quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012
O Santo que não acreditava em Deus João Ubaldo
Temos várias espécies de peixe neste mundo, havendo o peixe que come lama, o peixe que come baratas do molhado, o peixe que vive tomando sopa fazendo chupações na água, o peixe que, quando vê a fêmea grávida pondo ovos, não pode se conter e com agitações do rabo lava a água de esporras a torto e a direito ficando a água leitosa, temos o peixe que persegue os metais brilhantes, umas cavalas que pulam para fora bem como tainhas, umas corvinas quase que atômicas, temos por exemplo o niquim, conhecido por todas as orlas do Recôncavo, o qual peixe não somente fuma cigarros e cigarrilhas, preferindo a tálvis e o continental sem filtro, hoje em falta, mas também ferreia pior do que uma arraia a pessoa que futuca suas partes, rendendo febre e calafrios, porventura caganeiras, mormente frios e tantas coisas, temos os peixes tiburones e cações, que nunca podem parar de nadar para não morrer afogados.
É engraçado que eu entenda tanto de peixe e quase não pegue, mas entendo. Os peixes miúdos de moqueca são: o carapicu, o garapau, o chicharro e a sardinha. Entremeados, podemos ferrar o baiacu e o barrigame-dói, o qual o primeiro é venenoso e o segundo causa bostas soltas e cólicas. De uma ponte igual a essa, que já foi bastante melhor, podemos esperar também peixes de mais de palmo, porém menos de dois, que por aqui passam, dependendo do que diz o rei dos peixes, dependendo de uma coisa e outra. Um budião, um cabeçudo, um frade, um barbeiro. Pode ser um robalo ou uma agulha ou ainda uma moréia, isto dificilmente. O bom da pesca do peixe miúdo é quando estão mordendo verdadeiramente e sentamos na rampa ou então vamos esfriando as virilhas nestas águas de agosto e ficamos satisfeitos com aquela expedição de pescaria e nada mais desejamos da vida.
Ou quando estamos como assim nesta canoa, porém nada mordendo, somente carrapatos. Nesses peixes miúdos de moqueca, esquecia eu de mencionar o carrapato, que não aparece muito a não ser em certas épocas, devendo ter recebido o nome de carrapato justamente por ser uma completa infernação, como os carrapatos do ar. Notadamente porque esse peixe carrapato tem a boca mais do que descomunal para o tamanho, de modo que botamos um anzol para peixes mais fundos, digamos um vermelho, um olho-de-boi, um peixe-tapa, uma coisa decente, quando que me vem lá de baixo, parecendo uma borboletinha pendurada na ponta da linha, um carrapato. Revolta a pessoa.
E estou eu colocando uma linha de náilon que me veio de Salvador por intermédio de Luiz Cuiúba, que me traz essa linha verde e grossa, com dois chumbos de cunha e anzóis presos por uma espécie de rosca de arame, linha esta que não me dá confiança, agora se vendo que é especializada em carrapatos. Mas temos uma vazante despreocupada, vem aí setembro com suas arraias no céu e, com esses dois punhados de camarão miúdo que Sete Ratos me deu, eu amarro a canoa nos restos da torre de petróleo e solto a linha pelos bordos, que não vou me dar ao desfrute de rodar essa linha esquisita por cima da cabeça como é o certo, pode ser que alguém me veja. Daqui diviso os fundos da Matriz e uns meninos como formiguinhas escorregando nas areias descarregadas pelos saveiros, mas o barulho deles chega a mim depois da vista e assim os gritos deles parecem uns rabos compridos. Temos uma carteira quase cheia de cigarros; uma moringa, fresca, fresca; meia quartinha de batida de limão; estamos sem cueca, a água, se não fosse a correnteza da vazante, era mesmo um espelho; não falta nada e então botamos o chapéu um pouco em cima do nariz, ajeitamos o corpo na popa, enrolamos a linha no tornozelo e quedamos, pensando na vida.
Nisso começa o carrapato, que no princípio tive na conta de baiacus ladrões. Quem está com dois anzóis dos grandes, pegou isca de graça e a mulher já mariscou a comida do meio-dia pode ser imaginado que não vai dar importância a beliscão leve na linha. Nem leve nem pesado. Se quiser ferrar, ferre, se não quiser não ferre. Isso toda vez eu penso, como todo mundo que tem juízo, mas não tem esse santo que consiga ficar com aqueles puxavantes no apeador sem se mexer e tomar uma providência. Estamos sabendo: é um desgraçado de um baiacu. Se for, havendo ele dado todo esse trabalho, procuremos arrancar o anzol que o miserável engole e estropia e trataremos de coçar a barriga dele e, quando inchar, dar-lhe um pipoco, pisando com o calcanhar. Mas como de fato não é um baiacu, mas um carrapato subdesenvolvido, um carrapatinho de merda, com mais boca do que qualquer outra coisa, boca essa assoberbando um belo anzol preparado pelo menos para um dentão, não se pode fazer nada. Um carrapato desses a pessoa come com uma exclusiva dentada com muito espaço de sobra, se valesse a pena gastar fogo com um infeliz desses. Vai daí, carrapato na poça d'água do fundo da canoa e, dessa hora em diante, um carrapato por segundo mordendo o anzol, uma azucrinarão completa. Foi ficando aquela pilha de carrapatinhos no fundo da canoa e eu pensei que então não era eu quem ia aparecer com eles em casa, porque com certeza iam perguntar se eu tinha catado as costas de um jegue velho e nem gato ia querer comer aquilo. Pode ser que essa linha de Cuiúba tenha especialidade mesmo em carrapato, pode ser qualquer coisa, mas chega a falta de vergonha ficar aqui fisgando esses carrapatos, de maneira que só podemos abrir essa quartinha, retirar o anzol da água, verificar se vale a pena remar até o pesqueiro de Paparrão nesta soalheira, pensar que pressa é essa que o mundo não vai acabar, e ficar mamando na quartinha, viva a fruta limão, que é curativa.
Nisto que o silêncio aumenta e, pelo lado, eu sinto que tem alguma coisa em pé pelas biribas da torre velha e eu não tinha visto nada antes, não podendo também ser da aguardente, pois que muito mal tomei dois goles. Ele estava segurando uma biriba coberta de ostras com a mão direita, em pé numa escora, com as calças arregaçadas, um chapéu velho e um suspensório por cima da camisa.
— Ai égua! — disse eu. — Veio nadando e está enxuto?
— Eu não vim nadando — disse ele. — Muito peixe?
— Carrapato miúdo.
— Olhe ali — disse ele, mostrando um rebrilho na água mais para o lado da Ilha do Medo. — Peixe.
Ora, uma manta de azeiteiras vem vindo bendodela, costeando o perau. É conhecida porque quebra a água numa porção de pedacinhos pela flor e aquilo vai igual a muitas lâminas, bordejando e brilhando. Mas dessas azeiteiras, como as peixas chamadas solteiras, não se pode esperar que mordam anzol, nem mesmo morram de bomba.
— Azeiteira — disse eu. — Só mesmo uma bela rede. E mais canoa e mais braço.
— Mas eles ficam pulando — disse ele, que tinha um sorriso entusiasmado, possivelmente porque era difícil não perceber que a água em cima como que era o aço de um espelho, só que aço mole como o do termômetro, e então cada peixe que subia era um orador. Aí eu disse, meu compadre, se vosmecê botar um anzol e uma dessas meninas gordurentas morder esse tal anzol, eu dou uma festa para você no hotel — ainda que mal pergunte, como é a sua graça?
Assim levamos um certo tempo, porque ele se encabulou, me afirmando que não apreciava mentir, razão por que preferia não se apresentar, mas eu disse que não botava na minha canoa aquele de quem não saiba o nome e então ficasse ele ali o resto da manhã, a tarde e a noite pendurado nas biribas, esperando Deus dar bom tempo. Mas que coisa interessante, disse ele dando um suspiro, isso que você falou.
— É o seguinte — disse ele, dando outro suspiro. — É porque eu sou Deus.
Ora, ora me veja-me. Mas foi o que ele disse e os carrapatinhos, que já gostam de fazer corrote-corrote com a garganta quando a gente tira a linha da água ficaram muitíssimo assanhados.
— É mais o seguinte — continuou ele, com a expressão de quem está um pouco enfadado. — Está vendo aqui? Não tem nada. Está vendo alguma coisa aqui? Nada! Muito bem, daqui eu vou tirar uma porção de linhas e jogar no meio dessas azeiteiras. E dito e feito, mais ligeiro que o trovão, botou os braços para cima e tome tudo quanto foi tipo de linha saindo pelos dedos dele, parecia um arco-íris. Ele aí ficou todo monarca, olhando para mim com a cara de quem eu não sou nem principiante em peixe e pesca. Mas o que aconteceu? Aconteceu que, na mesma hora, cada um dos anzóis que ele botou foi mordido por um carrapato e, quando ele puxou, foi aquela carrapatada no meio da canoa. Eu fiz: quá-quá-quá, não está vendo tu que temos somente carrapatos? Carrapato, carrapato, disse eu, está vendo a cara do besta? Ele, porém, se retou.
— Não se abra, não — disse ele — que eu mando o peixe lhe dar porrada.
— Porrada dada, porrada respostada — disse eu.
Para que eu disse isto, amigo, porque me saiu um mero que não tinha mais medida, saiu esse mero de junto assim da biriba, dando um pulo como somente cavacos dão e me passou uma rabanada na cara que minha cara ficou vermelha dois dias depois disto.
— Donde saiu essa, sai mais uma grosa! — disse ele dando risada, e o mero ficou a umas três braças da canoa, mostrando as gengivas com uma cara de puxa-saco.
— Não procure presepada, não — disse ele. — Senão eu mando dar um banho na sua cara.
— Mande seu banho — disse eu, que às vezes penso que não tenho inteligência.
Pois não é que ele mandou esse banho, tendo saído uma onda da parte da Ponta de Nossa Senhora, curvando como uma alface aborrecida a ponta da coroa, a qual onda deu tamanha porrada na canoa que fiquemos flutuando no ar vários momentos.
— Então? — disse ele. — Eu sou Deus e estou aqui para tomar um par de providências, sabe vosmecê onde fica a feira de Maragogipe?
— Qual é feira de Maragogipe nem feira de Gogiperama — disse eu, muito mais do que emputecido, e fui caindo de pau no elemento, nisso que ele se vira num verdadeiro azougue e me desce mais que quatrocentos sopapos bem medidos, equivalentemente a um catavento endoidado e, cada vez que eu levantava, nessa cada vez eu tomava uma porrada encaixada. Terminou nós caindo das nuvens, não sei qual com mais poeira em torno da garupa. Ele, no meio da queda, me deu uns dois tabefes e me disse: está convertido, convencido, inteirado, percebido, assimilado, esclarecido, explicado, destrinchado, compreendido, filho de uma puta? E eu disse sim senhor, Deus é mais. Pare de falar em mim, sacaneta, disse ele, senão lhe quebro todo de porrada. Reze aí um padre-nosso antes que eu me aborreça, disse ele. Cale essa matraca, disse ele.
Então eu fui me convencendo, mesmo porque ele não estava com essas paciências todas, embora se estivesse vendo que ele era boa pessoa. Esclareceu que, se quisesse, podia andar em cima do mar, mas era por demais escandaloso esse comportamento, podendo chamar a atenção. Que qualquer coisa que ele resolvesse fazer ele fazia e que eu não me fizesse de besta e que, se ele quisesse, transformava aqueles carrapatos todos em lindos robalos frescos. No que eu me queixei que dali para Maragogipe era um bom pedaço e que era mais fácil um boto aparecer para puxar a gente do que a gente conseguir chegar lá antes que a feira acabasse e aí ele mete dois dedos dentro da água e a canoa sai parecendo uma lancha da Marinha, ciscando por cima dos rasos e empinando a proa como se fosse coisa, homem ora. Achei falta de educação não oferecer um pouco do da quartinha, mas ele disse que não estava com vontade de beber.
Nisso vamos chegando muito rapidamente a Maragogipe e Deus puxa a poita desparramando muitos carrapatos pelos lados e fazendo a alegria dos siris que por ali pastejam e sai como que nem um peixe-voador. No meio do caminho, ele passa bastante desencalmado e salva duas almas com um toque só, uma coisa de relepada como somente quem tem muita prática consegue fazer, vem com a experiência. Porque ele nem estava olhando para essas duas almas, mas na passagem deu um toque na orelha de cada uma e as duas saíram voando ali mesmo, igual aos martins depois do mergulho. Mas aí ele ficou sem saber para onde ia, na beira da feira, e então eu cheguei perto dele.
— Tem um rapaz aqui — disse Deus, coçando a gaforinha meio sem jeito — que eu preciso ver.
— Mas por que vosmecê não faz um milagre e não acha logo essa pessoa? — perguntei eu, usando o vosmecê, porque não ia chamar Deus de você, mas também não queria passar por besta se ele não fosse.
— Não suporto fazer milagre — disse ele. — Não sou mágico. E, em vez de me ajudar, por que é que fica aí falando besteira?
