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terça-feira, 5 de março de 2013

O amor acaba Por Paulo Mendes Campos


O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

CINELÂNDIA RUBEM BRAGA

Extraviei-me pela cidade na tarde de sábado, eentão me deixei bobear um pouco pela Cinelândia.Foi certamente uma lembrança antiga que me fez sentar na Brasileira; e quando o garçom veio e perguntou o que eu desejava, foi um rapaz de 15anos que disse dentro de mim: “waffles com mel". E disse meio assustado; como quem se resolve a fazer uma loucura.Não sei por que, para aquele estudante de quinze anos, que dispunha apenas de 50 mil-réis mensais para suas despesas pequenas, “waffles com mel"ficou sendo o símbolo do desperdício; era uma pequena loucura a que se aventurava raramente,sabendo que iria desequilibrar seu orçamento. Talvez viesse do nome inglês o prestígio dos waffles. E me lembro de ter encontrado na Cinelândia uma jovem rica de minha terra;aventurei-me, num gesto insensato, a convidá-la aentrar numa confeitaria, e depois de lhe ofertar,como um nababo, “waffles com mel" , (lembro até hoje seus dentes brancos e finos), levei minha loucura ate as últimas consequências, depois de meia hora de conversa, para prendê-la na (a tia esperava numa porta de cinema), de fazer questão absoluta que provasse uma Banana Real! Era um insensato, o moço Braga. Mais tarde, já na Faculdade, e morando no Catete,me lembro que sábado, de tarde, às vezes a gente metia uma roupa branca bem limpa bem passada(depois de vários telefonemas à tinturaria) e vínhamos, ou três amigos, lavados, barbeados,penteados, assim pelas cinco da fazer o footing na Cinelândia. E estavam ali moças de Copacabana e Méier, com seus vestidos de seda estampados, a boca muito pintada, burinhando entre as confeitarias eos cinemas. Não nos davam lá muita atenção essas moças:seus pequenos corações fremiam perante os cadetes e os guardas-marinhas, mais guapos e belos em seus uniformes resplendentes, com seus espadins brilhantes. Tudo isso passou: o sábado inglês, as dificuldades do trânsito próprio tempo agiram, e nesta bela tarde de sábado em que me extravio pelo centro, há apenas alguns palermas como eu zanzando pela Cinelândia. Só agora reparo nisso, e então me sinto um velho senhor saudosista; não há mais sábado na Cinelândia, creio que não há mais cadetes nem guardas-marinhas, todos são tenentes-coronéis,capitães-de-corveta e de fragata perdidos emAgulhas Negras, quartéis, cruzadores recondicionados, nesses mares do mundo. E Rui Morais, João Madureira, Miguel Sales, todos sumiram pela vida adentro, cada um no seu canto,com sua família - tenho a impressão de ter sobrado,terrível retardatário, na tarde da Cinelândia,diante dos waffles melancólicos, e se tivesse um amigo ao lado diria a ele, com voz enjoada de um senhor idoso “nem se compara: a Americana antiga,era muito melhor...".