quinta-feira, 2 de abril de 2009

Conheça Roseana Murray





QUEM É ROSEANA MURRAY

Digo como Neruda, poeta que amo: para nascer nasci. Para fazer poesia, amar, cozinhar para os amigos, para ter as portas da casa e do coração sempre abertas. Nasci num dia quente de dezembro, em 1950, dois meses antes do previsto, numa clínica em Botafogo. Sou filha de imigrantes poloneses que vieram para o Brasil fugindo do antissemitismo. Gosto de mato e silêncio, não sou nada urbana. Durante muitos anos vivi em Visconde de Mauá, mas troquei Mauá por Saquarema em 2002, já que uma cirurgia na coluna tornou a montanha quase intransponível. Mas o meu filho André Murray continua lá tocando as suas árvores e panelas no Restaurante Babel : ele é Chef de Cozinha. Meu outro filho é músico, o Guga . Ele vive em Granada , na Espanha e tem um trio no Brasil, o Um Trio Vira-Lata. Eles são filhos do meu primeiro casamento. Desde 1997 estou casada com o Juan Arias, jornalista e escritor . Tenho muitos livros publicados e leitores de todas as idades, aliás não acredito em idade, mas sim em experiências vividas. Fico muito feliz quando penso que um poema que escrevi aqui na minha mesa, sozinha, chega a lugares tão distantes e emociona tanta gente.


Roseana Murray







Fardo de carinho, meu primeiro livro, faz 28 anos em nova edição com ilustrações de Elvira Vigna ed. Lê,B.H.

CAIXINHA MÁGICA

Fabrico uma caixa mágica
para guardar o que não cabe
em nenhum lugar:
a minha sombra
em dias de muito sol,
o amarelo que sobra
do girassol,
um suspiro de beija-flor,
invisíveis lágrimas de amor.

Fabrico a caixa com vento,
palavras e desequilíbrio,
e para fechá-la
com tudo o que leva dentro,
basta uma gota de tempo.

O que é que você quer
esconder na minha caixa?




TRANSFORMAÇÃO

Fabrico uma árvore
com uma simples semente,
terra escura e quieta,
umas gotas de água.

Pouco a pouco,
de lua em lua,
de folha em folha,
enquanto o tempo
desenha arabescos
em meu rosto,
minha árvore se transforma
em poema vivo,
suas letras são flores,
são frutos, são música

Fábrica de poesia, Ed. Scipione, 2008


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MEL

Na curva da primavera,
no alto da montanha,
abelhas fabricam mel.
zumbem, dançam, rodopiam,
cantam para as flores
o azul do dia.

COMIDA DE SEREIA

O que será que a sereia come
em seu castelo de areia?
Enquanto penteia os cabelos
a panela esquenta na cozinha:
será que a sereia come anêmonas,
ostras, cavalos-marinhos?
Ou delicados peixinhos de olhos
dourados?
Algas marinhas, lulas, sardinhas?
Polvos, mariscos, enguias,
ou será que a sereia come poesia?





ELFOS

Elfos comem o perfume
das flores trazido pelo
vento,
comem os mais belos
pensamentos,
e as cores do dia
que o galo faz.
Comem o canto do galo,
as melodias dos pássaros
azuis,
comem a luz que cintila
na folha cheia de orvalho.
Elfos comem a sombra da lua,
o brilho da estrela
que já não existe mais.

Poemas e Comidinhas, Ed. Paulus, 2008
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JOGO DA VERDADE
A verdade é um labirinto.

Se digo a verdade inteira,
se digo tudo o que penso,
se digo com todas as letras,
com todos os pingos nos is,
seria um deus-nos-acuda,
entraria um sudoeste
pela janela da sala.
Então eu digo
a verdade possível,
e o resto guardo
a sete chaves
no meu cofre de silêncios.

PIÃO

Um pião se equilibra
na palma da mão,
no chão, na calçada,
e alado vai rodando
por cima dos telhados,
gira entre as nuvens,
cada vez mais alto,
até que num salto
alcança a lua
e rola
até o seu lado oculto.
Faz a curva o pião
e ruma para Saturno,
tropeça nos anéis,
dá três cambalhotas,
se pendura
numa estrela cadente
e, sem graça,
volta para a palma da mão.
FADAS E BRUXAS

Metade de mim é fada,
a outra metade é bruxa.
Uma escreve com sol,
a outra escreve com a lua.
Uma anda pelas ruas
cantarolando baixinho,
a outra caminha de noite
dando de comer à sua sombra.
Uma é séria, a outra sorrí;
uma voa, a outra é pesada.
Uma sonha dormindo,
a outra sonha acordada.

in Pêra, Uva ou Maçã, ed. Scipione, 2005

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QUINZE

Ecoa nos ares o minarete,
e dele escapa
um grito pungente,
feito pássaro que houvesse
fugido
de uma gaiola dourada.
É a hora sagrada:
todo homem tem um encontro
marcado com Deus
e mistura as orações com saliva,
como a mãe que oferece
ao filho
pedaços da sua própria comida.

