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sábado, 26 de agosto de 2017
segunda-feira, 8 de outubro de 2012
O peixe de ouro Haroldo Maranhão
De borracha é a cintura do peixe de ouro, uma curva infinita
cavada na
carne. E são deletéreas as pernas do peixe de ouro, que se
locomove
como se fosse o corpo acionado por molas. O andar é elástico,
o andar do
peixe de ouro, e balança a cabeleira cor de charuto no dorso
lisíssimo, tapando
a nuca. Não vejo a cara do peixe de ouro, sigo-lhe os
passos, vejo-lhe as ancas,
de potranca, a roupa é rubra, a carne, de ouro, a carne do
peixe de ouro. De repente o peixe inclina a cabeça e percebo, não há quem não
perceba, um perfil de penugens que o sol divulga, nítido. Segue o peixe, segue,
todo um rio o segue, rio de bichos, somos todos bichos, mordemos com vigor o músculo
das ancas, arrancamos pedaços da anca, da melhor anca, da melhor.
Guardo no meu casaco o nobre fragmento da anca do peixe de
ouro, e quero
ao menos um fio, um fio ao menos dos cabelos, mas já a
cabeleira foi roubada
à força, quando voava descobrindo o pescoço. Cravo meus
dentes na nuca
do peixe de ouro e bebo-lhe um mel, sugo aflito, como a uma
fruta, meus
lábios ficam encharcados, escorre o mel, caem gotas na
pedra, minha camisa
ensopa-se de baba e mel, um mel raro. Desoladamente constato
que trepida
a epiderme desgarrada de seu recheio, em mantas, fiava pele
há pouco
distendida em curvas, ora couro plissado, de gelhas. Peixe
de ouro perde aos
poucos seu revestimento muscular, sangra, ossos despontam,
interligados por
tendões, cartilagens, restos de carne. Com enorme rudez puxo
um nervo
longo e de bom calibre para encordoar determinada viola d’amore.
Desloco,
e com delicadeza removo uma vértebra do peixe, como quem se
serve de um
doce, sorvo o creme vertebral e trituro a fina peça mal
calcificada. A meu
lado, alguém empunha uma das tíbias como dava, e é milagre a
sobrevida
do peixe de ouro, que não obstante prossegue sustentado não
sei por que
espécie de fundamento. Poucos ossos, quase nenhum, raros
tendões, nenhuma
carne. Agarro para mim a fossa ilíaca; luto por ela, ela
me dilacera as mãos, mas é minha, conquistei-a, será o prato real onde comerei.
Sigo, seguimos, impulsionados pelo mero costume, pois a unidade se partiu em blocos,
o que era peixe não é, senão partículas, pó, aura, microtalco, microtalco de
ouro.
quarta-feira, 26 de setembro de 2012
Tangerine-Girl Rachel de Queiroz
De princípio a interessou o nome da aeronave: não “zepelim”
nem
dirigível, ou qualquer outra coisa antiquada; o grande fuso
de metal
brilhante chamava-se modernissimamente blimp. Pequeno como
um brinquedo,
independente, amável. A algumas centenas de metros da sua
casa
ficava a base aérea dos soldados americanos e o poste de
amarração dos
dirigíveis. E de vez em quando eles deixavam o poste e
davam uma volta,
como pássaros mansos que abandonassem o poleiro num ensaio
de vôo.
Assim, de começo, aos olhos da menina, o blimp existia
como uma coisa em
si - como um animal de vida própria; fascinava-a como
prodígio mecânico que era, e principalmente ela o achava lindo, todo feito de
prata, igual a uma
jóia, librando-se majestosamente pouco abaixo das nuvens.
Tinha coisas de
ídolo, evocava-lhe um pouco o gênio escravo de Aladim. Não
pensara nunca
em entrar nele; não pensara sequer que pudesse alguém
andar dentro dele.
Ninguém pensa em cavalgar uma águia, nadar nas costas de
um golfinho; e,
no entanto, o olhar fascinado acompanha tanto quanto pode
águia e
golfinho, numa admiração gratuita - pois parece que é
mesmo uma das
virtudes da beleza essa renúncia de nós próprios que nos
impõe, em troca de
sua contemplação pura e simples.
