a carta, sítio mais seguro. Bom combate combati na Hungria, indo aos tumultos da sucessão do Palatinado. Um corpo de fidalgos, todos do maior mérito e nascimento, topou conosco no abrir da planície magiar. De nossa parte, CCCXIII, tudo de pró. Mediríamos armas, estipulando o uso tão só de brancas. Primores de proezas se fizeram aí. Muito tenho escrito desde então, e se por muita pena se virasse pássaro já há muito teria voado embora minha mão direita. As letras do escrito murchando as flores vivas do pensar, o alfabeto lapida os estertores das arestas dos sentidos: a arte gráfica cristaliza o manuscrito em arquitetura de signos, pensamento em superfície mensurável, raciocínio ponderável, assim morrendo em degraus, dos esplendores agônicos do pensar vivo até as obras completas.(...) Paulo Leminski In: CATATAU
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