Nessa hora eu quase ia me aborrecendo, mas uma coisa fez que eu não mandasse ele para algum lugar, por falar dessa maneira sem educação. É que, sendo ele Deus, a pessoa tem de respeitar. Minto: três coisas, duas além dessa. A segunda é que pensei que ele, sendo carpina por profissão, não estava acostumado a finuras, o carpina no geral não alimenta muita conversa nem gosta de relambórios. A terceira coisa é que, justamente por essa profissão e acho que pela extração dele mesmo, ele era bastante desenvolvidozinho, aliás, bem dizendo, um pau de homem enormíssimo, e quem era que estava esquecendo aquela chuva de sopapos e de repente ele me amaldiçoa feito a figueira e eu saio por aí de perna peca no mínimo, então vamos tratar ele bem, quem se incomoda com essas bobagens? Indaguei com grande gentileza como é que eu ia ajudar que ele achasse essa bendita dessa criatura que ele estava procurando logo na feira de Maragogipe, no meio dos cajus e das rapaduras, que ele me desculpasse, mas que pelo menos me dissesse o nome do homem e a finalidade da procura. Ele me olhou assim na cara, fez até quase que um sorriso e me explicou que ia contar tudo a mim, porque sentia que eu era um homem direito, embora mais cachaceiro do que pescador. Em outro caso, ele podia pedir segredo, mas em meu caso ele sabia que não adiantava e não queria me obrigar a fazer promessa vã. Que então, se eu quisesse, que contasse a todo mundo, que ninguém ia acreditar de qualquer jeito, de forma que tanto faz como tanto fez. E que escutasse tudo direito e entendesse de uma vez logo tudo, para ele não ter de repetir e não se aborrecer. Mas Deus, ah, você não sabe de nada, meu amigo, a situação de Deus não está boa. Você imagine como já é difícil ser santo, imagine ser Deus. Depois que eu fiz tudo isto aqui, todo mundo quer que eu resolva os problemas todos, mas a questão é que eu já ensinei como é que resolve e quem tem de resolver é vocês, senão, se fosse para eu resolver, que graça tinha? É homens ou não são? Se fosse para ser anjo, eu tinha feito todo mundo logo anjo, em vez de procurar tanta chateação com vocês, que eu entrego tudo de mão beijada e vocês aprontam a pior melança. Mas, não: fiz homem, fiz mulher, fiz menino, entreguei o destino: está aqui, vão em frente, tudo com liberdade. Aí fica formada por vocês mesmos a pior das situações, com todo mundo passando fome sem necessidade e cada qual mais ordinário do que o outro, e aí o culpado sou eu? Inclusive, toda hora ainda tenho de suportar ouvir conselhos: se eu fosse Deus, eu fazia isto, se eu fosse Deus eu fazia aquilo. Deus não existe porque essa injustiça e essa outra e eu planejava isso tudo muito melhor e por aí vai. Agora, você veja que quem fala assim é um pessoal que não acerta nem a resolver um problema de uma tabela de campeonato, eu sei porque estou cansado de escutar rezas de futebol, costumo mandar desligar o canal, só em certos casos não. Todo dia eu digo: chega, não me meto mais. Mas fico com pena, vou passando a mão pela cabeça, pai é pai, essas coisas. Agora, milagre só em último caso. Tinha graça eu sair fazendo milagres, aliás tem muitos que me arrependo por causa da propaganda besta que fazem, porque senão eu armava logo um milagre grande e todo mundo virava anjo e ia para o céu, mas eu não vou dar essa moleza, está todo mundo querendo moleza. A dar essa moleza, eu vou e descrio logo tudo e pronto e ninguém fica criado, ninguém tem alma, pensamento nem vontade, fico só eu sozinho por aí no meio das estrelas me distraindo, aliás tenho sentido muita falta. É porque eu não posso me aporrinhar assim, tenho que ter paciência. Senão, disse ele, senão... e fez uma menção que ia dar um murro com uma mão na palma da outra e eu aqui só torcendo para que ele não desse, porque, se ele desse, o mínimo que ia suceder era a refinaria de Mataripe pipocar pelos ares, mas felizmente ele não deu, graças a Deus.
Então, explicou Deus, eu vivo procurando um santo aqui, um santo ali, parecendo até que sou eu quem estou precisando de ajuda, mas não sou eu, é vocês, mas tudo bem. Agora, é preciso que você me entenda: o santo é o que faz alguma coisa pelos outros, porque somente fazendo pelos outros é que se faz por si, ao contrário do que se pensa muito por aí. Graças a mim que de vez em quando aparece um santo, porque senão eu ia pensar que tinha errado nos cálculos todos. Fazer por si é o seguinte: é não me envergonhar de ter feito vocês igual a mim, é só o que eu peço, é pouco, é ou não é? Então quem colabora para arrumar essa situação eu tenho em grande apreço. Agora, sem milagre. Esse negócio de milagre é coisa para a providência, é negócio de emergência, uma correçãozinha que a gente dá. Esse pessoal não entende que, toda vez que eu faço um milagre, tem de reajustar tudo, é uma trabalheira que não acaba, a pessoa se afadiga. Buliu aqui, tem de bulir ali, é um inferno, com perdão da má palavra. O santo anda dificílimo. Quando eu acho um, boto as mãos para o céu.
Tendo eu perguntado como é que ele botava as mãos para o céu e tendo ele respondido que eu não entendia nada de Santíssima Trindade e calasse minha boca, esclareceu que estava procurando um certo Quinca, conhecido como Das Mulas, que por ali trabalhava. Mas como esse Quinca, perguntei, não pode ser o mesmo Quinca! Pois esse Quinca era chamado Das Mulas justamente por viver entre burros e mulas e antigamente podendo ter sido um rapaz rico, mas havendo dado tudo aos outros e passando o tempo causando perturbação, ensinando besteiras e fazendo questão de dar uma mão a todos que ele dizia que eram boas pessoas, sendo estas boas pessoas dele todas desqualificadas. Porém ninguém fazia nada com ele porque o povo gostava muito dele e, quando ele falava, todo mundo escutava. Além de tudo, gastava tudo com os outros e vivia dando risadas e tomava poucos banhos e era um homem desaforado e bebia bastante cana, se bem que só nas horas que escolhia, nunca em outras. E, para terminar, todo mundo sabia que ele não acreditava em Deus, inclusive brigava bastante com o padre Manuel, que é uma pessoa distintíssima e sempre releva.
— Eu sei — respondeu Deus. — Isto é mais uma dificuldade.
E, de fato, fomos vendo que a vida de Deus e dos santos é muito dificultosa desde aí, porque tivemos de catar toda a feira atrás desse Quinca e sempre onde a gente passava ele já tinha passado. Ele foi encontrado numa barraca, falando coisas que a mulher de Lóide, aquela outra santa, fingia que achava besteira, mas estava se convencendo e então eu vi que aquilo ia acabar dando problema. Olha aí, mostrei eu, ele ali causando divergência. É isso mesmo, disse Deus com olhar de grande satisfação, certa feita eu também disse que tinha vindo separar homem e mulher. Não quero nem saber, me apresente.
E então tivemos um belo dia, porque depois da apresentação parece que Quinca já tinha tomado algumas e fomos comer um sarapatel, tudo na maior camaradagem, porque estava se vendo que Quinca tinha gostado de Deus e Deus tinha gostado dele, de maneira que ficaram logo muitíssimo amigos e foi uma conversa animada que até às vezes eu ficava meio de fora, eles tinham muita coisa a palestrar. Nisso tome sarapatel até as três e todo mundo já de barriga altamente estufada, quando que Quinca me resolve tomar uma saideira com Deus e essa saideira é nada mais nada menos do que na casa de Adalberta, a qual tem mulheres putas. Nessa hora, minha obrigação, porque estou vendo que Deus está muito distraído e possa ser que não esteja acostumado com essas aguardentes de Santo Amaro que ele tomou mais de uma vintena, é alertar. Chamei assim Deus para o canto da barraca enquanto Quinca urinava e disse olhe, você é novo por aqui, pelo menos só conhecíamos de missa, de maneira que essa Adalberta, não sei se você sabe, é cafetina, não deve ficar bem, não tenho nada com isso, mas não custa um amigo avisar. Ora, rapaz, você tem medo de mulher, disse Deus, que estava mais do que felicíssimo e, se não fosse Deus, eu até achava que era um pouco do efeito da bebida. Mas, se é ele que fala assim, não sou eu que fala assado, vá ver que temos lá alguma rapariga chamada Madalena, resolvi seguir e não perguntar mais nada.
Pois tomaram mais e fizeram muito grande sucesso com as mulheres e era uma risadaria, uma coisa mesmo desproporcionada, havendo mesmo um serviço de molho pardo depois das seis, que a fome apertou de novo, e bastantes músicas. Cada refrão que Quinca mandava, cada refrão Deus repicava, estava uma farra lindíssima, porém sem maldade, e Deus sabia mais sambas de roda que qualquer pessoa, leu mãos, recitou, contou passagens, imitou passarinho com perfeição, tirou versos, ficou logo estimadíssimo. Eu, que estava de reboque bebendo de graça e já tinha aprendido que era melhor ficar calado, pude ver com o rabo do olho que ele estava fazendo uns milagres disfarçados, a mim ele não engana. As mulheres todas parece que melhoraram de beleza, o ambiente ficou de uma grande leveza, a cerveja parecia que tinha saído do congelador porém sem empedrar e, certeza eu tenho mas não posso provar, pelo menos umas duas blenorragias ele deve de ter curado, só pelo olhar de simpatia que ele dava. E tivemos assim belas trocas de palavras e já era mais do que onze quando Quinca convidou Deus para ver as mulas e foram vendo mulas que parecia que Deus, antes de fazer o mundo, tinha sido tropeiro. E só essa tropica e essa não tropica, essa empaca e essa não empaca, essa tem a andadura rija, essa pisa pesado, essa está velha, um congresso de muleiros, essa é que é a verdade.
É assim que vemos a injustiça, porque, a estas alturas, eu já estou sabendo que Deus veio chamar Quinca para santo e que dava um trabalho mais do que lascado, só o que ele teve de estudar sobre mulas e decorar de sambas de roda deve ter sido uma esfrega. Mas eu já estava esperando que, de uma hora para outra, Deus desse o recado para esse Quinca das Mulas. Como de fato, numa hora que a conversa parou e Quinca estava só estalando a língua da cachaça e olhando para o espaço, Deus, como quem não quer nada, puxou a prosa de que era Deus e tal e coisa.
Ah, para quê? Para Quinca dizer que não acreditava em Deus. E para Deus, no começo com muita paciência, dizer que era Deus mesmo e que provava. Fez uns dois milagres só de efeito, mas Quinca disse que era truques e que, acima de tudo, o homem era homem e, se precisasse de milagre, não era homem. Deus, por uma questão de honestidade, embora o coração pedisse contra nessa hora, concordou. Então ande logo por cima da água e não me abuse, disse Quinca. E eu só preocupado com a falta de paciência de Deus, porque, se ele se aborrecesse, eu queria pelo menos estar em Valença, não aqui nesta hora. Mas ele só patati-patatá, que porque ser santo era ótimo, que tinha sacrifícios mas também tinha recompensas, que deixasse daquela besteira de Deus não existir, só faltou prometer dez por cento. Mas Quinca negaceava e a coisa foi ficando preta e os dois foram andando para fora, num particular e, de repente, se desentenderam. Eu, que fiquei sentado longe, só ouvia os gritos, meio dispersados pelo vento.
— Você tem que ser santo, seu desgraçado! — gritava Deus. — Faz-se de besta! — dizia Quinca.
E só quebrando porrada, pelo barulho, e eu achando que, se Deus não ganhasse na conversa, pelo menos ganhava na porrada, eu já conhecia. Mas não era coisa fácil. De volta de meia-noite e meia até umas quatro, só se ouvia aquele cacete: deixe de ser burro, infeliz! cale essa boca, mentiroso! E por aí ia. Eu só sei que, umas cinco horas mais ou menos, com Gerdásia do mercado trazendo um mingau do que ela ia vender na praça e fazendo a caridade de dar um pouco para mim e para Deus, por sinal que ele toma mingau como se fosse acabar amanhã e não tivesse mais tempo, os dois resolveram apertar a mão, porém não resolveram mais nada: nem Deus desistia de chamar Quinca para o cargo de santo, nem Quinca queria aceitar esse cargo.
— Muito bem — disse Deus, depois de uma porção de vezes que todo mundo dizia que já ia, mas enganchava num resto de conversa e regressava. — Eu volto aqui outra vez.
— Voltar, pode voltar, terá comida e bebida — disse Quinca. — Mas não vai me convencer!
— Rapaz, deixe de ser que nem suas mulas!
— Posso ser mula, mas não tenho cara de jegue!
E aí mais pau, mas, quando o dia já estava moço, aí por umas seis ou sete horas da manhã, estamos Deus e eu navegando de volta para Itaparica, nenhum dos dois falando nada, ele porque fracassou na missão e eu porque não gosto de ver um amigo derrotado. Mas, na hora que nós vamos passando pelas encostas do Forte, quase nos esquecendo da vida pela beleza, ele me olhou com grande simpatia e disse: fracasso nada, rapaz. não falei nada, disse eu. Mas sentiu, disse ele. Se incomode não, disse ele, nem toda pesca rende peixes. E então ficou azul, esvoaçou, subiu nos ares e desapareceu no céu." ( os cem melhores contos brasileiros do século)
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terça-feira, 28 de fevereiro de 2012
O homem que viu o lagarto comer seu filho -Ignácio de Loyola Brandão
Era uma noite de terça-feira, e eles viam televisão deitados na cama. Quase uma da manhã, estava quente. Ele levantou-se para tomar água. A casa silenciosa, moravam num bairro tranqüilo. Não havia ruídos,poucos carros. Ao passar pelo quarto das crianças, resolveu entrar. Empurrou a porta e encontrou o bicho comendo o menino mais velho, de três anos e meio. Era semelhante a um lagarto e, na penumbra, pareceu verde. Paralisado, não sabia se devia entrar e tentar assustar o animal, para que ele largasse a criança. Ou se devia recuar e pedir auxílio. Ele não sabia a força do bicho, só adivinhava que devia ser monstruosamente forte. Ao menos, forte demais para ele, franzino funcionário. E meio míope, ainda por cima. Se acendesse a luz do corredor, poderia verificar melhor que tipo de animal era. Mas não se tratava de identificar a raça e sim de salvar o menino. Ele tinha a impressão de que as duas pernas já tinham sido comidas, porque os lençóis estavam empapados de sangue. E a calça do pijama estava estraçalhada sob as garras horrendas do bicho repulsivo. Como é que uma coisa assim tinha entrado pela casa adentro? Bem que ele avisava a mulher para trancar portas. Ela esquecia, nunca usava o pega ladrão. Qualquer dia, em vez de um bicho, haveria um homem roubando tudo, a televisão colorida, o liquidificador, as coleções de livros com capas douradas, os abajures feitos com asas de borboletas, tão preciosos. Pensou em verificar as portas, se estavam trancadas. Porém, percebeu um movimento no animal, como se ele tentasse subir para a cama. Talvez tivesse comido mais um pedaço do menino. Precisava intervir. Como? Dando tapinhas nas costas do lagarto — não lagarto? Não tinha antas em casa e o cunhado sempre dizia que era coisa necessária. Nunca se sabia o que ia acontecer. Ali estava a prova. Queria ver a cara do cunhado, quando contasse. Não ia acreditar e ainda apostaria duas cervejas como tal animal não existia. Pode, um lagartão entrar em casa através de portas fechadas e comer crianças? Olhou bem. Comer crianças não era normal, nem certo. Devia ser uma visão alucinada qualquer. Não era, O bicho mastigava o que lhe pareceu um bracinho e o funcionário teve um instante d ternura ao pensar naqueles braços que o abraçavam tanto, quando chegava do emprego à noite. Urna faca de cozinha poderia ser útil? Mas quanto o bicho o deixaria se aproximar, sem perigo para ele, o homem? Tinha de impedir o lagarto de chegar à cabeça. Ao menos isso precisava salvar. Não conseguia dar um passo, sentia-se pregado à porta. Preocupava-se. Todavia não se sentia culpado. Era uma situação nova para ele. E apavorante. Como reagir diante de coisas novas e apavorantes? Não sabia. Preferia não ter visto o lagarto, encontrar a cama vazia, as roupas manchadas de sangue. Pensaria em seqüestro ou coisas assim que lia nos jornais. Seqüestro o intrigaria, uma vez que ganhava pouco mais de dois salários mínimos e não tinha acertado na loteria esportiva. Era apenas um funcionário dos correios que entregava cartas o dia todo e por isso tinha varizes nas pernas. Se gritasse, o lagarto iria embora? Continuou pensando nas coisas que podia fazer, até que a mulher chamou, uma, duas vezes. Depois ela gritou e ele recuou, sempre atento para saber quanto o bicho tinha comido do filho. À medida que recuou perdeu a visão do quarto. Sentindo-se aliviado, pelo que não via. A mulher chamava e ele pensou: o menino não chorou, não deve ter sofrido. Voltou ao quarto ainda com esperança de salvá-lo pela manhã e decidiu nada dizer à mulher. Apagaram a luz, ele se ajeitou, cochilou. Acordou sen tindo um cheiro ruim e quando abriu os olhos viu sobre seu peito a pa ta, parecida com a do lagarto. Paralisado, não sabia se devia tentar as sustar o animal, ou tentar sair da cama e pedir auxílio. Pelo peso da pa ta, o bicho devia ser monstruosamente forte. Ao menos, forte demais para ele, franzino funcionário. Aí se lembrou que tinha dois sacos de cartas a entregar, era época de Natal e havia muitos cartões das pessoas para outras pessoas dizendo que estava tudo bem, felicidades. Tinha que tirar este bicho de cima. Não, hoje não haveria entregas. Nem amanhã, por muito tempo. O lagarto estava com metade de sua perna dentro da boca.