Os olhos da menina prendiam-se, portanto, ao blimp sem
nenhum
desejo particular, sem a sombra de uma reivindicação.
Verdade que via lá
dentro umas cabecinhas espiando, mas tão minúsculas que
não davam
impressão de realidade - faziam parte da pintura, eram
elemento
decorativo,
obrigatório como as grandes letras negras U S. Navy
gravadas no bojo
de prata. Ou talvez lembrassem aqueles perfis recortados
em folha que fazem
de chofer nos automóveis de brinquedo.
O seu primeiro contato com a tripulação do dirigível começou
de maneira
puramente ocasional. Acabara o café da manhã; a menina
tirara a mesa e fora
à porta que dá para o laranjal, sacudir da toalha as migalhas
de pão. Lá de cima
um tripulante avistou aquele pano branco tremulando entre as
árvores espalhadas
e a areia, e o seu coração solitário comoveu-se. Vivia
naquela base como um frade
no seu convento - sozinho entre soldados e exortações
patrióticas. E ali
estava, juntinho ao oitão da casa de telhado vermelho, sacudindo um
pano entre a
mancha verde das laranjeiras, uma mocinha de cabelo ruivo. O
marinheiro
agitou-se todo com aquele adeus. Várias vezes já sobrevoara
aquela casa, vira
gente embaixo entrando e saindo; e pensara quão distantes uns dos
outros vivem os
homens, quão indiferentes passam entre si, cada um trancado
na sua vida. Ele
estava voando por cima das pessoas, vendo-as, espiando-as,
e, se algumas
erguiam os olhos, nenhuma pensava no navegador que ia dentro;
queriam só ver a beleza
prateada vagando pelo céu.
Mas agora aquela menina tinha para ele um pensamento,
agitava no ar um pano, como uma bandeira; decerto era bonita - o sol lhe
tirava fulgurações de fogo do cabelo, e a silhueta esguia se
recortava claramente no fundo verde-e-areia. Seu coração atirou-se para a menina
num grande
impulso agradecido; debruçou-se à janela, agitou os
braços, gritou: “Amigo!, amigo!”- embora soubesse que o vento, a distância, o ruído
do motor não deixariam ouvir-se nada. Ficou incerto se ela lhe vira os
gestos e quis lhe corresponder de modo mais tangível. Gostaria de lhe atirar
uma flor, uma
oferenda. Mas que podia haver dentro de um dirigível da
Marinha que servisse para ser oferecido a uma pequena? O objeto mais
delicado que encontrou foi uma grande caneca de louça branca, pesada
como uma bala de canhão, na qual em breve lhe iriam servir o café. E foi
aquela caneca que o navegante atirou; atirou, não: deixou cair a uma
distância prudente da figurinha iluminada, lá embaixo; deixou-a cair num gesto
delicado, procurando abrandar a força da gravidade, a fim de que o objeto não
chegasse sibilante como um projétil, mas suavemente, como uma
dádiva.
A menina que sacudia a toalha erguera realmente os olhos
ao ouvir o motor do blimp. Viu os braços do rapaz se agitarem lá em
cima. Depois viu aquela coisa branca fender o ar e cair na areia; teve um
susto, pensou numa brincadeira de mau gosto - uma pilhéria rude de soldado
estrangeiro. Mas quando viu a caneca branca pousada no chão, intacta, teve
uma confusa intuição do impulso que a mandara; apanhou-a, leu gravadas
no fundo as mesmas letras que havia no corpo do dirigível: U S. Navy.
Enquanto isso,
o blimp, em lugar de ir para longe, dava mais uma volta
lenta sobre a casa e o pomar. Então a mocinha tornou a erguer os olhos e,
deliberadamente dessa vez, acenou com a toalha, sorrindo e agitando a cabeça. O
blimp fez mais duas voltas e lentamente se afastou - e a menina teve a
impressão de que
ele levava saudades. Lá de cima, o tripulante pensava
também - não em saudades, que ele não sabia português, mas em qualquer
coisa pungente e doce, porque, apesar de não falar nossa língua, soldado
americano também tem coração.
