quinta-feira, 22 de março de 2012
Os acrobatas liam Júlio Cortázar antes de subir ao trapézio Aguinaldo Silva
Eu nunca lera nada sobre este cara chamado Júlio Cortázar. Mas pederastas já vira muitos, desde os tempos do colégio, quando nós os humilhávamos no banheiro, depois das aulas de educação física. Isso sem falar nas vezes em que cruzava com um deles nos cinemas, nos corredores mais escuros, nos mictórios públicos e nas madrugadas sombrias, locais e ocasiões em que essa raça parecia se sentir mais à vontade. Aqueles quatro, no entanto, me pareceram estranhos desde o primeiro instante. Primeiro porque andavam em fila, ordenados, um atrás do outro e todos silenciosos, sérios. Depois porque havia uma coisa difícil de explicar em seus corpos. Embora andassem calmamente, e evitassem gestos inúteis, a verdade é que eles, misturados às dezenas de pessoas que, naquela madrugada, se encontravam na estação rodoviária, mesmo que estivessem parados, ou até se fossem estátuas, me pareceriam, logo os visse, prestes a alçar vôo. Era como se a terra fosse para eles um rápido descanso, um momento antes de uma revoada para o céu, ou ao menos para os travões de ferro que cruzavam o teto inacabado da estação. Foi assim que os vi a primeira vez, quando passaram mergulhados no próprio silêncio, em fila, carregando a bagagem que não me pareceu muita - duas ou três valises. E mais ainda quando, depois, cruzei com eles à porta do ônibus que nos levaria a São Paulo — calçavam sapatos de borracha, eu observei, e aquele silêncio que faziam seus oito pés ao caminhar parecia um só, e planejado, metrificado e posto a funcionar num esquema: sendo. quatro, eram ao mesmo tempo um só, tão semelhantes me pareciam, e como se ligados pelo ritmo que os conduzia. Agora me pergunta como é que eu soube que se tratava de pederastas. Ora, acontece que os conhecia sempre, os pederastas, mesmo que estivessem imóveis e de olhos fechados, até mesmo quando estavam de costas eu tinha facilidade em reconhecê-los, coitados, nem sempre presos aos maneirismos e gestos que faziam conhecida a raça, mas iguais naquele olhar oblíquo, na maneira como punham um pé diante do outro, o da frente ligeiramente desviado para a direita ou para a esquerda, apontando nesta ou naquela direção. Muitas vezes, em determinados locais, eu vira quando um deles entrara, discreto, silencioso e solitário, cumprira esta ou aquela missão e se retirara, e eu dizia para mim mesmo, é um deles, e olhava em volta surpreso, já que ninguém, além de mim, o notara. Às vezes, se estava acompanhado, não resistia e murmurava para o meu companheiro, viu só aquele pederasta? E o outro surpreso perguntava, mas quem? Ou comentava, depois que eu o apontasse: mas é mesmo? Como é que você sabe?
E era de madrugada, claro: uma hora da manhã na estação rodoviária. Só a essa hora eles ousariam viajar, tomar um ônibus para São Paulo, mesmo sendo quatro. Chegariam lá às sete horas, e ainda gozariam um pouco com o frio da manhã: beberiam café num dos bares próximos da estação, e depois desapareceriam pelas ruas próximas, ao que parece consumidos pelos primeiros raios do sol. À noite seria fatal encontrá-los outra vez em algum lugar escuso.
Abriram a porta do ônibus, e o motorista foi recebendo os bilhetes, um a um. As pessoas se atacavam aflitos beijos de despedida — era como se São Paulo fosse o fim do mundo. E os quatro entraram um a um, à minha frente. No interior do ônibus meio escuro, tateei em busca do número que me fora reservado, e embora não tivesse ainda pensado nisso em nenhum momento, nem fiquei surpreso quando, ao sentar-me, encontrei um deles ao meu lado. Olhei de esguelha, pensei aborrecido que no meio da estrada ele iria me apalpar, procurei manifestar o meu aborrecimento de alguma forma: acendi a luz individual, procurei o cinzeiro, encontrei nele uma ponta de cigarro, murmurei um palavrão sem abrir os dentes, mas o rapazinho não deu atenção. Ao contrário, abriu calmamente sua valise, retirou de dentro dela um livro, acendeu sua luz individual e começou a ler. Esperei mais aborrecido ainda que seu cotovelo roçasse no meu — o livro poderia ser um simples pretexto —, mas os outros passageiros entraram, o motorista também, a porta foi fechada, acesas as luzes, e o ônibus deu partida. Os outros dois estavam sentados à frente, juntos no mesmo banco, e o quarto, à minha esquerda e um pouco atrás, acomodara-se próximo a um velho. O ônibus seguia e eu comecei a pensar em descontrair os músculos, tentar dormir.