Jardins Suspensos -Antonio Carlos Viana
Dava pena vê-lo a tarde inteira sentado no banquinho de plástico ao lado do tanque, no quintal. Minha mãe vinha e dizia "vai, vai lavar essa xoxotinha". Ele se levantava inteiramente outro, na sua bata estampada, com a voz ranhenta e pastosa. Eu ficava intrigado com minha mãe falando aquilo e ele, em vez de ficar triste, ficava era alegre. Só assim ele saía daquele torpor em que mergulhava logo depois de arrumar a cozinha. E em mim vinha uma curiosidade intensa que crescia a cada tarde, tentando descobrir que tipo de roupa ele usava por baixo porque nunca tinha visto nada parecido com cueca na corda de estender. Ou não usava nada ou fazia de sua roupa de baixo o maior segredo. O que ele tinha mesmo era uma porção de batas coloridas que fazia à mão, com muita paciência.
Eu ouvia então o chuveiro despencando forte sobre seus cabelos mais escorridos que de índio a lhe descerem pelos ombros. E o corpo já devia estar coberto de espuma, um corpo liso talvez, como seus braços. Me vinha uma vontade doida de olhar pela janelinha, ver como ele era, que mistério havia sob aquele rosto triste e sem idade, que vivia a maior parte do tempo olhando para nada. Mas a janelinha era alta e, se minha mãe me pega, eu estava frito. Em que estaria ele pensando todas as tardes para só ser despertado por minha mãe dizendo aquela graça mais idiota? A nossa casa ficava numa vila de casinhas iguais, com o mesmo desconforto e sujeira. Eram casas escuras, tudo com o mesmo cheiro de ovo frito ou de carne moída sem tempero, parecendo grudado para sempre nas paredes. Raro o dia em que não estouravam brigas. Mas a gente vivia bela e solitariamente.
Não sei que moral tinha mãe para despistar todo mundo de nossa vida, fazer com que ninguém se interessasse por nada que nos acontecia. Ela dizia que era também para eu não dizer nada na escola e, quando perguntassem quantos éramos, eu dizer só dois. Fazia de conta que ela alugava o quartinho dos fundos para ter mais uma renda. A vila tinha de bonito só o nome, de civilização antiga e opulenta, como dizia a professora nas aulas de História. Nabucodonosor era o meu rei. E eu vivia sozinho naquela casinha de nada, com aquele hóspede cuja origem minha mãe mantinha em segredo e que só fazia espicaçar a minha imaginação. Ela dizia "se perguntarem alguma coisa a você, diga que é nosso inquilino", como se naquele espaço mirrado pudéssemos nos dar a esse luxo. Ela fazia tudo para eu não ir brincar no rego com os outros meninos para não pegar doença. Eu fazia meus deveres, tempo de terra molhada ia brincar de furão, tempo de terra seca, soltava arraia. E ele sempre me olhando, o tempo passando e minhas inquietações crescendo.
Uma vez por mês, em cada primeira sexta-feira, vinha um homem de branco e que não era doutor. Nessas noites eu tinha que dormir mais cedo e acordava de madrugada com muito cheiro de vela e a casa já em silêncio. No outro dia bem cedo, minha mãe saía com uma sacola na mão, onde eu via dois pombos alvíssimos sem as cabeças. Uma galinha também degolada, pretíssima, seria o nosso almoço. Era a única ocasião em que o via um pouco diferente, se bem que mais silencioso ainda. Mudava só as feições, como de quem conheceu o Paraíso. O seu contato com o mundo era só esse e, a cada dia, eu tentava me aproximar dele sem saber como. Ele só saía mesmo de casa quando lhe doíam os dentes e voltava com o lenço na boca, onde se viam largas manchas vermelhas. Suas gengivas iam ficando cada dia mais limpas e eu acho que ele ansiava pelo dia em que já não tivesse mais nenhum dente na boca. Já arrancara quase todos e devia certamente ser o primeiro da fila, pois saía com tudo ainda muito escuro e voltava esbaforido, me pegando ainda tomando o café para ir à escola.
Uma vez tentei me comunicar com ele, como fazia minha mãe. Aí eu disse "vá, vá lavar a xoxotinha". Mas ele me lançou um olhar tão triste, tão amargo, que me fez apanhar a toalha e ir tomar um banho fora de hora. O que mais me chamava atenção nele eram os dedos finos e ágeis trabalhando tapetes de estopa que minha mãe ia vender longe, na cidade. O dinheiro dividia com ele. Não sei de que ele precisava. Seu quartinho era nu, com uma esteira e um caixote que ele arrumava, pondo em cima seus pentes de dentes finos e um pote de creme para as mãos. A manhã inteira passava fazendo esse trabalho e de tarde caía em suas cismas. Eu olhava para ele meio de banda, querendo descobrir algum segredo e via uns poucos fios de barba continuando a costeleta longa, que ele raspava com uma gilete meio embrulhada no papel da embalagem. Se a gente o pegava fazendo isso, disfarçava, como que envergonhado, escondendo a gilete na mão, com o ruído do papel de seda.
Na escola, eu queria perguntar a alguém sobre os segredos do mundo, mas não me atrevia. Podiam rir ou pensar coisas de mim. Uma manhã me mostraram uma revistinha que me fez ficar com febre. Minha curiosidade aumentou. E eu olhava agora com mais freqüência, tantas vezes sem poder desviar os olhos de seu corpo tão encoberto. Perguntei a minha mãe por que ela dizia sempre aquela graça com ele, e ela, "você sabe que eu gosto de brincar", e pareceu ficar triste. Apesar das recomendações, eu não me continha mais dentro de casa, o mundo parecendo apertado para mim. E ele ficava agora todo inteiriçado quando me via. Até que numa tarde, sem mais nem menos, a voz ranhenta e pastosa, ao me ver, disse de repente, me tomando de surpresa: "quer ver dentro de mim?" E levantou a bata. Não usava nada mesmo por baixo. Com um riso estranho nos olhos, sentado no banquinho de plástico azul, abriu bem as pernas e de dentro delas brotou uma rosa sangrenta capaz de mudar o rumo de qualquer abelha.( Os cem melhores contos brasileiros do século)
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sábado, 25 de fevereiro de 2012
Nossa amiga Carlos Drummond de Andrade
Não é bastante alta para chegar ao botão da campainha.
O peixeiro presta-lhe esse serviço, tocando. Alguém abre.
- Foi a garota que pediu para chamar...
Quando não é algum transeunte austero, senador ou ministro do
Supremo, que atende à sua requisição.
Com pouco, a solução já não lhe satisfaz. Descobre na porta, a seu
alcance, a abertura forrada de metal e coberta por uma tampa móvel, de
matéria idêntica: por ali entram as cartas. Os dedos sacodem a tampa,
desencadeando o necessário e aflitivo rumor. Antes de abrir, perguntam de
dentro:
- Quem está aí? Ë de paz ou de guerra?
De fora respondem:
- É Luci Machado da Silva. Abre que eu quero entrar.
Ante a intimação peremptória, franqueia-se o recinto. Entra uma
coisinha morena, despenteada, às vezes descalça, às vezes comendo pão com
cocada, mas sempre séria, ar extremamente maduro das meninas de três anos.
À força de entrar, sair, tornar a entrar minutos depois, tornar a sair,
lanchar, dormir na primeira poltrona, praticar pequenos atos domésticos,
dissolveu a noção de residência, se é que não a retificou para os dicionários
do futuro.
- Qual é a sua casa?
- Esta.
- E a outra de onde você veio?
- Também.
- Quantas casas você tem?
- Esta e aquela.
- De qual você gosta mais?
- Que é que você vai me dar?
- Nada.
- Gosto da outra.
- Tem aqui esta pessegada, esta bananinha...
- Gosto desta casa! Gosto de você!
Não é gulodice nem interesse mesquinho... Será antes prazer de
sentir-se cortejada, mimada. Esquece a merenda para ficar na sala, de mão na boca, olhando os pés estendidos, enquanto alguém lhe acarinha os cabelos.
Nem tudo são flores, no espaço entre as duas residências. Há Catarina
e Pepino.
Catarina foi inventada à pressa, para frustrar certa depredação iminente.
Os bichos de cristal na mesinha da sala de estar tentavam a mão viageira.
Pressentia-se o momento em que as formas alongadas e frágeis se desfariam.
Na parede, esquecida, preta, pousara uma bruxa.
- Não mexa nos bichinhos.
Mexia.
- Não mexa, já disse...
Em vão.
- Você está vendo aquela bruxa ali? É Catarina.
- Que Catarina?
- Uma menina de sua idade, igualzinha a você, talvez até mais bonita.
Muito mexedeira, mas tanto, tanto! Um dia foi brincar com o cachorrinho
de vidro, a mãe não queria que ela brincasse. Catarina teimou, mexeu e
quebrou o cachorrinho. Então, de castigo, Catarina virou aquela bruxinha
preta, horrorosa. Para o resto da vida.
A mão imobiliza-se. A bruxa está presa tanto na parede como nos olhos
fixos, grandes, pensativos. Entre os mitos do mundo (entre os seres reais?)
existe mais um, alado, crepuscular, rebelde e decaído.
Pepino tem existência mais positiva. Circula na rua - a rua é o espaço
entre as duas quadras, repleto de surpresas - geralmente à tarde. Vem
bêbado, curvado, expondo em frases incoerentes seus problemas íntimos.
Pegador de crianças.
- Vou embora para minha casa. Você vai me levar.
- Mas você mora tão pertinho...
- E Pepino?
- Pepino não pega ninguém. Ele é camarada.
- Pega, sim. Eu sei.
- Pois eu vou dar uma festa para as crianças desta rua e convido Pepino.
Você vai ver se ele pega.
- Eu não vou na festa.
- Você é quem perde. Vem Elzinha, Nesinha, Heloísa, Alice, Maria
Helena, Lourdes, Bárbara, Edison, Careca, João e Adão. Pepino vai dançar
para as crianças. Você, como é uma boba, não toma parte.
- Até logo!
Sai voando, a porta fecha-se com estrondo. Da varanda, ainda se vê o
pequeno vulto desgrenhado.
- Espere aí, você não tem medo do Pepino?
- Não. Estou zangada com você.
Com a zanga, desaparece o temor. Seria realmente temor? Gosta de ser
acompanhada, para dizer à mãe, quando chega em casa:
- Espia quem me trouxe.
Volta meia hora depois, penteada, calçada, vestido limpo.
- Espia minha roupa nova. Meu sapato branco.
- Mas que beleza! Onde você vai?
- Vou na festa.
Para tomar banho e trocar de vestido, é necessário que se anuncie
sempre uma festa, jamais localizada ou realizada, mas que opera interiormente
sua fascinação. Não há pressa em ir para ela. A merenda, a conversa
grave com pessoas grandes, estranhamente preferidas a quaisquer outras, o
brinquedo personalíssimo com o primeiro encontro do dia - um carretel,
a galinha que salta do carrinho de feira - fazem esquecer a festa, se não a
constituem. E resta saber se o enganado não será o adulto, que sugere terrores
ou recompensas fantasiosas. Nas campinas da imaginação, esse galope de
formas - será a verdade? Senta-se no corredor, e com uns panos velhos, lápis vermelho, pedrinha,
qualquer elemento poetizável, representa para si só a imemorial história
das mães.
- Comadre, seu filhinho como vai?
- Tá bom, comadre, e o seu?
- Tá com dedo machucado e dodói na barriga. Vai tomar injeção.
- Então vou dar no meu também.
Perguntas e respostas, recolhidas em conversas de adulto, saem da
mesma boca inexperiente. O objeto que serve de filho é embalado com
seriedade. A doença existe, existem os sustos maternais. Mas tudo se desfaz,
se acaso um intruso vem surpreender a criação, tirada em partes iguais da
vida e do sonho, e que os prolonga. Assim pudesse a mãe antiga tornar
invisível seu filho, ante os soldados de Herodes. (cem melhores contos brasileiros)
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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012
VIVER OUTRA VEZ – Márcio Barbosa
Com o solzinho da tarde, ela entrou no apartamento. Sábado.
- A entrevista, lembra?
Olhou as roupas espalhadas, móveis empoeirados e ele desculpou-se:
- Poucos vêm aqui. Achava que minha próxima visita seria a morte.
Observou-a. Pequena, inquieta, mãozinhas curiosas nos discos e livros.
Depois, pernas cruzadas – gravador ligado – murmurou, voz rouca:
- O terreiro do bairro quer fazer um trabalho sobre memória.
Ele, aborrecido, negou depoimento. Tentava esquecer o passado -
fantasma que se escondia sob a cama.
- O senhor ajudou a fundar associações, a desmascarar a ideologia da
falsa democracia racial – ela insistiu.
Um dia fora professor. Mas ela não sabia que agora não era mais nada?