Foi assim que se estabeleceu aquele rito matinal.
Diariamente passava o blimp e diariamente a menina o esperava; não mais levou
a toalha branca, e às vezes nem sequer agitava os braços: deixava-se estar
imóvel, mancha clara na terra banhada de sol. Era uma espécie de namoro de
gavião com gazela: ele, fero soldado cortando os ares; ela, pequena, medrosa,
lá embaixo, vendo-o passar com os olhos fascinados. Já agora, os
presentes, trazidos de propósito da base, não eram mais a grosseira caneca improvisada;
caíam do
céu números da Life e da Time, um gorro de marinheiro e,
certo dia, o tripulante tirou do bolso o seu lenço de seda vegetal
perfumado com essência sintética de violetas. O lenço abriu-se no ar e veio
voando como um papagaio de papel; ficou preso afinal nos ramos de um cajueiro, e
muito trabalho
custou à pequena arrancá-lo de lá com a vara de apanhar
cajus; assim mesmo
ainda o rasgou um pouco, bem no meio.
Mas de todos os presentes o que mais lhe agradava era ainda
o primeiro: a
pesada caneca de pó de pedra. Pusera-a no seu quarto, em
cima da banca de
escrever. A princípio cuidara em usá-la na mesa, às
refeições, mas se arreceou da
zombaria dos irmãos. Ficou guardando nela os lápis e
canetas. Um dia teve idéia
melhor e a caneca de louça passou a servir de vaso de
flores. Um galho de manacá,
um bogari, um jasmim-do-cabo, uma rosa-menina, pois no
jardim rústico da
casa de campo não havia rosas importantes nem flores
caras.
Pôs-se a estudar com mais afinco o seu livro de conversação
inglesa;
quando ia ao cinema, prestava uma atenção intensa aos
diálogos, a fim de
lhes apanhar não só o sentido, mas a pronúncia. Emprestava
ao seu marinheiro
as figuras de todos os galãs que via na tela, e
sucessivamente ele era
Clark
Gable, Robert Taylotõu Cary Grant. Ou era louro feito um mocinho
que morria numa batalha naval do Pacífico, cujo nome a
fita não dava;
chegava até a ser, às vezes, careteiro e risonho como Red
Skelton. Porque ela
era um pouco míope, mal o vislumbrava, olhando-o do chão:
via um recorte
de cabeça, uns braços se agitando; e, conforme a direção
dos raios do sol,
parecia-lhe que ele tinha o cabelo louro ou escuro.
Não lhe ocorria que não pudesse ser sempre o mesmo
marinheiro. E, na
verdade, os tripulantes se revezariam diariamente: uns
ficavam de folga e iam
passear na cidade com as pequenas que por lá arranjavam;
outros iam embora
de vez para a África, para a Itália. No posto de dirigíveis
criava-se aquela
tradição da menina do laranjal. Os marinheiros puseram-lhe o
apelido de
“Tangerine-Girl”. Talvez por causa do filme de Dorothy
Lamour, pois
Dorothy Lamour é, para todas as forças armadas
norte-americanas, o modelo
do que devem ser as moças morenas da América do Sul e das
ilhas do Pacífico.
Talvez porque ela os esperava sempre entre as laranjeiras. E
talvez porque o
cabelo ruivo da pequena, quando brilhava à luz da manhã,
tinha um brilho
acobreado de tangerina madura. Um a um, sucessivamente,
como um bem de todos, partilhavam eles o namoro com a garota Tangerine. O
piloto da aeronave dava voltas, obediente, voando o mais baixo que
lhe permitiam os regulamentos, enquanto o outro, da janelinha, olhava e
dava adeus.
Não sei por que custou tanto a ocorrer aos rapazes a idéia
de atirar um
bilhete. Talvez pensassem que ela não os entenderia. Já
fazia mais de um mês
que sobrevoavam a casa, quando afinal o primeiro bilhete
caiu; fora escrito
sobre uma cara rosada de rapariga na capa de uma revista:
laboriosamente,
em letras de imprensa, com os rudimentos de português que
haviam
aprendido da boca das pequenas, na cidade: “Dear
Tangerine-Girl. Please
você vem hoje (today) base X. Dancing, show. Oito horas
P.M.” E no outro
ângulo da revista, em enormes letras, o “Amigo”, que é a
palavra de passe
dos americanos entre nós.