Foi quando, de esguelha, olhei o livro que ele lia. Aberto na página trinta e dois, trazia o nome no alto da página: Júlio Cortázar era o autor. E na seguinte, também no alto, o título, Rayuela. Eu não sabia o que significava essa palavra, mas ela, mal a li, brilhou no escuro, como se fosse mágica. Tanto isso aconteceu, que cresceu imediatamente nos meus lábios a pergunta, avolumou-se e, amarga, cheia de bílis e esverdeada, ela transpôs a barreira de meus dentes, rompeu a fraca contração dos meus lábios e espalhou-se na área próxima ao meu rosto, a pergunta como se fosse uma brisa, sibilina e meia morna:
— Você lê esse cara?
Sim, porque paralelamente me lembrara: em algum lugar, num jornal ou revista, lera qualquer coisa sobre esse sujeito, Cortázar, que escrevia e era misterioso, uma dessas situações pouco másculas que os escritores e artistas costumam alimentar. E, ao mesmo tempo, sabia agora, aquela palavra, quando lera o artigo, ficara gravada dentro de mim, Rayuela, e só à espera de um momento como este (e porque ele ainda não havia chegado é que eu disse, antes, que nunca lera nada sobre este Júlio Cortázar).
O rapaz, que no rápido instante seguinte me pareceu já esperar pela pergunta, respondeu sem me olhar - nós lemos sempre Cortázar, desde que o descobrimos em Paris. E me olhando, então, pela primeira vez de frente, seus olhos que não ousei enfrentar (me pareceu, de repente, que eu resvalava numa direção contrária à normal), explicou:
— O Waldo descobriu que nós somos seus personagens principais quando subimos ao arame. Somos equilibristas.
E me apareceram então, como se impressas no ar ou gravadas em acinzentada fumaça, as palavras da manchete de um dos jornais do Rio: Secretário de Segurança proibiu a exibição dos Irmãos Fantini. Outra vez perguntei:
— Irmãos Fantini?
Sim, respondeu o outro, embora não sejamos irmãos, nem nos chamemos Fantini, a não ser o Waldo, que tem esse nome. Mas quando estamos no alto, sobre o fio, combinamos como se fôssemos irmãos.
O fio: era lá que eles fariam a exibição. O fio de aço estendido entre dois prédios, cruzando a avenida central da cidade, à altura do décimo segundo andar. Os Irmãos Fantini, segundo o jornal, pernambucanos famosos em toda a Europa, atravessariam um a um, caminhando sobre o fio. E receberiam, em troca de tão terrível proeza, as doações que o generoso povo carioca lhes quisesse oferecer. Com o dinheiro conseguido, eles pretendiam retornar à Europa, mas, proibidos pelo Secretário de Segurança — que vira no espetáculo uma ameaça em potencial aos nervos da população —, haviam anunciado uma possível exibição em São Paulo, para onde se dirigiriam. E lá estavam, os quatro.
— Deve ser um troço difícil, esse de ser equilibrista, não é?
Novamente minha voz me desobedecia. E o rapaz, agora sem se voltar, entreabrindo o livro e folheando suas páginas — e, ao que me pareceu, retirando delas as frases que me ditava —, comentou sem sair de sua calma: depende. É uma questão de especialização. A mesma coisa que ser datilógrafo, ou motorista de caminhão. Difícil mesmo é encontrar o parceiro. Nós nos conhecemos numa feira. Andávamos os quatro, com dificuldade, na corda bamba, e nas feiras íamos conseguindo donativos suficientes para uma vida de miséria. Até que nos encontramos. O Waldo é que adivinhou as excelentes possibilidades que teríamos se nos juntássemos. Nós nos recolhemos a um sítio, lá no Recife, e foi nessa mesma cidade que cumprimos, depois de uns meses de treinos, nossa primeira exibição.
O ônibus seguia rápido, inevitável. A voz do rapaz, que eu sabia ser pederasta — embora ele não traísse nenhum dos maneirismos habituais à raça — me envolvia. As palavras, no entanto, eram pronunciadas num sussurro, e mesmo sem verificá-lo, eu estava certo de que nossos vizinhos mais próximos não nos escutavam. Um deles, o da frente, até ressonava forte, quase roncava:
— Foi um sucesso, essa nossa primeira exibição. O Waldo decidira que nós. viveríamos apenas do que o povo nos oferecesse. E foram muitos os donativos. Quando estávamos no ar, em plena travessia, pude escutar o silêncio gelado que se fazia lá embaixo. E quando o último de nós deu o passo final e se precipitou em direção à janela de onde o fio saía, ouvimos os quatro alguns soluços antes que viessem as palmas, os gritos entusiasmados. O povo se entusiasma facilmente, e mais facilmente ainda se emociona. E Waldo pedira que não ficássemos frios ante essa emoção. Ela valia por tudo o que nós pensássemos em ganhar.