CINCO

Percorrer o silêncio do deserto,
sua espinha dorsal
feita de murmúrios, vertigens,
caravanas, o ruminar dos camelos.

Numa noite escura
uma fonte escondida
fabrica sonhos e água.

VINTE E DOIS

Rente ao muro
o homem caminha.
Seu corpo encharcado
de orações
carrega um bastão sagrado.
Com seus passos costura
o oriente ao ocidente.

in Desertos, ed. Objetiva, 2006
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ATLÂNDIDA

O caminho para a Atlântida
é de terra ou de luar?
é de linho, lã ou vento
o chão que devo pisar?

Parto agora para a Atlântida,
por estradas que invento,
passo perto de Pasárgada,
cruzo fronteiras no céu
e descubro que a Atlântida
fica na esquina de mim.

JANELAS

Em todas as janelas me debruço,
em todos os abismos
estendo uma corda
e caminho sobre o nada.
Também ando sobre as águas,
subo em nuvens,
galgo intermináveis escadas.
Abro todas as portas
e cavernas com um sopro
ou três palavras mágicas.
Mergulho em torvelinhos,
danço no meio do vento,
pulo dentro da tempestade.
Em cada encruzilhada me sento
e tento arrumar o destino,
estranho castelo de areia.
AVESSO

Atravessaria um rio grosso
no meio da noite
para decifrar tuas pegadas,
o rastro luminoso dos teus olhos.

Atravessaria a superfície
silenciosa dos espelhos
para ver o teu avesso.

Caminharia sobre água
e fogo
para soletrar teu corpo.

in Recados do Corpo e da Alma, ed. FTD, 2003

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MULHERES ACROBATAS

Onde se esconde a nascente
dos sonhos?
Em que alta montanha
ou profundeza de abismo?
Em que curva de rio
ou espuma de onda?
Em que gaze esgarçada
ou doçura de vento?

Nas estradas batidas
por unicórnios e silêncios
os saltimbancos vão passando
rumo ao coração de cada um
com seus trapézios e luz
e mulheres acrobatas.

NOVELO

Com fina linha prateada
o sonhador borda a sua vida:
na fronteira entre o dia e a noite,
entre uma estrela e outra,
uma palavra e sua sombra,
ergue um castelo de vento,
desfralda as bandeiras da paz.

PAUL KLEE

Os olhos como barcos,
entro escondida
num quadro do Klee.
O céu é a rua,
e o equilibrista,
quase sem respirar,
me ensina os segredos da vida.
Sobretudo, ele me diz,
é preciso saber conservar
as pernas no ar
e manter o olhar perdido;
Carregar pedaços de lua
no pensamento e sonhar.

A vida é pura navegação
e saio do quadro
como um pássaro invisível.

in Residência no Ar, ed. Paulus, 2007

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VENTO

assim me chama o vento
me despenteia os cabelos
nas teias do precipício
a vida começa hoje
começa sempre
desde o nada até a medula
todos os dias
colar os ossos
e ouvir o ruído
subterrâneo de um rio
a vida começa hoje
sempre por um fio
a alma é um pêndulo
leva as horas
de encontro
às pedras.

PARTIDA

Hoje arrumo as flores
em cima da mesa
as frutas na memória
quero um dia bem simples
alguma luz pousada
na superfície da água

hoje chamo para mim
amorosas palavras
que vivam um dia
perto do meu coração
que corram pela casa
com sua mistura de mel e espanto

alguém parte com um ruído seco
alguém sempre está partindo

SINOS

quando estava só
nos meus vastos campos
de machucadas orquídeas
e silêncio
e à noite bebia em taças opacas
estrelas líquidas e passado
e o vento do deserto
me alcançava trazendo
o rumor dos mortos
você chegou
com vassoura de luz
varreu a casa e limpou os sinos

in Poesia Essencial, ed. Manati, 2002


Textos extraídos do site da autora http://www.roseanamurray.com
Vinhetas: Roger Mello, Jardins, Ed. MANATI

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