A pequena não atinou bem com aquele “Tangerine-Girl”.
Seria ela?
Sim, decerto... e aceitou o apelido, como uma lisonja.
Depois pensou que
as duas letras, do fim: “P.M.”, seriam uma assinatura.
Peter, Paul, ou Patsy,
como o ajudante de Nick Carter? Mas uma lembrança de
estudo lhe ocorreu:
consultou as páginas finais do dicionário, que tratam de
abreviaturas, e
verificou, levemente decepcionada, que aquelas letras
queriam dizer “a hora
depois do meio-dia”.
Não pudera acenar uma resposta porque só vira o bilhete ao
abrir a
revista, depois que o blimp se afastou. E estimou que
assim o fosse: sentia-se
tremendamente assustada e tímida ante aquela primeira
aproximação com o
seu aeronauta. Hoje veria se ele era alto e belo, louro ou
moreno. Pensou em
se esconder por trás das colunas do portão, para o ver
chegar - e não lhe
falar nada. Ou talvez tivesse coragem maior e desse a ele
a sua mão; juntos
caminhariam até a base, depois dançariam um fox langoroso,
ele lhe faria ao
ouvido declarações de amor em inglês, encostando a face
queimada de sol
ao seu cabelo. Não pensou se o pessoal de casa lhe
deixaria aceitar o convite.
Tudo se ia passando como num sonho - e como num sonho se
resolveria,
sem lutas nem empecilhos.
Muito antes do escurecer, já estava penteada, vestida. Seu
coração batia,
batia inseguro, a cabeça doía um pouco, o rosto estava em
brasas. Resolveu
não mostrar o convite a ninguém; não iria ao show; não
dançaria, conversaria
um pouco com ele no portão. Ensaiava frases em inglês e
preparava o ouvido
para as doces palavras na língua estranha. às sete horas
ligou o rádio e ficou
escutando languidamente o programa de swings. Um irmão
passou, fez troça
do vestido bonito, naquela hora, e ela nem o ouviu. Às
sete e meia já estava
na varanda, com o olho no portão e na estrada. Às dez para
as oito, noite
fechada já há muito, acendeu a pequena lâmpada que
alumiava o portão e
saiu para o jardim. E às oito em ponto ouviu risadas e
tropel de passos na
estrada, aproximando-se.
Com um recuo assustado verificou que não vinha apenas o
seu marinheiro
enamorado, mas um bando ruidoso deles. Viu-os
aproximarem-se,
trêmula. Eles a avistaram, cercaram o portão - até parecia
manobra militar
-‘ tiraram os gorros e foram se apresentando numa
algazarra jovial.
E, de repente, mal lhes foi ouvindo os nomes, correndo os
olhos pelas
caras imberbes, pelo sorriso esportivo e juvenil dos
rapazes, fitando-os de um
em um, procurando entre eles o seu príncipe sonhado - ela
compreendeu
tudo. Não existia o seu marinheiro apaixonado - nunca fora
ele mais do
que um mito do seu coração. Jamais houvera um único,
jamais “ele” fora o
mesmo. Talvez nem sequer o próprio blimp fosse o mesmo...
Que vergonha, meu Deus! Dera adeus a tanta gente; traída
por uma
aparência enganosa, mandara diariamente a tantos rapazes
diversos as mais
doces mensagens do seu coração, e no sorriso deles, nas
palavras cordiais que
dirigiam à namorada coletiva, à pequena Tangerine-Girl,
que já era uma
instituição da base - só viu escárnio, familiaridade
insolente... Decerto pensavam que ela era também uma dessas pequenas que
namoram os marinheiros de passagem, quem quer que seja... decerto
pensavam... MeuDeus do Céu!
Os moços, por causa da meia-escuridão, ou porque não
cuidavam
naquelas nuanças psicológicas, não atentaram na expressão
de mágoa e susto
que confrangia o rostinho redondo da amiguinha. E, quando
um deles,
curvando-se, lhe ofereceu o braço, viu-a com surpresa
recuar, balbuciando
timidamente:
- Desculpem... houve engano... um engano...