Que, há algum tempo, o coração vinha ameaçando parar?
- Minha filha, esqueça-se de mim.
Com o esforço de levantar-se arregalou os olhos. Ela assustou-se:
- Que foi?
- Tonturas, já passa.
Caiu, sem dizer mais nada.
Apavorada, ela procurou vizinhos. Um taxista veio. Gordo, dirigia com
a barriga encostada ao volante. No pronto-socorro lotado, brigaram para
serem atendidos. Um jovem médico os recebeu, perguntando:
- Seu pai? É só pressão um pouco alta. Vocês da raça negra são muito
sujeitos a ter hipertensão.
Receitou maleato de enalapril e mandou-os embora.
Na volta, no táxi, ela ouviu-o, voz trêmula de velho, sussurrar
“obrigado”.
- Por fazer o senhor ficar nervoso – sorriu -, ir para o hospital?
- Por se preocupar comigo. Sabe, já estou no fim…
Ele olhou pela janela do carro. Viu crianças sem camisas jogando
futebol nas ruas.
- Só não pensei – continuou – que fosse terminar viúvo, sem filhos,
aqui, neste bairro, que é quase outra cidade. Quem povoou Perdizes, Bela
Vista? A negrada. Minha família sempre morou lá.
- Nasci aqui – ela afirmou. – É legal. Um pouco perigoso,
ultimamente. Uns amigos morrendo por causa de drogas. Dezesseis, dezessete
anos. Não lhe parece que existe um plano para exterminar nosso povo?
O que o tocou, quando ela ergueu o rosto e fitou-o? Os olhos úmidos?
Quase menina, tão preocupada com sua gente. Queria dizer-lhe para não se
iludir, mas a frase ficou presa dentro do peito, mesmo quando ela voltou
outras vezes, depois do trabalho, para ver como estava. Um dia chegou, tirou
o walk-man, passou os dedos nos móveis e exclamou:
- Tem tanto pó!
- Foi acumulando com as decepções – ele brincou.
No dia seguinte, de bermudas, coxas roliças à mostra, ela espanou,
varreu. Não podia ver nada envelhecer? Pensava, com a alegria de menina,
em remoçá-lo? Num domingo, chegou com discos:
- Racionais, conhece? Bom pra caramba.
Ouviu e gostou. Parecia escutar a si mesmo nos versos dos raps, rapaz
crescendo revoltado nos cortiços do Bixiga. Mas o que a moça queria,
enchendo o lugar com música, verificando se comia direito, arrumando as
camisas no guarda-roupa?
- Vê-lo recuperar-se – ela dizia. – Já está mais moço.
Acreditava no poder de cura de mãos movidas por carinho. Deu-lhe as
suas e levou-o a bares onde pagodeiros punham a alma para percutir os
instrumentos. Dançou com ele, sob olhares curiosos, diferentes daqueles que
os vizinhos lhes dirigiam, quando passavam nas ruas, mãos entrelaçadas.
Ouvia-os dizer: Podia ser sua filha, que sem-vergonha.
Ela nem ligava. O velho mais desiludido tornava-se o mais animado.
O homem que ajudara seu povo a se organizar despertava, às vezes, no trovão
da gargalhada. Mas, num sábado, tristezas de outrora emergiram no poço
dos olhos. Ao vislumbrá-las, fez de tudo para levá-lo à praia. Pularam
sete ondas, despachando as coisas ruins que pesavam nos ombros. Gotas de
água em seus cabelos eram minúsculos sóis. Deitadinhos na areia, contou a
ele sobre o pai, disse que jamais o conhecera. Os olhos marejaram, uma
sombra passou por seu rosto. Então, mudou de assunto e puxou-o para
brincar na água.
Voltaram da viagem à noite. Entraram no pequeno apartamento rindo
de tudo, de nada. Dono ainda de olhos tristes, mas animado. Bateu-lhe no
peito sem feri-lo. Acariciou sua carapinha. Depois, olhou-o durante um bom
tempo e beijou sua boca sorridente. Idade pra ser o pai?
- Sou virgem – ela murmurou. – Não posso engravidar.
As roupas ficaram sobre o tapete, espalhadas.
De mãos dadas na padaria, no mercado, ouviam os vizinhos:
É a sobrinha?- uns perguntavam.
Amante. – outros diziam, baixinho.
Ele ia receber a aposentadoria e ficava no ponto de ônibus meia hora.
Enquanto outros reclamavam, permanecia impassível, dono de um segredo.
É a concubi na. – Parecia escutar alguém sussurrando.
Sentia-se leve, até ser acometido por uma dorzinha besta no peito.
No centro da sala, o homem sentado no sofá é uma pálida lembrança
daquele que, outrora, acreditara na sua gente. Que fantasmas o acompanhariam
ao cemitério? Ela assustou-se, ao vê-lo com as mãos sobre o peito.
- Coração?
- Um coração enfraquecido pelas desilusões.
Por que não falava desses fantasmas?
- Não confia em mim? Quer dizer que eu não sou nada?
- O gravador – ele pediu, imediatamente após ouvi-la falar.
Esperou-a tirar o sony da bolsa e continuou:
- No início do século, previa-se o desaparecimento da nossa, não digo
raça, que só existe a raça humana. E melhor etnia. As elites brasileiras queriam
um país sem negros e mulatos. Quando soube dessas idéias, a luz da revolta
me iluminou. Uns amigos falaram-me sobre Zumbi, sobre os quilombos,
sobre união. Acreditei que a união fosse possível. Mas o sonho se desfez tão
rápido! Os amigos se cansaram. O nosso povo? Desinteressado, apático. Não
sei – enxugou uma lágrima – como não desapareceu.
- O que vocês fizeram foi bonito.
- São coisas que eu preciso esquecer.
- Hoje os problemas são os mesmos. Mas há pessoas jovens, querendo
aprender, como eu. Quero acreditar em algo. Nosso povo sobreviveu porque
acreditou na vida.
- É verdade. Parece que nós temos de adquirir uma força tão grande,
parece que um amor pela vida se enraíza tão fundo dentro da gente, que nada
nos abala com facilidade. E se a gente cai, é pra levantar mais forte; se
apanhamos, voltamos a brigar com mais garra; se choramos, também
aprendemos a extrair, lá de dentro, uma gargalhada tão gostosa, que é como
se toda a alegria do mundo coubesse em nosso peito. Somos negros e temos
essa força. Isso é maravilhoso.
Ela abraçou-o, beijou-o. Só então ele se deu conta de que falara com
entusiasmo. Uma parte do sonho ainda vivia. Mas as dores no peito
persistiram. Ela vinha mais vezes, preparava arroz integral, moderou no sal
e tirou o açúcar branco.
- A pinga com carqueja eu não jogo fora – ele protestou.
Era para diabetes, um amigo tinha ensinado.
Ficava irritado com os excessos de cuidados. No fundo, sentia falta
quando ela não vinha. A menina de uma geração tão diferente, com quem
reaprendia a viver. A moça que acreditava nas coisas em que ele acreditara.
Num domingo, sentindo o relógio no peito se acelerar, disse-lhe:
- Não vou durar muito. Só lamento não ter tido filhos.
Notou que ela ficou calada, pensativa. Escondia algo?
Veio na segunda-feira. Preocupada, tensa. Acusou-o de cerceá-la. Tensão
pré-menstrual? Que havia?
- Estou grávida – disse, por fim. – Não posso. Tenho estudos.
Também não quero um filho pra crescer como eu, sem pai.
Foi até a janela. Suas lágrimas rolavam como a chuva lá fora.
- Um filho? – ele perguntou, incrédulo. – A soma do meu e do teu
sonho. Olhe – pegou-lhe a mão e pôs sobre seu próprio peito – parou de
doer. Podemos criar esse filho, se você quiser. – Então abraçou-a e, com a
voz embargada, soluçando, falou: – Te amo.
Quando eles passavam, grávidos, ouviam os vizinhos comentarem:
É o filho – uns diziam.
O neto – outros apostavam.
- É o amor nos recriando – diziam um ao outro.( os cem melhores contos brasileiros)
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quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012
O afogado -Rubem Braga
Não, não dá pé. Ele já se sente cansado, mas compreende que ainda
precisa nadar um pouco. Dá cinco ou seis braçadas, e tem a impressão
de que não saiu do lugar. Pior: parece que está sendo arrastado para fora.
Continua a dar braçadas, mas está exausto.
A força dos músculos esgotou-se; sua respiração está curta e opressa.
É preciso ter calma. Vira-se de barriga para cima e tenta se manter assim,
sem exigir nenhum esforço dos braços doloridos. Mas sente que uma onda
grande se aproxima. Mal tem tempo para voltar-se e enfrentá-la. Por um
segundo pensa que ela vai desabar sobre ele, e consegue dar duas braçadas
em sua direção. Foi o necessário para não ser colhido pela arrebentação; é
erguido, e depois levado pelo repuxo. Talvez pudesse tomar pé, ao menos
por um instante, na depressão da onda que passou. Experimenta: não. Essa
tentativa frustrada irrita-o e cansa-o. Tem dificuldade de respirar, e vê que
já vem outra onda. Seria melhor talvez mergulhar, deixar que ela passe por
cima ou o carregue; mas não consegue controlar a respiração e fatalmente
engoliria água; com o choque perderia os sentidos. É outra vez suspenso pela
água e novamente se deita de costas, na esperança de descansar um pouco os
músculos e regular a respiração; mas vem outra onda imensa. Os braços
negam-se a qualquer esforço; agita as pernas para se manter na superfície e
ainda uma vez consegue escapar à arrebentação.
Está cada vez mais longe da praia, e alguma coisa o assusta: é um grito
que ele mesmo deu sem querer e parou no meio, como se o principal perigo
fosse gritar. Tem medo de engolir água, mas tem medo principalmente
daquele seu próprio grito rouco e interrompido. Pensa rapidamente que, se
não for socorrido, morrerá; que, apesar da praia estar cheia nessa manhã de
sábado, o banhista da Prefeitura já deve ter ido embora; o horário agora é de
morrer, e não de ser salvo. Olha a praia e as pedras; vê muitos rapazes e moças,
tem a impressão de que alguns o olham com indiferença. Terão ouvido seu
grito? A imagem que retém melhor é a de um rapazinho que, sentado na
pedra, procura tirar algum espeto do pé.
A idéia de que precisará ser salvo incomoda-o muito; desagrada-lhe
violentamente, e resolve que de maneira alguma pedirá socorro, mesmo
porque naquela aflição já acha que ele não chegaria a tempo. Pensa insistentemente isto: calma, é preciso ter calma. Não apenas para salvar-se, ao
menos para morrer direito, sem berraria nem escândalo. Passa outra onda,
mais fraca; mas assim mesmo ela rebenta com estrondo. Resolve que é melhor
ficar ali fora do que ser colhido por uma onda: com certeza, tendo perdido
as forças, quebraria o pescoço jogado pela água no fundo. Sua respiração está
intolerável, acha que o ar não chega a penetrar nos pulmões, vai só até a
garganta e é expelido com aflição; tem uma dor nos ombros; sente-se completamente fraco.
Olha ainda para as pedras, e vê aquela gente confusamente; a água lhe
bate nos olhos. Percebe, entretanto, que a água o está levando para o lado
das pedras. Uma onda mais forte pode arremessá-lo contra o rochedo; mas,
apesar de tudo, essa idéia lhe agrada. Sim, ele prefere ser lançado contra as
pedras, ainda que se arrebente todo. Esforça-se na direção do lugar de onde
saltou, mas acha longe demais; de súbito, reflete que à sua esquerda deve
haver também uma ponta de pedras. Olha. Sente-se tonto e pensa: vou
desmaiar. Subitamente, faz gestos desordenados e isso o assusta ainda mais;
então reage e resolve, com uma espécie de frieza feroz, que não fará mais esses
movimentos idiotas, haja o que houver; isso é pior do que tudo, essa epilepsia
de afogado. Sente-se um animal vencido que vai morrer, mas está frio e
disposto a lutar, mesmo sem qualquer força; lutar ao menos com a cabeça;
não se deixará enlouquecer pelo medo.
Repara, então, que, realmente, está agora perto de uma pedra, coberta
de mariscos negros e grandes. Pensa: é melhor que venha uma onda fraca; se
vier uma muito forte, serei jogado ali, ficarei todo cortado, talvez bata com
a cabeça na pedra ou não consiga me agarrar nela; e se não conseguir me
agarrar da primeira vez, não terei mais nenhuma chance.
Sente, pelo puxão da água atrás de si, que uma onda vem, mas não olha
para trás. Muda de idéia; se não vier uma onda bem forte, não atingirá a
pedra. Junta todos os restos de forças; a onda vem. Vê então que foi jogado
sobre a pedra sem se ferir; talvez instintivamente tivesse usado sua experiência
de menino, naquela praia onde passava as férias, e se acostumara a nadar até
uma ilhota de pedra também coberta de mariscos. Vê que alguém, em uma
pedra mais alta, lhe faz sinais nervosos para que saia dali, está em um lugar
perigoso. Sim, sabe que está em um lugar perigoso, uma onda pode cobri-lo
e arrastá-lo, mas o aviso o irrita; sabe um pouco melhor do que aquele sujeito
o que é morrer e o que é salvar-se, e demora ainda um segundo para se erguer,
sentindo um prazer extraordinário em estar deitado na pedra, apesar do risco.
Quando chega à praia e senta na areia está sem poder respirar, mas sente mais
vivo do que antes o medo do perigo que passou.
"Gastei-me todo para salvar-me, pensa, meio tonto; não valho mais
nada." Deita-se com a cabeça na areia e confusamente ouve a conversa de
uma barraca perto, gente discutindo uma fita de cinema. Murmura, baixo,
um palavrão para eles; sente-se superior a eles, uma idiota superioridade de
quem não morreu, mas podia perfeitamente estar morto, e portanto nesse
caso não teria a menor importância, seria até ridículo de seu ponto de vista
tudo o que se pudesse discutir sobre uma fita de cinema. O mormaço lhe dá
no corpo inteiro um infinito prazer. /(cem melhores contos brasileiros)
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terça-feira, 21 de fevereiro de 2012
Feliz Ano Novo Rubem Fonseca
Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no reveillon. Vi também que as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque.
Pereba, vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos macumbeiros.
Pereba entrou no banheiro e disse, que fedor.
Vai mijar noutro lugar, tô sem água.
Pereba saiu e foi mijar na escada.
Onde você afanou a TV, Pereba perguntou.
Afanei, porra nenhuma. Comprei. O recibo está bem em cima dela. Ô Pereba! você pensa que eu sou algum babaquara para ter coisa estarrada no meu cafofo?