Anotei mentalmente esse nome, Waldo, e a ele acrescentei o outro:
Waldo Fantini: um deles, o que usava óculos escuros, deveria ser o próprio. Perguntei, o Waldo usa óculos escuros? E o rapaz respondeu, sim, viu nosso retrato nos jornais? Sem poder explicar ao certo, resmunguei que sim, e ele continuou, já agora sem que eu fizesse qualquer pergunta:
— Tanto dinheiro recolhemos que resolvemos viajar para a Europa. Nossa primeira exibição, cruzado o oceano, foi em Lisboa, onde os portugueses nos pareceram bastante apáticos. Ainda aí, alguns — parece que os mais pobres — choraram quando cumprimos os últimos passos. Proibidos em Madrid, pudemos fazer uma exibição em Barcelona. Novas lágrimas. Paris nos deu apenas alegrias, embora nessa alegria notássemos um sinal de fraqueza. Não somos assim tão cultos, mas na França, a impressão que tivemos é de que tudo é utilizado para dar ao visitante uma falsa impressão de euforia. Lá, no entanto, tivemos a felicidade de descobrir — ou nele nos descobrir — Cortázar. Uma manhã Waldo entrou precipitadamente no quarto que ocupávamos num hotel modesto (apesar do dinheiro ganho, vivemos sempre modestamente, evitamos o luxo que, sem dúvida, poderá fazer mal aos nossos músculos e às nossas mentes), e exibiu o livro: Rayuela. E explicou que o senhor Júlio Cortázar, que era argentino, mesmo sem nos conhecer havia escrito nossa história.
— Desde então, passamos a ler o livro em rodízio, diariamente, ora um, ora outro. O Waldo, e apenas ele, fez várias anotações, que nós sempre estudávamos. A cada leitura descobrimos novas palavras, outras significações. E como se o livro crescesse sempre, fosse aumentando a cada dia o seu número de páginas. E nós estamos sempre em todas as linhas.
O Fantini me explicou depois, que nem tudo fora êxito na breve carreira do grupo. De volta ao Recife, onde cumpriram outra exibição — já agora com a fama da Europa —, haviam sido roubados em quase tudo. E no Rio, onde o dinheiro já se tornara escasso, tiveram proibida a apresentação. São Paulo, para onde o ônibus se dirigia cruzando aquela escura noite, era sua nova esperança.
— Se ganharmos o bastante, voltaremos para a Europa.
E sempre folheando o livro entreaberto sobre os joelhos, mais falou de suas exibições. Citou outras três vezes o Waldo, e eu perguntei, quase aborrecido:
— Mas o Waldo é quem manda no grupo? É o chefe?
Ele respondeu que sim. De suas mãos saía toda a garantia do sucesso. Era ele quem iniciava a travessia, e o fazia quando o fio sequer estava estendido, pois a tarefa de estendê-lo era ele quem cumpria com seus próprios passos, lançando-se pela janela a fora, no décimosegundo andar, em direção ao vazio, cumprindo uma terrível guerra contra as inflexíveis noções da gravidade e peso que os homens lá embaixo - os olhos pregados no alto - teimosamente sustentavam. E dessa batalha saía sempre vencedor, seu corpo avançando de dentro de si mesmo a cada passo, no centímetro seguinte já seu corpo novamente avançando, sempre trazendo presa entre os dentes a ponta do fio de aço que para trás ficara preso à primeira janela, o Waldo, o de óculos escuros, enquanto lá embaixo a multidão rezava para que ele rompesse realmente a barreira das leis — Waldo era um deles, afinal —, e na janela os outros irmãos, nem sequer tensos — tanto confiavam na vitória —, esperavam sua vez de atravessar a rua sobre o fio daquela invisível teia.
E eu senti então que, desde a primeira vez que os vira, a entrada da estação, ou mesmo antes, quando lera nos jornais a notícia com os seus nomes, ou antes ainda, quando ouvira falar em Cortázar, em Rayuela, compreendi então que não fizera outra coisa senão me desprender de mim mesmo, despencar, ou resvalar em direção contrária à minha. E naquele ônibus, então, o que ocorreria? Perguntei, mas o Waldo, esse Waldo; o rapaz me interrompeu com um meio sorriso:
— Já sei, quer conhecê-lo, não é?
Não respondi que sim, mas me levantei ao mesmo tempo que ele. Lá na frente, notei que o quarto elemento do grupo se postara junto aos outros dois — um destes era o Waldo —, e que os três me esperavam. Caminhamos eu e meu companheiro em direção a eles, e lá,
E Waldo dormia, a cabeça encostada de leve à janela, os olhos fechados, os óculos escuros guardados no bolso da camisa. Ele dormia mas acordou ao segundo chamado, ergueu de leve a cabeça e lentamente entreabriu os olhos; eu forcei os meus, mas — e foi então que o ônibus se precipitou de vez na escuridão da noite — de dentro dos olhos dele nada mais pude arrancar além da brancura que, impotente, me fitava. Waldo Fantini, o primeiro dos irmãos equilibristas, atingido na infância por um terrível mal, era definitivamente cego.
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