E os rapazes compreenderam ainda menos quando a viram
fugir, a
princípio lentamente, depois numa carreira cega. Nem
desconfiaram que ela
fugira a trancar-se no quarto e, mordendo o travesseiro,
chorou as lágrimas
mais amargas e mais quentes que tinha nos olhos.
Nunca mais a viram no laranjal; embora insistissem em
atirar presentes,
viam que eles ficavam no chão, esquecidos - ou às vezes
eram apanhados
pelos moleques do sítio.
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segunda-feira, 24 de setembro de 2012
Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá Bernardo Elis
- Fio, fais um zóio de boi lá fora pra nóis.
O menino saiu do rancho com um baixeiro na cabeça, e no
terreiro, debaixo da chuva miúda e continuada, enfincou o calcanhar na lama,
rodou sobre ele o pé, riscando com o dedão uma circunferência no chão mole -
outra e mais outra. Três círculos entrelaçados, cujos centros formavam um
triângulo equilátero.
Isto era simpatia para fazer estiar. E o menino voltou:
- Pronto, vó.
- O rio já encheu mais? - perguntou ela.
Chi, tá um mar d’água! Qué vê, espia, - e apontou com o
dedo para fora do rancho. A velha foi até a porta e lançou a vista. Para todo
lado havia água. Somente para o sul, para a várzea, é que estava mais enxuto, pois
o braço do rio aí era pequeno. A velha voltou para dentro, arrastando-se pelo
chão, feito um cachorro, cadela, aliás: era entrevada. Havia vinte anos
apanhara um “ar de estupor” e desde então nunca mais se valera das pernas, que
murcharam e se estorceram.
Começou a escurecer nevroticamente. Uma noite que vinha
vagarosamente, irremediavelmente, como o progresso de uma doença fatal. O Quelemente, filho da velha, entrou. Estava
ensopadinho da silva. Dependurou numa
forquilha a caroça, - que é a maneira mais analfabeta de se esconder da chuva,
- tirou a camisa molhada do corpo e se agachou na beira da fornalha.
- Mãe, o vau tá que tá sumino a gente. Este ano mesmo, se
Deus ajudá, nóis se muda.
Onde ele se agachou, estava agora uma lagoa, da água
escorrida da calça de algodão grosso.
A velha trouxe-lhe um prato de folha e ele começou a
tirar, com a colher de pau, o feijão quente da panela de barro. Era um feijão
brancacento, cascudo, cozido sem gordura. Derrubou farinha de mandioca em cima,
mexeu e pôs-se a fazer grandes capitães com a mão, com que entrouxava a
bocarra.
Agora a gente só ouvia o ronco do rio lá embaixo - ronco
confuso, rouco, ora mais forte, ora mais fraco, como se fosse um zunzum
subterrâneo.
A calça de algodão cru do roceiro fumegava ante o calor da
fornalha,
como se pegasse fogo. Já tinha pra mais de oitenta anos
que os dos Anjos moravam ali na foz do
Capivari no Corumbá. O rancho se erguia num morrote a
cavaleiro de terrenos
baixos e paludosos. A casa ficava num triângulo, de que dois
lados eram formados
por rios, e o terceiro, por uma vargem de buritis. Nos
tempos de cheias os
habitantes ficavam ilhados, mas a passagem da várzea era
rasa e podia-se vadear
perfeitamente.
No tempo da guerra do Lopes, ou antes ainda, o avô de Quelemente
veio de Minas e montou ali sua fazenda de gado, pois a formação geográfica
construíra um excelente apartador. O gado, porém, quando o velho morreu, já
estava quase extinto pelas ervas daninhas. Daí para cá foi a decadência. No lugar da casa de telhas, que ruiu, ergueram
um rancho de palhas. A erva se incumbiu de arrasar o resto do gado e as febres
as pessoas. “- Este ano, se Deus ajudá,
nóis se muda.” Há quarenta anos a velha Nhola vinha ouvindo aquela conversa
fiada. A princípio fora seu marido:
“- Nóis precisa de mudá, pruquê senão a água leva nóis”.