Tô morrendo de fome, disse Pereba.
De manhã a gente enche a barriga com os despachos dos babalaôs, eu disse, só de sacanagem.
Não conte comigo, disse Pereba. Lembra-se do Crispim? Deu um bico numa macumba aqui na Borges de Medeiros, a perna ficou preta, cortaram no Miguel Couto e tá ele aí, fudidão, andando de muleta.
Pereba sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que quiser.
Acendemos uns baseados e ficamos vendo a novela. Merda. Mudamos de canal, prum bang-bang, Outra bosta.
As madames granfas tão todas de roupa nova, vão entrar o ano novo dançando com os braços pro alto, já viu como as branquelas dançam? Levantam os braços pro alto, acho que é pra mostrar o sovaco, elas querem mesmo é mostrar a boceta mas não têm culhão e mostram o sovaco. Todas corneiam os maridos. Você sabia que a vida delas é dar a xoxota por aí?
Pena que não tão dando pra gente, disse Pereba. Ele falava devagar, gozador, cansado, doente.
Pereba, você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as madames vão dar pra você? Ô Pereba, o máximo que você pode fazer é tocar uma punheta. Fecha os olhos e manda brasa.
Eu queria ser rico, sair da merda em que estava metido! Tanta gente rica e eu fudido.
Zequinha entrou na sala, viu Pereba tocando punheta e disse, que é isso Pereba?
Michou, michou, assim não é possível, disse Pereba.
Por que você não foi para o banheiro descascar sua bronha?, disse Zequinha.
No banheiro tá um fedor danado, disse Pereba. Tô sem água.
As mulheres aqui do conjunto não estão mais dando?, perguntou Zequinha.
Ele tava homenageando uma loura bacana, de vestido de baile e cheia de jóias.
Ela tava nua, disse Pereba.
Já vi que vocês tão na merda, disse Zequinha.
Ele tá querendo comer restos de Iemanjá, disse Pereba.
Brincadeira, eu disse. Afinal, eu e Zequinha tínhamos assaltado um supermercado no Leblon, não tinha dado muita grana, mas passamos um tempão em São Paulo na boca do lixo, bebendo e comendo as mulheres. A gente se respeitava.
Pra falar a verdade a maré também não tá boa pro meu lado, disse Zequinha. A barra tá pesada. Os homens não tão brincando, viu o que fizeram com o Bom Crioulo? Dezesseis tiros no quengo. Pegaram o Vevé e estrangularam. O Minhoca, porra! O Minhoca! crescemos juntos em Caxias, o cara era tão míope que não enxergava daqui até ali, e também era meio gago - pegaram ele e jogaram dentro do Guandu, todo arrebentado.
Pior foi com o Tripé. Tacaram fogo nele. Virou torresmo. Os homens não tão dando sopa, disse Pereba. E frango de macumba eu não como.
Depois de amanhã vocês vão ver. Vão ver o que?, perguntou Zequinha.
Só tô esperando o Lambreta chegar de São Paulo.
Porra, tu tá transando com o Lambreta?, disse Zequinha.
As ferramentas dele tão todas aqui.
Aqui!?, disse Zequinha. Você tá louco.
Eu ri.
Quais são os ferros que você tem?, perguntou Zequinha. Uma Thompson lata de goiabada, uma carabina doze, de cano serrado, e duas magnum.
Puta que pariu, disse Zequinha. E vocês montados nessa baba tão aqui tocando punheta?
Esperando o dia raiar para comer farofa de macumba, disse Pereba. Ele faria sucesso falando daquele jeito na TV, ia matar as pessoas de rir.
Fumamos. Esvaziamos uma pitu.
Posso ver o material?, disse Zequinha.
Descemos pelas escadas, o elevador não funcionava e fomos no apartamento de Dona Candinha. Batemos. A velha abriu a porta.
Dona Candinha, boa noite, vim apanhar aquele pacote.
O Lambreta já chegou?, disse a preta velha.
Já, eu disse, está lá em cima.
A velha trouxe o pacote, caminhando com esforço. O peso era demais para ela. Cuidado, meus filhos, ela disse.
Subimos pelas escadas e voltamos para o meu apartamento. Abri o pacote. Armei primeiro a lata de goiabada e dei pro Zequinha segurar. Me amarro nessa máquina, tarratátátátá!, disse Zequinha.
É antiga mas não falha, eu disse.
Zequinha pegou a magnum. Jóia, jóia, ele disse. Depois segurou a doze, colocou a culatra no ombro e disse: ainda dou um tiro com esta belezinha nos peitos de um tira, bem de perto, sabe como é, pra jogar o puto de costas na parede e deixar ele pregado lá.
Botamos tudo em cima da mesa e ficamos olhando. Fumamos mais um pouco.
Quando é que vocês vão usar o material?, disse Zequinha.
Dia 2. Vamos estourar um banco na Penha. O Lambreta quer fazer o primeiro gol do ano.
Ele é um cara vaidoso, disse Zequinha.
É vaidoso mas merece. Já trabalhou em São Paulo, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Vitória, Niterói, pra não falar aqui no Rio. Mais de trinta bancos.
É, mas dizem que ele dá o bozó, disse Zequinha.
Não sei se dá, nem tenho peito de perguntar. Pra cima de mim nunca veio com frescuras.
Você já viu ele com mulher?, disse Zequinha.
Não, nunca vi. Sei lá, pode ser verdade, mas que importa?
Homem não deve dar o cu. Ainda mais um cara importante como o Lambreta, disse Zequinha.
Cara importante faz o que quer, eu disse.
É verdade, disse Zequinha.
Ficamos calados, fumando.
Os ferros na mão e a gente nada, disse Zequinha.
O material é do Lambreta. E aonde é que a gente ia usar ele numa hora destas?
Zequinha chupou ar fingindo que tinha coisas entre os dentes. Acho que ele também estava com fome.
Eu tava pensando a gente invadir uma casa bacana que tá dando festa. O mulherio tá cheio de jóia e eu tenho um cara que compra tudo que eu levar. E os barbados tão cheios de grana na carteira. Você sabe que tem anel que vale cinco milhas e colar de quinze, nesse intruja que eu conheço? Ele paga na hora.
O fumo acabou. A cachaça também. Começou a chover. Lá se foi a tua farofa, disse Pereba.
Que casa? Você tem alguma em vista?
Não, mas tá cheio de casa de rico por aí. A gente puxa um carro e sai procurando.
Coloquei a lata de goiabada numa saca ele feira, junto com a munição. Dei uma magnum pro Pereba, outra pro Zequinha. Prendi a carabina no cinto, o cano para baixo e vesti uma capa. Apanhei três meias de mulher e uma tesoura. Vamos, eu disse.
Puxamos um Opala. Seguimos para os lados de São Conrado. Passamos várias casas que não davam pé, ou tavam muito perto da rua ou tinham gente demais. Até que achamos o lugar perfeito. Tinha na frente um jardim grande e a casa ficava lá no fundo, isolada. A gente ouvia barulho de música de carnaval, mas poucas vozes cantando. Botamos as meias na cara. Cortei com a tesoura os buracos dos olhos. Entramos pela porta principal.
Eles estavam bebendo e dançando num salão quando viram a gente.
É um assalto, gritei bem alto, para abafar o som da vitrola. Se vocês ficarem quietos ninguém se machuca. Você aí, apaga essa porra dessa vitrola!
Pereba e Zequinha foram procurar os empregados e vieram com três garções e duas cozinheiras. Deita todo mundo, eu disse.
Contei. Eram vinte e cinco pessoas. Todos deitados em silêncio, quietos, como se não estivessem sendo vistos nem vendo nada.
Tem mais alguém em casa?, eu perguntei.
Minha mãe. Ela está lá em cima no quarto. É uma senhora doente, disse uma mulher toda enfeitada, de vestido longo vermelho. Devia ser a dona da casa.
Crianças?
Estão em Cabo Frio, com os tios.
Gonçalves, vai lá em cima com a gordinha e traz a mãe dela.
Gonçalves?, disse Pereba.
É você mesmo. Tu não sabe mais o teu nome, ô burro? Pereba pegou a mulher e subiu as escadas.
Inocêncio, amarra os barbados.
Zequinha amarrou os caras usando cintos, fios de cortinas, fios de telefones, tudo que encontrou.
Revistamos os sujeitos. Muito pouca grana. Os putos estavam cheios de cartões de crédito e talões de cheques. Os relógios eram bons, de ouro e platina. Arrancamos as jóias das mulheres. Um bocado de ouro e brilhante. Botamos tudo na saca.
Pereba desceu as escadas sozinho.
Cadê as mulheres?, eu disse.
Engrossaram e eu tive que botar respeito.
Subi. A gordinha estava na cama, as roupas rasgadas, a língua de fora. Mortinha. Pra que ficou de flozô e não deu logo? O Pereba tava atrasado. Além de fudida, mal paga. Limpei as jóias. A velha tava no corredor, caída no chão. Também tinha batido as botas. Toda penteada, aquele cabelão armado, pintado de louro, de roupa nova, rosto encarquilhado, esperando o ano novo, mas já tava mais pra lá do que pra cá. Acho que morreu de susto. Arranquei os colares, broches e anéis. Tinha um anel que não saía. Com nojo, molhei de saliva o dedo da velha, mas mesmo assim o anel não saía. Fiquei puto e dei uma dentada, arrancando o dedo dela. Enfiei tudo dentro de uma fronha. O quarto da gordinha tinha as paredes forradas de couro. A banheira era um buraco quadrado grande de mármore branco, enfiado no chão. A parede toda de espelhos. Tudo perfumado. Voltei para o quarto, empurrei a gordinha para o chão, arrumei a colcha de cetim da cama com cuidado, ela ficou lisinha, brilhando. Tirei as calças e caguei em cima da colcha. Foi um alívio, muito legal. Depois limpei o cu na colcha, botei as calças e desci.
Vamos comer, eu disse, botando a fronha dentro da saca. Os homens e mulheres no chão estavam todos quietos e encagaçados, como carneirinhos. Para assustar ainda mais eu disse, o puto que se mexer eu estouro os miolos.
Então, de repente, um deles disse, calmamente, não se irritem, levem o que quiserem não faremos nada.
Fiquei olhando para ele. Usava um lenço de seda colorida em volta do pescoço.
Podem também comer e beber à vontade, ele disse.
Filha da puta. As bebidas, as comidas, as jóias, o dinheiro, tudo aquilo para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles, nós não passávamos de três moscas no açucareiro.
Como é seu nome?
Maurício, ele disse.
Seu Maurício, o senhor quer se levantar, por favor?
Ele se levantou. Desamarrei os braços dele.
Muito obrigado, ele disse. Vê-se que o senhor é um homem educado, instruído. Os senhores podem ir embora, que não daremos queixa à polícia. Ele disse isso olhando para os outros, que estavam quietos apavorados no chão, e fazendo um gesto com as mãos abertas, como quem diz, calma minha gente, já levei este bunda suja no papo.
Inocêncio, você já acabou de comer? Me traz uma perna de peru dessas aí. Em cima de uma mesa tinha comida que dava para alimentar o presídio inteiro. Comi a perna de peru. Apanhei a carabina doze e carreguei os dois canos.
Seu Maurício, quer fazer o favor de chegar perto da parede? Ele se encostou na parede. Encostado não, não, uns dois metros de distância. Mais um pouquinho para cá. Aí. Muito obrigado.
Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele tinha um buraco que dava para colocar um panetone.
Viu, não grudou o cara na parede, porra nenhuma.
Tem que ser na madeira, numa porta. Parede não dá, Zequinha disse.
Os caras deitados no chão estavam de olhos fechados, nem se mexiam. Não se ouvia nada, a não ser os arrotos do Pereba.
Você aí, levante-se, disse Zequinha. O sacana tinha escolhido um cara magrinho, de cabelos compridos.
Por favor, o sujeito disse, bem baixinho. Fica de costas para a parede, disse Zequinha.
Carreguei os dois canos da doze. Atira você, o coice dela machucou o meu ombro. Apóia bem a culatra senão ela te quebra a clavícula.
Vê como esse vai grudar. Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. Bateu com estrondo na porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o corpo do cara ficou preso pelo chumbo grosso na madeira.
Eu não disse? Zequinha esfregou ó ombro dolorido. Esse canhão é foda.
Não vais comer uma bacana destas?, perguntou Pereba.
Não estou a fim. Tenho nojo dessas mulheres. Tô cagando pra elas. Só como mulher que eu gosto.
E você... Inocêncio?
Acho que vou papar aquela moreninha.
A garota tentou atrapalhar, mas Zequinha deu uns murros nos cornos dela, ela sossegou e ficou quieta, de olhos abertos, olhando para o teto, enquanto era executada no sofá.
Vamos embora, eu disse. Enchemos toalhas e fronhas com comidas e objetos.
Muito obrigado pela cooperação de todos, eu disse. Ninguém respondeu.
Saímos. Entramos no Opala e voltamos para casa.
Disse para o Pereba, larga o rodante numa rua deserta de Botafogo, pega um táxi e volta. Eu e Zequinha saltamos.
Este edifício está mesmo fudido, disse Zequinha, enquanto subíamos, com o material, pelas escadas imundas e arrebentadas.
Fudido mas é Zona Sul, perto da praia. Tás querendo que eu vá morar em Vilópolis?
Chegamos lá em cima cansados. Botei as ferramentas no pacote, as jóias e o dinheiro na saca e levei para o apartamento da preta velha.
Dona Candinha, eu disse, mostrando a saca, é coisa quente.
Pode deixar, meus filhos. Os homens aqui não vêm.
Subimos. Coloquei as garrafas e as comidas em cima de uma toalha no chão. Zequinha quis beber e eu não deixei. Vamos esperar o Pereba.
Quando o Pereba chegou, eu enchi os copos e disse, que o próximo ano seja melhor. Feliz Ano Novo.
Texto extraído do livro "Feliz Ano Novo", Editora Artenova – Rio de Janeiro, 1975, pág. 9 (cem melhores contos brasileiros do século)
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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012
UMA HISTÓRIA DE TANTO AMOR- Clarice Lispector
Era uma vez uma menina que observava tanto as galinhas que lhes conhecia a alma e os anseios íntimos. A galinha é ansiosa, enquanto o galo tem angústia quase humana: falta-lhe um amor verdadeiro naquele seu harém, e ainda mais tem que vigiar a noite toda para não perder a primeira das mais longínquas claridades e cantar o mais sonoro possível. É o seu dever e a sua arte. Voltando às galinhas, a menina possuía duas só dela. Uma se chamava Pedrina e a outra Petronilha.
Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela cheirava embaixo das asas delas, com uma simplicidade de enfermeira, o que considerava ser o sintoma máximo de doenças, pois o cheiro de galinha viva não é de se brincar. Então pedia um remédio a uma tia. E a tia: “Você não tem coisa nenhuma no fígado”. Então, com a intimidade que tinha com essa tia eleita, explicou-lhe para quem era o remédio. A menina achou de bom alvitre dá-lo tanto a Pedrina quanto a Petronilha para evitar contágios misteriosos. Era quase inútil dar o remédio porque Pedrina e Petronilha continuavam a passar o dia ciscando o chão e comendo porcarias que faziam mal ao fígado. E o cheiro debaixo das asas era aquela morrinha mesmo. Não lhe ocorreu dar um desodorante porque nas Minas Gerais onde o grupo vivia não eram usados assim como não se usavam roupas íntimas de nylon e sim de cambraia. A tia continuava a lhe dar o remédio, um líquido escuro que a menina desconfiava ser água com uns pingos de café — e vinha o inferno de tentar abrir o bico das galinhas para administrar-lhes o que as curaria de serem galinhas. A menina ainda não tinha entendido que os homens não podem ser curados de serem homens e as galinhas de serem galinhas: tanto o homem como a galinha têm misérias e grandeza (a da galinha é a de pôr um ovo branco de forma perfeita) inerentes à própria espécie. A menina morava no campo e não havia farmácia perto para ela consultar.
Outro inferno de dificuldade era quando a menina achava Pedrina e Petronilha magras debaixo das penas arrepiadas, apesar de comerem o dia inteiro. A menina não entendera que engordá-las seria apressar-lhes um destino na mesa. E recomeçava o trabalho mais difícil: o de abrir-lhes o bico. A menina tornou-se grande conhecedora intuitiva de galinhas naquele imenso quintal das Minas Gerais. E quando cresceu ficou surpresa ao saber que na gíria o termo galinha tinha outra acepção. Sem notar a seriedade cômica que a coisa toda tomava:
— Mas é o galo, que é um nervoso, é quem quer! Elas não fazem nada demais! e é tão rápido que mal se vê! O galo é quem fica procurando amar uma e não consegue!
Um dia a família resolveu levar a menina para passar o dia na casa de um parente, bem longe de casa. E quando voltou, já não existia aquela que em vida fora Petronilha. Sua tia informou:
— Nós comemos Petronilha.
A menina era uma criatura de grande capacidade de amar: uma galinha não corresponde ao amor que se lhe dá e no entanto a menina continuava a amá-la sem esperar reciprocidade. Quando soube o que acontecera com Petronilha passou a odiar todo o mundo da casa, menos sua mãe que não gostava de comer galinha e os empregados que comeram carne de vaca ou de boi. O seu pai, então, ela mal conseguiu olhar: era ele quem mais gostava de comer galinha. Sua mãe percebeu tudo e explicou-lhe:
— Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a gente, estando assim dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não temos Petronilha dentro de nós. É uma pena.
Pedrina, secretamente a preferida da menina, morreu de morte morrida mesmo, pois sempre fora um ente frágil. A menina, ao ver Pedrina tremendo num quintal ardente de sol, embrulhou-a num pano escuro e depois de bem embrulhadinha botou-a em cima daqueles grandes fogões de tijolos das fazendas das minas-gerais. Todos lhe avisaram que estava apressando a morte de Pedrina, mas a menina era obstinada e pôs mesmo Pedrina toda enrolada em cima dos tijolos quentes. Quando na manhã do dia seguinte Pedrina amanheceu dura de tão morta, a menina só então, entre lágrimas intermináveis, se convenceu de que apressara a morte do ser querido.
Um pouco maiorzinha, a menina teve uma galinha chamada Eponina.
O amor por Eponina: dessa vez era um amor mais realista e não romântico; era o amor de quem já sofreu por amor. E quando chegou a vez de Eponina ser comida, a menina não apenas soube como achou que era o destino fatal de quem nascia galinha. As galinhas pareciam ter uma pré-ciência do próprio destino e não aprendiam a amar os donos nem o galo. Uma galinha é sozinha no mundo.
Mas a menina não esquecera o que sua mãe dissera a respeito de comer bichos amados: comeu Eponina mais do que todo o resto da família, comeu sem fome, mas com um prazer quase físico porque sabia agora que assim Eponina se incorporaria nela e se tornaria mais sua do que em vida. Tinham feito Eponina ao molho pardo. De modo que a menina, num ritual pagão que lhe foi transmitido de corpo a corpo através dos séculos, comeu-lhe a carne e bebeu-lhe o sangue. Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens.
Lispector, Clarice. Uma História de Tanto Amor. In Felicidade
Clandestina Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
domingo, 19 de fevereiro de 2012
A nova Califórnia Lima Barreto
Ninguém sabia donde viera aquele homem. O agente do Correio pudera apenas informar que acudia ao nome de Raimundo Flamel, pois assim era subscrita a correspondência que recebia. E era grande. Quase diariamente, o carteiro lá ia a um dos extremos da cidade, onde morava o desconhecido, sopesando um maço alentado de cartas vindas do mundo inteiro, grossas revistas em línguas arrevesadas, livros, pacotes...
Quando Fabrício, o pedreiro, voltou de um serviço em casa do novo habitante, todos na venda perguntaram-lhe que trabalho lhe tinha sido determinado.
- Vou fazer um forno, disse o preto, na sala de jantar.
Imaginem o espanto da pequena cidade de Tubiacanga, ao saber de tão extravagante construção um forno na sala de jantar! E, pelos dias seguintes, Fabrício pôde contar que vira balões de vidros, facas sem corte, copos como os da farmácia - um rol de coisas esquisitas a se mostrarem pelas mesas e prateleiras como utensílios de uma cozinha em que o próprio diabo cozinhasse.
O alarme se fez na vila. Para uns, os mais adiantados, era um fabricante de moeda falsa; para outros, os crentes e simples, um tipo que tinha parte com o tinhoso.
Chico da Tirana, o carreiro, quando passava em frente da casa do homem misterioso, ao lado do carro a chiar, e olhava a chaminé da sala de jantar a fumegar, não deixava de persignar-se e rezar um "credo" em voz baixa; e, não fora a intervenção do farmacêutico, o delegado teria ido dar um cerco na casa daquele indivíduo suspeito, que inquietava a imaginação de toda uma população.
Tomando em consideração as informações de Fabrício, o boticário Bastos concluíra que o desconhecido devia ser um sábio, um grande químico, refugiado ali para mais sossegadamente levar avante os seus trabalhos científicos.
Homem formado e respeitado na cidade, vereador, médico também, porque o doutor Jerônimo não gostava de receitar e se fizera sócio da farmácia para mais em paz viver, a opinião de Bastos levou tranqüilidade a todas as consciências e fez com que a população cercasse de uma silenciosa admiração à pessoa do grande químico, que viera habitar a cidade.
De tarde, se o viam a passear pela margem do Tubiacanga, sentando-se aqui e ali, olhando perdidamente as águas claras do riacho, cismando diante da penetrante melancolia do crepúsculo, todos se descobriram e não era raro que às "boas noites" acrescentassem "doutor". E tocava muito o coração daquela gente a profunda simpatia com que ele tratava as crianças, a maneira pela qual as contemplava, parecendo apiedar-se de que eles tivessem nascido para sofrer e morrer.
Na verdade era de ver-se, sob a doçura suave da tarde, a bondade de Messias com que ele afagava aquelas crianças pretas, tão lisas de pele e tão tristes de modo, mergulhadas no seu cativeiro moral, e também as brancas, de pele baça, gretada e áspera, vivendo amparadas na necessária caquexia dos trópicos.
Por vezes, vinha-lhe vontade de pensar qual a razão de ter Bernardim de Saint-Pierre gasto toda a sua ternura com Paulo e Virgínia e esquecer-se dos escravos que os cercavam...
Em poucos dias a admiração pelo sábio era quase geral, e não o era unicamente porque havia alguém que não tinha em grande conta os méritos do novo habitante.
Capitão Pelino, mestre-escola e redator da Gazeta de Tubiacanga, órgão local e filiado ao partido situacionista embirrava com o sábio.. "Vocês hão de ver, dizia ele, quem é esse tipo... Um caloteiro, um aventureiro ou talvez um ladrão fugido do Rio."
A sua opinião em nada se baseava, ou antes, baseava-se no seu oculto despeito vendo na terra um rival para a fama de sábio de que gozava. Não que Pelino fosse químico, longe disso; mas era sábio, era gramático. Ninguém escrevia em Tubiacanga que não levasse bordoada do Capitão Pelino, e mesmo quando se falava em algum homem notável lá no Rio, ele não deixava de dizer: "Não há dúvida! O homem tem talento, mas escreve: "um outro", "de resto"... E contraía os lábios como se tivesse engolido alguma coisa amarga.
Toda a vila de Tubiacanga acostumou-se a respeitar o solene Pelino, que corrigia e emendava as maiores glórias nacionais. Um sábio...
Ao entardecer, depois de ler um pouco o Sotero, o Cândido de Figueiredo ou o Castro Lopes, e de ter passado mais uma vez a tintura nos cabelos, o velho mestre-escola saía vagarosamente de casa, muito abotoado no seu paletó de brim mineiro, e encaminhava-se para a botica do Bastos a dar dois dedos de prosa. Conversar é um modo de dizer, porque era Pelino avaro de palavras, limitando-se tão somente a ouvir. Quando, porém, dos lábios de alguém escapava a menor incorreção de linguagem, intervinha e emendava. "Eu asseguro, dizia o agente do correio, que... " Por aí o mestre-escola intervinha com mansuetude evangélica: "Não diga 'asseguro' Senhor Bernardes; em português é garanto."
E a conversa continuava depois da emenda, para ser de novo interrompida por uma outra. Por essas e outras, houve muitos palestradores que se afastaram, mas Pelino, indiferente, seguro dos seus deveres, continuava o seu apostolado de vernaculismo. A chegada do sábio veio distraí-lo um pouco da sua missão. Todo o seu esforço voltava-se agora para combater aquele rival, que surgia tão inopinadamente.
Foram vãs as suas palavras e a sua eloqüência: não só Raimundo Flamel pagava em dias as suas contas, como era generoso - pai da pobreza - e o farmacêutico vira numa revista de específicos seu nome citado como químico de valor.
II
Havia já anos que o químico vivia em Tubiacanga, quando, uma bela manhã, Bastos o viu entrar pela botica adentro. O prazer do farmacêutico foi imenso. O sábio não se dignara até aí visitar fosse quem fosse e, certo dia, quando o sacristão Orestes ousou penetrar em sua casa, pedindo-lhe uma esmola para a futura festa de Nossa Senhora da Conceição, foi com visível enfado que ele o recebeu e atendeu.
Vendo-o, Bastos saiu de detrás do balcão, correu a recebê-lo com a mais perfeita demonstração de quem sabia com quem tratava e foi quase em uma exclamação que disse:
- Doutor, seja bem-vindo.
O sábio pareceu não se surpreender nem com a demonstração de respeito do farmacêutico, nem com o tratamento universitário. Docemente, olhou um instante a armação cheia de medicamentos e respondeu:
- Desejava falar-lhe em particular, senhor Bastos.
O espanto do farmacêutico foi grande. Em que poderia ele ser útil ao homem, cujo nome corria mundo e de quem os jornais falavam com tão acendrado respeito? Seria dinheiro? Talvez... Um atraso no pagamento das rendas, quem sabe? E foi conduzindo o químico para o interior da casa, sob o olhar espantado do aprendiz que, por um momento, deixou a "mão" descansar no gral, onde macerava uma tisana qualquer.
Por fim, achou ao fundo, bem no fundo, o quartinho que lhe servia para exames médicos mais detidos ou para as pequenas operações, porque Bastos também operava. Sentaram-se e Flamel não tardou a expor:
- Como o senhor deve saber, dedico-me à química, tenho mesmo um nome respeitado no mundo sábio...
- Sei perfeitamente, doutor, mesmo tenho disso informado, aqui, aos meus amigos.
- Obrigado. Pois bem: fiz uma grande descoberta, extraordinária... Envergonhado com o seu entusiasmo, o sábio fez uma pausa e depois continuou:
- Uma descoberta... Mas não me convém, por ora, comunicar ao mundo sábio, compreende? - Perfeitamente.
- Por isso precisava de três pessoas conceituadas que fossem testemunhas de uma experiência dela e me dessem um atestado em forma, para resguardar a prioridade da minha invenção... O senhor sabe: há acontecimentos imprevistos e...
- Certamente! Não há dúvida!
- Imagine o senhor que se trata de fazer ouro...
- Como? O quê? fez Bastos, arregalando os olhos.
- Sim! Ouro! disse, com firmeza, Flamel.
- Como?
- O senhor saberá, disse o químico secamente. A questão do momento são as pessoas que devem assistir a experiência, não acha?
- Com certeza, é preciso que os seus direitos fiquem resguardados, porquanto...
- Uma delas, interrompeu o sábio, é o senhor; as outras duas, o Senhor Bastos fará o favor de indicar-me.
O boticário esteve um instante a pensar, passando em revista os seus conhecimentos e, ao fim de uns três minutos, perguntou:
- O Coronel Bentes lhe serve? Conhece?
- Não. O senhor sabe que não me dou com ninguém aqui.
- Posso garantir-lhe que é homem sério, rico e muito discreto.
- É religioso? Faço-lhe esta pergunta, acrescentou Flamel logo, porque temos que lidar com ossos de defunto e só estes servem...
- Qual! É quase ateu...
- Bem! Aceito. E o outro?
Bastos voltou a pensar e dessa vez demorou-se um pouco mais consultando a sua memória... Por fim, falou:
- Será o Tenente Carvalhais, o coletor, conhece?
- Como já lhe disse...
- É verdade. É um homem de confiança, sério, mas...
- Que é que tem?
- É maçom.
- Melhor.
- E quando é?
- Domingo. Domingo, os três irão lá em casa assistir a experiência e espero que não me recusarão as suas firmas para autenticar a minha descoberta.
- Está tratado.
Domingo, conforme prometeram, as três pessoas respeitáveis de Tubiacanga foram à casa de Flamel, e, dias depois, misteriosamente, ele desaparecia sem deixar vestígios ou explicação para o seu desaparecimento.
Tubiacanga era uma pequena cidade de três ou quatro mil habitantes, muito pacífica, em cuja estação, de onde em onde, os expressos davam a honra de parar. Há cinco anos não se registrava nela um furto ou roubo. As portas e janelas só eram usadas... porque o Rio as usava.
O único crime notado em seu pobre cadastro fora um assassinato por ocasião das eleições municipais; mas, atendendo que o assassino era do partido do governo, e a vítima da oposição, o acontecimento em nada alterou os hábitos da cidade, continuando ela a exportar o seu café e a mirar as suas casas baixas e acanhadas nas escassas águas do pequeno rio que a batizara.
Mas qual não foi a surpresa dos seus habitantes quando se veio a verificar nela um dos repugnantes crimes de que se tem memória! Não se tratava de um esquartejamento ou parricídio: não era o assassinato de uma família inteira ou um assalto à coletoria; era coisa pior, sacrílega aos olhos de todas as religiões e consciências: violavam-se as sepulturas do "Sossego", do seu cemitério, do seu campo-santo.
Em começo, o coveiro julgou que fossem cães, mas, revistando bem o muro, não encontrou senão pequenos buracos. Fechou-os; foi inútil. No dia seguinte, um jazigo perpétuo arrombado e os ossos saqueados; no outro, um carneiro e uma sepultura rasa. Era gente ou demônio. O coveiro não quis mais continuar as pesquisas por sua conta, foi ao subdelegado e a notícia espalhou-se pela cidade.
A indignação na cidade tomou todas as feições e todas as vontades. A religião da morte precede todas e certamente será a última a morrer nas consciências. Contra a profanação, clamaram os seis presbiterianos do lugar - os bíblicos, como lhes chama o povo; clamava o Agrimensol Nicolau, antigo cadete, e positivista do rito Teixeira Mendes; clamava o Major Camanho, presidente da Loja Nova Esperança; clamavam o turco Miguel Abudala, negociante de armarinho, e o cético Belmiro, antigo estudante, que vivia ao deus-dará, bebericando parati nas tavernas. A própria filha do engenheiro residente da estrada de ferro, que vivia desdenhando aquele lugarejo, sem notar sequer os suspiros dos apaixonados locais - sempre esperando que o expresso trouxesse um príncipe a desposá-la -, a linda e desdenhosa Cora não pôde deixar de compartilhar da indignação e do horror que tal ato provocara em todos do lugarejo. Que tinha ela com o túmulo de antigos escravos e humildes roceiros? Em que podia interessar aos seus lindos olhos pardos o destino de tão humildes ossos? Porventura o furto deles perturbaria o seu sonho de fazer radiar a beleza de sua boca, dos seus olhos e do seu busto nas calçadas do Rio?
Decerto, não; mas era a Morte, a Morte implacável e onipotente, de que ela também se sentia escrava, e que não deixaria um dia de levar a sua linda caveirinha para a paz eterna do cemitério. Aí Cora queria os seus ossos sossegados, quietos e comodamente descansando num caixão bem feito e num túmulo seguro, depois de ter sido a sua carne encanto e prazer dos vermes...
O mais indignado, porém, era Pelino. O professor deitara artigo de fundo, imprecando, bramindo, gritando: "Na história do crime, dizia ele, já bastante rica de fatos repugnantes, como sejam: o esquartejamento de Maria de Macedo, o estrangulamento dos irmãos Fuoco, não se registra um que o seja tanto como o saque às sepulturas do 'Sossego'."
E a vila vivia em sobressalto. Nas faces não se lia mais paz; os negócios estavam paralisados; os namoros suspensos. Dias e dias por sobre as casas pairavam nuvens negras e, à noite, todos ouviam ruídos, gemidos, barulhos sobrenaturais... Parecia que os mortos pediam vingança...
O saque, porém, continuava. Toda noite eram duas, três sepulturas abertas e esvaziadas de seu fúnebre conteúdo. Toda a população resolveu ir em massa guardar os ossos dos seus maiores. Foram cedo, mas, em breve, cedendo à fadiga e ao sono, retirou-se um, depois outro e, pela madrugada, já não havia nenhum vigilante. Ainda nesse dia o coveiro verificou que duas sepulturas tinham sido abertas e os ossos levados para destino misterioso.
Organizaram então uma guarda. Dez homens decididos juraram perante o delegado vigiar durante a noite a mansão dos mortos.
Nada houve de anormal na primeira noite, na segunda e na terceira; mas, na quarta, quando os vigias já se dispunham a cochilar, um deles julgou lobrigar um vulto esgueirando-se por entre a quadra dos carneiros. Correram e conseguiram apanhar dois dos vampiros. A raiva e a indignação, até aí sopitadas no ânimo deles, não se contiveram mais e deram tanta bordoada nos macabros ladrões, que os deixaram estendidos como mortos.
A notícia correu logo de casa em casa e, quando, de manhã, se tratou de estabelecer a identidade dos dois malfeitores, foi diante da população inteira que foram neles reconhecidos o Coletor Carvalhais e o Coronel Bentes, rico fazendeiro e presidente da Câmara. Este último ainda vivia e, a perguntas repetidas que lhe fizeram, pôde dizer que juntava os ossos para fazer ouro e o companheiro que fugira era o farmacêutico.
Houve espanto e houve esperanças. Como fazer ouro com ossos? Seria possível? Mas aquele homem rico, respeitado, como desceria ao papel de ladrão de mortos se a coisa não fosse verdade!
Se fosse possível fazer, se daqueles míseros despojos fúnebres se pudesse fazer alguns contos de réis, como não seria bom para todos eles!
O carteiro, cujo velho sonho era a formatura do filho, viu logo ali meios de conseguí-la. Castrioto, o escrivão do juiz de paz, que no ano passado conseguiu comprar uma casa, mas ainda não a pudera cercar, pensou no muro, que lhe devia proteger a horta e a criação. Pelos olhos do sitiante Marques, que andava desde anos atrapalhado para arranjar um pasto, pensou logo no prado verde do Costa, onde os seus bois engordariam e ganhariam forças...
Às necessidades de cada um, aqueles ossos que eram ouro viriam atender, satisfazer e felicitá-los; e aqueles dois ou três milhares de pessoas, homens, crianças, mulheres, moços e velhos, como se fossem uma só pessoa, correram à casa do farmacêutico.
A custo, o delegado pôde impedir que varejassem a botica e conseguir que ficassem na praça, à espera do homem que tinha o segredo de todo um Potosi. Ele não tardou a aparecer. Trepado a uma cadeira, tendo na mão uma pequena barra de ouro que reluzia ao forte sol da manhã, Bastos pediu graça, prometendo que ensinaria o segredo se lhe poupassem a vida. "Queremos já sabê-lo," gritaram. Ele então explicou que era preciso redigir a receita, indicar a marcha do processo, os reativos - trabalho longo que só poderia ser entregue impresso no dia seguinte. Houve um murmúrio, alguns chegaram a gritar, mas o subdelegado falou e responsabilizou-se pelo resultado.
Docilmente, com aquela doçura particular às multidões furiosas, cada qual se encaminhou para a casa, tendo na cabeça um único pensamento: arranjar imediatamente a maior porção de ossos de defunto que pudesse.
O sucesso chegou à casa do engenheiro residente da estrada de ferro. Ao jantar, não se falou em outra coisa. O doutor concatenou o que ainda sabia do seu curso, e afirmou que era impossível. Isto era alquimia, coisa morta: ouro é ouro, corpo simples, e osso é osso, um composto, fosfato de cal. Pensar que se podia fazer de uma coisa outra era "besteira". Cora aproveitou para rir-se petropolimente da crueldade daqueles botocudos; mas sua mãe, Dona Emília, tinha fé que a coisa era possível.
À noite, porém, o doutor percebendo que a mulher dormia, saltou a janela e correu em direitura ao cemitério; Cora, de pés nus, com as chinelas nas mãos, procurou a criada para irem juntas à colheita de ossos. Não a encontrou, foi sozinha; e Dona Emília, vendo-se só, adivinhou o passeio e lá foi também. E assim aconteceu na cidade inteira. O pai, sem dizer ao filho, saía; a mulher, julgando enganar o marido, saía; os filhos, as filhas, os criados - toda a população, sob a luz das estrelas assombradas, correu ao satânico rendez-vous no "Sossego". E ninguém faltou. O mais rico e o mais pobre lá estavam. Era o turco Manoel, era o professor Pelino, o Doutor Jerônimo, o Major Camanho, Cora, a linda e deslumbrante Cora, com seus dedos de alabastro, revolvia a sânie das sepulturas, arrancava as carnes, ainda podres agarradas tenazmente aos ossos e deles enchia o seu regaço até ali inútil. Era o dote que colhia e as suas narinas, que se abriam em asas rosadas e quase transparentes, não sentiam o fétido dos tecidos apodrecidos em lama fedorenta...
A desinteligência não tardou a surgir; os mortos eram poucos e não bastavam para satisfazer a fome dos vivos. Houve facadas, tiros, cachações. Pelino esfaqueou o turco por causa de um fêmur e mesmo entre famílias questões surgiram. Unicamente, o carteiro e o filho não brigaram. Andaram juntos e de acordo e houve uma vez que o pequeno, uma esperta criança de onze anos, até aconselhou o pai: "Papai vamos aonde está mamãe; ela era tão gorda..."
De manhã, o cemitério tinha mais mortos do que aqueles que recebera em trinta anos de existência. Uma única pessoa lá não estivera, não matara nem profanara sepulturas: fora o bêbado Belmiro.
Entrando assim numa venda, meio aberta, e nela não encontrando ninguém, enchera uma garrafa de parati e se deixara ficar a beber sentado na margem do Tubiacanga, vendo escorrer mansamente as suas águas sobre o áspero leito de granito - ambos, ele e o rio, indiferentes ao que já viram, mesmo à fuga do farmacêutico, com seu Potosi e o seu segredo, sob o dossel eterno das estrelas.(OS CEM MELHORES CONTOS BRASILEIROS DO SÉCULO)
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sábado, 18 de fevereiro de 2012
Hell's angels Márcia Denser
Os olhos têm aquela expressão vazada de maldade inocente, de suprema condescendência, como dos ídolos talhados em ouro e prata à luz das tochas, indiferentes às cerimônias e ao borbulhar das paixões e sacrifícios humanos; a macia pele do rosto de dezenove anos incompletos transparece e crepita, mas não se deixa tocar e, se o faz, o seu tato é de borracha ou vinil, porque os jovens de dezenove anos incompletos são pequenas monstruosidades portadoras do aleijão psíquico, faltando pedaços como um ombro para se chorar, um olhar atento, o gesto brusco no vácuo do antebraço consolador; os lábios congelados na frase de Peter Pan "eu sou a juventude eterna!”, a mão perpetuamente brandindo a estocada final na passagem do tempo. Um adolescente é sempre monstruoso porque desumano, assim como um deus, assim como um anjo, assim como você, Robi.
Eu o conheci precisamente no dia que completava trinta anos, dirigindo amargurada meu automóvel para o analista. Pensava: o Superman também tem trinta anos — mas o fato é que ele não existe, eu sim, e muito passageiramente, pelo visto. Fisgava-me freqüentemente refletindo sobre a minha transitoriedade e a imutabilidade da natureza. Esse mesmo céu, esse mesmo crepúsculo, essa mesma intensidade de tons avermelhados e laranja que contemplei aos quinze anos, estão agora testemunhando meus trinta, inalterados, imperturbáveis, tão odiosamente imutáveis, mas, se ter consciência disso é o preço da mortalidade, eu prefiro pagá-lo a permanecer nesse estado bestialício de eternidade inanimada como as areias, os corvos, o crepúsculo, as montanhas e o mais.
O que não deixa de ser putamente injusto, prosseguia pensando, quando o ronco de uma motocicleta ao lado do automóvel sobrepujou a música em FM como também os pensamentos acima descritos, além de todo o resto, o que acabou por irritar-me. Havia esquecido que deixara o vestido levantar exibindo as coxas, daí Robi, o motoqueiro, aparecer na minha janela, caninos pingando sangue.
Por segundos, foi como se estivesse me vendo lá fora, do outro lado da juventude, há dez, doze anos atrás, o sorriso entre tímido e malicioso, olhos irrequietos, inseguros, lábios naturalmente úmidos, cabelos emaranhados e elétricos como filamentos de cobre molhado e, Deus meu, que beleza!
Quando desviei o rosto tinha envelhecido o suficiente a ponto de fixar os olhos embaçados nos ponteiros luminosos mas, empurrando a dor para baixo, sete palmos no inconsciente, senti só irritação pela intromissão do rapazinho que perturbava meus pensamentos, minha solidão, minha maturidade, espiando, sem mais nem menos, para dentro do carro, com a mesma sem cerimônia que um bebê, escondido debaixo da mesa, espiaria as calcinhas das senhoras.
Devo acrescentar que, dentro de um automóvel, sinto-me tão absolutamente só e segura como no ventre materno e, além do mais, não havia notado as coxas. A bem da verdade, fiz tudo para livrar-me dele, mas o destino conspirou:
Destino I: Motoca seguiu-me até vaga da zona azul e, após observar divertido cerca de dezoito manobras humilhantes e mal sucedidas, ofereceu-se para estacionar o automóvel de madame:
Destino II: Acertou na primeira (não que fosse muito bom, ruim sou eu, especialmente se observada por crianças. Elas me põem nervosa).
Destino III: Obrigada / Você tem telefone? / Não me importa nem um pouco deixar que os homens fa . . . / Estou sem lápis / Mas quantos anos você tem? / Oitenta e cinco. Tem caneta? / Não saberia exatamente o que fazer com você / (Risinho pilantra, procura pedaço de papel na carteira) / 62-3145. Tchau, tenho hora no médico / Médico? / Analista / Pra quê o psiquiatra, garota? / Analista / É. Analista / Demora pra explicar / Eu telefono / Então telefona / Meu nome é Robi / Wood? / O quê? / O meu é Diana. Tchau.
O tempo fluiu (como sempre) . Passaram-se duas semanas. Não paro em casa, mas o garoto tinha um faro diabólico. Sempre me pegava nos intervalos da muda de roupa, banho, jantar e outra escapada. Enquanto isso eu: a) estava sendo perseguida por um cineasta maldito; b) batia cartas comerciais; c) fazia um tratamento dentário intensivo; d) chateava-me com os amigos no bar; e) ou seja, merdava.
Certa tarde, final de expediente no escritório, eis Robi que surge ao lado da minha escrivaninha: vamos sair? Caninos pingando sangue. Sem saber como, ele vencera as estruturas de aço da burocracia e, munido de crachás, credenciais de apoio e um sorriso tentador, me apanhara sobre uma IBM, dois diretores afoitos e quarenta e cinco atentos funcionários entrincheirados na vastidão do expediente. Como se eu não tivesse coisa melhor a fazer no mundo que sair com ele. E não mesmo. Para mim a situação se afiguraria esmagadora, mas Robi era um caçador nato. De toda uma vasta multidão de admiradores, ele se destacara surpreendendo-me na minha própria cidadela. Ele, Robi, o motoqueiro. Era incrível.