Ele morreu de maleita e os outros continuaram no lugar. Depois era o filho que
falava assim, mas nunca se mudara. Casara-se ali: tivera um filho; a mulher
dele, nora de Nhola, morreu de maleita. E ainda continuaram no mesmo lugar: a
velha Nhola, o filho Quelemente e o neto, um biruzinho sempre perrengado. A chuva caía meticulosamente, sem pressa de
cessar. A palha do rancho porejava água, fedia a podre, derrubando dentro da
casa uma infinidade de bichos que a sua podridão gerava. Ratos, sapos, baratas,
grilos, aranhas, - o diabo refugiava-se ali dentro, fugindo à inundação, que
aos poucos ia galgando a perambeira do morrote.
Quelemente saiu ao terreiro e olhou a noite. Não havia
céu, não havia horizonte - era aquela coisa confusa, translúcida e pegajosa.
Clareava as trevas o branco leitoso das águas que cercavam o rancho. Ali pras
bandas da vargem é que ainda se divisava o vulto negro e mal recortado do mato.
Nem uma estrela. Nem um pirilampo. Nem um relâmpago. A noite era feito um
grande cadáver, de olhos abertos e embaciados. Os gritos friorentos das
marrecas povoavam de terror o ronco medonho da cheia. No canto escuro do quarto, o pito da velha
Nhola acendia-se e apagava-se sinistramente, alumiando seu rosto macilento e
fuxicado. - Ocê bota a gente hoje em
riba do jirau, viu? - pediu ela ao filho. - Com essa chuveira de dilúvio, tudo quanto é
mundice entra pro rancho e eu num quero drumi no chão não.
Ela receava a baita cascavel que inda agorinha atravessara
a cozinha numa intimidade pachorrenta.
Quelemente sentiu um frio ruim no lombo. Ele dormia com a
roupa ensopada, mas aquele frio que estava sentindo era diferente. Foi puxar o
baixeiro e nisto esbarrou com água. Pulou do jirau no chão e a água subiu-lhe
ao umbigo. Sentiu um aperto no coração e uma tonteira enjoada. O rancho estava
viscosamente iluminado pelo reflexo do líquido. Uma luz cansada e incômoda, que
não permitia divisar os contornos das coisas. Dirigiu-se ao jirau da velha. Ela
estava agachada sobre ele, com um brilho aziago no olhar.
Lá fora o barulhão confuso, subterrâneo, sublinhado pelo
uivo de um
cachorro.
- Adonde será que tá o chulinho?
Foi quando uma parede do rancho começou a desmoronar. Os
torrões
de barro do pau-a-pique se desprendiam dos amarrilhos de
embiras e caíam
nágua com um barulhinho brincalhão - tchibungue - tibungue. De
repente, foi-se todo o pano de parede. As águas agitadas
vieram banhar as
pernas inúteis de mãe Nhola:
- Nossa Senhora d’Abadia do Muquém!
- Meu Divino Padre Eterno!
O menino chorava aos berros, tratando de subir pelos
ombros da estuporada e alcançar o teto. Dentro da casa, boiavam pedaços de
madeira,
cujas, coités, trapos e a superfície do líquido tinha umas
contorsões diabólicas de espasmos epiléticos, entre as espumas alvas.
- Cá, nego, cá, nego - Nhola chamou o chulinho que vinha
nadando pelo quarto, soprando a água. O animal subiu ao jirau e sacudiu o pêlo
molhado, trêmulo, e começou a lamber a cara do menino. O teto agora começava a desabar, estralando,
arriando as pathas no rio, com um vagar irritante, com uma calma perversa de
suplício. Pelo vão da parede desconjuntada podia-se ver o lençol branco, - que
se diluía na cortina diáfana, leitosa do espaço repleto de chuva, - e que arrastava
as palhas, as taquaras da parede, os detritos da habitação. Tudo isso descia em
longa fila, aos mansos boléus das ondas, ora valsando em torvelinhos, ora
parando nos remansos enganadores. A porta do rancho também ia descendo. Era feita de paus de buritis amarrados por
embiras. Quelemente nadou, apanhou-a,
colocou em cima a mãe e o filho, tirou do teto uma ripa mais comprida para
servir de varejão, e lá se foram derivando, nessa jangada improvisada.