— Sente-se, sorri divertida, já termino essa carta. Mas meus dedos tremiam. Cruzar ou não as pernas? Dirigir-me como agora ao meu ? e se ele dirigir-se à mim? Teria forças psicológicas para proceder aos processos e pareceres? Então era assim que eu sobrevivia? Aquele garoto de jeans, blusão de couro e botas de montaria, sentado displicente numa das poltronas da sala de espera, transformara-se no meu inquisidor, meu juiz de alçada, meu anjo vermelho, Lúcifer, o decaído, piscando de sua torre flamejante, reduzindo a cinzas e ao ridículo aquele santuário simétrico da burocracia. E não tinha consciência disso. Tanto melhor. Consciência tenho eu, por isso as coisas dão no que dão. Ficam mal paradas. A evidente oposição do garoto ao ambiente produzia-se como um fenômeno natural. Bastaria que ele (ou nós) acordássemos para que o encanto fosse desfeito. E as oposições são tão tentadoras , tão novela das oito, que eu já andava ansiando por uma paixão lamacenta. Na verdade, estava me atirando dentro dela. Com maiô executivo e tudo.
Saímos. No meu carro porque a moto estava quebrada. A princípio eu o fitava como se estivesse observando um formigueiro: com .curiosidade cientifica, ócio e nenhuma emoção. Puro divertimento. Dentes um tanto amarelados (feitos de doce de leite, desses com vaquinha no rótulo); olhos que jamais se fixavam no interlocutor, uma aflição mal disfarçada pelo paradeiro que dar às mãos, o crânio ligeiramente achatado, mas ao contrário do achatamento produzido pelo fórceps, bebê Robi parecia ter sido retirado da mamãe com uma forminha de tostex, Deus me perdoe, mas era só um defeitinho à toa; um belo nariz e um bom corte de cabelo, em camadas. Como James Dean, comparei mentalmente. Mas só mentalmente, não verbalizaria a comparação. Talvez ele não conhecesse James Dean. Talvez me achasse velha demais ao compará-lo a alguém antigo como James Dean. Imagino o que pensaria se exumasse coisas como George Raft ou Johnny Weismüller, tango, Tarzã, bolero e Gilda!
Mudando um pouco de assunto, estávamos num bar. Eu bebia vodca com suco de laranja, ele coca-cola. O problema não era propriamente a bebida, mas sim a falta de grana, explicou. A gente acostuma a não beber e também não fumar, vive-se de hamburgers e chiclete, é isso. Classe média alta paulistana, Robi estudava bastante, o colégio era um bocado puxado, tinha papai, mamãe, uma governanta romena (babá, neném) e só pensava em duas coisas: garotas e moto. E isso quer dizer que não pensava. Devaneava. Flutuava. Flanava. Fluía. Ele simplesmente existia! A frase de Nelson Rodrigues "toda mulher devia amar um menino de 17 anos" furou-me o ventre e atingiu em cheio o, digamos, coração. Depois havia lido numa revista feminina que o homem atinge sua potência máxima dos 13 aos 22 anos. Robi, com 19, estava na faixa. Ótimo. O problema nessa idade é que se pensa tanto em sexo que na hora de fazer quedamo-nos psicologicamente impotentes, em pânico. A realidade é tão besta comparada à fantasia, àquele ser esplendido que julgamos ser. Dos 13 aos 22 anos fazemos portanto muita ginástica. Física e mental. Mas nunca em sincronia, eis a questão. Nunca estamos onde devíamos estar, nunca estamos em parte alguma. A eterna dicotomia corpo e alma. E falando em dicotomia, a razão dos meus devaneios, no momento, fazia observações, aliás muito interessantes, sobre a sua (dele) conceituação de bem e mal. Para ele não existia. Porque, veja, garota, o que é legal pra mim pode não ser pra você, tudo é relativo, aquele mendigo fodido ali na esquina pode estar muito mais numa boa que nós aqui bebendo, meu pai se acha muito certo quando dá esmolas ou vai à porcaria duma missa, mas o mendigo pega à grana e vai comprar cachaça e o padre vai gastar o dinheiro nas corridas de cavalo e todo mundo então fica muito feliz pensando estar certo, era só não pensar ,porra nenhuma ou até cometer um crime que ia ter um sujeito feliz, sei lá, vai que o cadáver tivesse inimigos ou você própria morresse de tesão por sangue, tudo é um jogo, garota, o cara dança se não souber jogar; quer dizer, dança como meu pai, puta babaca, ou o padre viciado ou o mendigo da esquina... Menos você, Robi, pensei, julgando-os todos. Arquivando-os, classificando-os para poder controlá-los, dominá-los senão você se perde na floresta e começa a chorar de medo, neném. Fazendo voltar o filme do tempo, vi-me a mim própria dizendo aquelas s coisas. Com aquele mesmo ar de rarefeito desprezo: Mas, o coração é um. caçador solitário, sentenciei emocionada, Carson MacCullers tinha razão, e Flanery 0'Connor e todas essas irlandesas e irlandeses passionais, e até Faulkner, Scott Fitzgerald, inclusive você Robi, que nada sabe de nada, também com seu tacape envenenado.
Estávamos na época do Natal. Natal de 1976, amaldiçoado Natal fodido, mais precisamente no dia 22 de dezembro, sexta-feira, e Robi ,tinha um problema: a irmãzinha de quatro anos, faltava comprar o presente dela. Ele descobrira que Gugui (Maria Augusta) lhe daria umas luvas bacanérrimas de moto, tinham custado uma grana, garotinha genial a Gugui, ele precisava retribuir, saca? Não sabia com quê.
Uma boneca, sugeri irrefletidamente. Ele fez cara de "não dá pra inventar um presente mais criativo?" Fosse então por isso, comecei a defender veementemente a idéia: porque uma boneca voltou a ser um presente criativo, porque é o sonho de toda garotinha, porque hoje em dia tem bonecas geniais, porque era um presente que a Gugui não esqueceria, porque eu ajudaria a escolher e porque e porque. E perguntei quanto ele tinha porque, além de tudo, uma boneca custa uma nota preta. Robi espiou a carteira: uma quina e dois duques. Setecentos, somei e traduzi mentalmente, deve dar.
Mas a tal boneca custou. duas quinas que eu tive de ajudar a pagar. Enquanto ele pegava o dinheiro, meio sem jeito, eu argumentava:
- Fica como um presente meu para a Gugui. Sem ela saber, claro. Papai Noel é invisível. E depois, até que eu gostaria de ter uma irmãzinha só para dar um presente como esse...
Ele me olhou como quem diz "não faz média. Paga e pronto". O.K. Robi; neném, vou ser clara. Para falar a verdade não ligo a mínima pra dinheiro, mas esta noite eu acho que tenho de suborná-lo. A você e à sua juventude. Pensava tudo isso enquanto ele guiava sem destino (a boneca no banco de trás), perdidos no trânsito pesado daquela cidade cheia de luzes, vozes arranhando alto-falantes, sinos transistorizados de Belém, reflexos dourados, homens sanduíche, lixo, gritos de crianças ensandecidas pela Noite Feliz.
E agora? O olhar dele desceu agudo, filhote de falcão da campina, sobre minhas pernas cruzadas. Senti-me desconfortável. Sugeri comermos. Ele disse está bem e eu olhei bem firme para frente. Não queria ver aqueles olhos, não queria ver aquele rosto, não queria ver aquela expressão especialmente perversa, infantilmente perversa, não queria me sentir velha demais, o outro lado do espelho desse rosto cuja expressão também já fora minha, e sabia, que ele pressentia haver algo errado comigo, essa minha pretensa segurança, pretensa maturidade, um vago movimento de mendicância, e que, por exemplo, nem ao menos eu gostava de mim, senão não prosseguiria por tempos imemoriais caçando aves implumes na orla do pântano. Se não estivesse ferida, estaria voando.
Fomos a uma cantina italiana. Ou melhor, eu o levei a uma cantina italiana. Garçons amigos, contas penduradas, etc. A luz avermelhada das velas incidindo sobre o xadrez vermelhinho das toalhas e lambendo-lhe o rosto, Robi ficava com uma expressão solene, de coroinha. Mas não era bem assim, principezinho do ritual de iniciação. Ajeitei-me na cadeira, pedi mais vinho, segurei sua mão debaixo da mesa (ele não admitia demonstrações em público), apalpei suas pernas musculosas debaixo do grosso índigo blue, pedi-lhe para afastar as coxas, mergulhei a mão com segurança, fechei os olhos e pensei: Meu Deus. Retirei a mão, voltei ao vinho. Robi continuava sério, olhando além da janela, além dos queijos, dos salames, dos presuntos que oscilavam sobre sua cabeça. Como quem acompanha o vôo de uma mosca, foi descendo a vista e perguntou o que está olhando? Eu disse nada / me deixa encabulado / porque? / fica me olhando assim / assim como? — mordi os lábios, não confessar nunca! Nada. Não quer mais vinho? Estendeu o copo, enchi, sorrimos. Não gostaria de ir para outro lugar? Os olhos negros baixos no prato foram levantando lentamente, emergindo da sombra com macia ironia, mas o foco não subiu além dos meus lábios. bem. Apague a vela, neném.
Sensivelmente alterada, informei-lhe que guiaria o automóvel. Não disse nada. Sentou ao meu lado num silêncio noturno de animal confiante. As ruas que percorremos estão na minha lembrança como um longo corredor recheado de espessa nebulosa cinza-chumbo varrida por vento escuro. De esquina em esquina, clarões e colares de luzes assaltavam a mente enevoada, mas, nem por isso, desviei-me do trajeto impresso em meu cérebro como uma fita gravada, alheia ao álcool, aos impulsos, à minha dor.
Bati a porta do carro. Robi, do outro lado, hesitava, olhando o pacote, retângulo negro de estrelinhas prateadas sobre o banco traseiro. É só uma boneca, ninguém vai roubar, ela tem destinatário. Encarou-me magoado — "é só uma boneca" — mas eu já não estava pensando nisso.
0 quarto tinha um espelho redondo sobre a cama, e foi nele que eu e Robi nos vimos pela primeira vez. Aparentemente não havia nenhuma diferença: uma mulher de estatura média, cabelos castanhos sobre os ombros, rosto oval e pálido. Um homem, também de estatura mediana , cabelos, etc. Nada. Nenhum indício do buraco negro, o corte no tempo. Robi respirou fundo e agarrou-me por trás, grudando-se ao longo do corpo. Eu disse calma e ele me jogou no colchão como uma bola de pingue pongue. Oscilei umas duas vezes, o colchão gemeu dolorosamente. Deitou sobre mim, tentando desabotoar-me. Está perdendo tempo, eu disse levantando e me despindo. Cabeça pousada nas mãos, Robi sorria, preparando-se para assistir. Muito esperto. Despi-me rapidamente e fiquei olhando bem na cara dele. Pronto, eu disse, agora você. Desviou o rosto, sem graça. Com a mão esquerda foi tirando o blusão, a direita apagou a luz do teto, permanecendo apenas o foco avermelhado do abajur. Estava deitada, fumando, quando sua massa rija desabou sobre mim. Procurei seus lábios mas ele disse não, estou resfriado. Então. esperei. Você gosta assim? perguntou ajeitando-me de bruços. Abraçava-me com palmas e dedos gelados, comprimindo minhas costelas, machucando-as, em vez de acariciá-las. A coisa funciona só da cintura para baixo, como um vibrador elétrico, mas é bom, pensei, deixando-me penetrar rijamente pelas costas, usando, por assim dizer, só uma parte do meu corpo, como se o resto estivesse paralisado, ou morto, como se aqui ninguém suportasse um dramático relacionamento frontal, com beijos, orifícios, acidentes e cicatrizes, com um rosto, um nome, uma biografia. 0 prazer é bom, pensei, costuma ser forte, mesmo assim... Espiei Robi e seu desempenho: cabelos grudados na testa molhada, uma das sobrancelhas arqueadas de perversidade, lábios entreabertos para respirar, braços esticados, mantendo-me firmemente afastada de seu corpo para ver melhor. 0 que me chateia é esse distanciamento crítico, parece estar consertando a moto — essa máquina de prazer — está olhando a coisa funcionar, como seu próprio coração a bater fora do corpo, as engrenagens da máquina molhadas de suor e gosma orgânica, mais lento, mais acelerado, mais lento, agora rápido, acelere, mais rápido, mais rápido. Pronto. Terminou. Ouvi Robi ofegar. Continuei de costas. Estendi o braço e peguei um cigarro. A respiração agora era regular, pesada. Virei-me para olhá-lo: havia algo de comovedor — sempre há algo de comovedor — num jovem adormecido. Ficam tão desamparados. Braços estirados de sonâmbulo (os mesmos que me empurravam, potentes, há quinze minutos), mãos como dois pássaros gêmeos, aninhados, desvalidos, o sexo recolhido no meio das pernas, envolto em espumas de marés mortas, os músculos faciais desabados, descompostos, oferecendo-se e negando-se ao mesmo tempo, supremamente, a qualquer contato humano, fosse um soco ou um beijo, esse rosto inumano das crianças e dos deuses, esse destruidor florido por sobre quem paira agora essa atmosfera verde de piscina lunar salgada, esse vapor ardente e mortal, bafo primordial de mundos e canteiros de estrelas, de sentimentos em estado gasoso, sóis e planetas.
Bem, pensei, é tarde. Vesti-me rapidamente, em silêncio. Fechei a porta sem ruído. Desci. O saguão deserto. Ao entrar no automóvel ,vi o pacote no banco de trás. Essa agora, pensei. Carreguei essa boneca tempo demais, as juntas dos dedos me doem, o barbante áspero imprimiu marcas profundas, roxas, em cruz, nas palmas feridas, o seu peso é insuportável. Reunindo minhas últimas forças, consegui tirá-la do carro e levá-la até a portaria do hotel. Um empregado sonolento atendeu-me:
— É para o rapaz do 35. Acorde-o às seis e quarenta e entregue o presente. Com votos de Feliz Natal, pensei. Virei as costas e saí.
Guiando de volta para casa, eu me intrigava porque havia mandado o sujeito acordá-lo às seis a quarenta, porque especificamente seis e quarenta? Anoto mentalmente: perguntar ao analista.(Os 100 Melhores Contos Brasileiros do Século)
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