- E o chulinho? - perguntou o menino, mas a única resposta
foi mesmo o uivo do cachorro.
Quelemente tentava atirar a jangada para a vargem, a fim
de alcançar
as árvores. A embarcação mantinha-se a coisa de dois dedos
acima da
superfície das águas, mas sustinha satisfatoriamente a
carga. O que era preciso
era alcançar a vargem, agarrar-se aos galhos das árvores,
sair por esse único ponto mais próximo e mais seguro. Daí em diante o rio
pegava a estreitar-se entre barrancos atacados, até cair na cachoeira. Era
preciso evitar essa passagem, fugir dela. Ainda se se tivesse certeza de que a
enchente houvesse passado acima do barranco e extravasado pela campina
adjacente a ele, podia-se salvar por ali. Do contrário, depois de cair no
canal, o jeito era mesmo espatifar-se na cachoeira.
- É o mato? - perguntou engasgadamente Nhola, cujos olhos
de pua furavam o breu da noite.
Sim. O mato se aproximava, discerniam-se sobre o líquido
grandes manchas, sonambulicamente pesadas, emergindo do insondável - deviam ser
as copas das árvores. De súbito, porém, a sirga não alcançou mais o fundo.
A correnteza pegou a jangada de chofre, fê-la tornear
rapidamente e arrebatou-a
no lombo espumarento. As três pessoas agarraram-se
freneticamente aos buritis,
mas um tronco de árvore que derivava chocou-se com a
embarcação, que agora corria na garupa da correnteza. Quelemente viu a velha cair nágua, com o
choque, mas não pôde nem mover-se: procurava, por milhares de cálculos, escapar
à cachoeira, cujo rugido se aproximava de uma maneira desesperadora.
Investigava a treva, tentando enxergar os barrancos altos daquele ponto do
curso. Esforçava-se para identificar o local e atinar com um meio capaz de os
salvar daquele estrugir encapetado da cachoeira.
A velha debatia-se, presa ainda à jangada por uma mão,
despendendo esforços impossíveis por subir novamente para os buritis. Nisso
Quelemente notou que a jangada já não suportava três pessoas. O choque com o
tronco de árvore havia arrebentado os atilhos e metade dos buritis havia-se
desligado e rodado. A velha não podia subir, sob pena de irem todos para o
fundo. Ali já não cabia ninguém. Era o rio que reclamava uma vítima.
As águas roncavam e cambalhotavam espumejantes na noite
escura que
cegava os olhos, varrida de um vento frio e sibilante. A
nado, não havia força
capaz de romper a correnteza nesse ponto. Mas a velha
tentava energicamente
trepar novamente para os buritis, arrastando as pernas
mortas que as águas
metiam por baixo da jangada. Quelemente notou que aquele
esforço da velha
estava fazendo a embarcação perder a estabilidade. Ela já
estava quase abaixo das águas. A velha não podia subir. Não podia. Era a morte
que chegava,
abraçando Quelemente com o manto líquido das águas sem
fim. Tapando a sua respiração, tapando seus ouvidos, seus olhos, enchendo sua
boca de água, sufocando-o, sufocando-o, apertando sua garganta. Matando seu
filho, que era perrengue e estava grudado nele.
Quelemente segurou-se bem aos buritis e atirou um coice
valente na
cara aflissurada da velha Nhola. Ela afundou-se para
tornar a aparecer, presa
ainda à borda da jangada, os olhos fuzilando numa
expressão de incompreensão
e terror espantado. Novo coice melhor aplicado e um tufo d’água
espirrou
no escuro. Aquele último coice, entretanto, desequilibrou
a jangada, que
fugiu das mãos de Quelemente, desamparando-o no meio do rio.
Ao cair, porém, sem querer, ele sentiu sob seus pés o chão
seguro. Ali
era um lugar raso. Devia ser a campina adjacente ao barranco.
Era raso. O
diabo da correnteza, porém, o arrastava, de tão forte. A mãe,
se tivesse pernas
vivas, certamente teria tomado pé, estaria salva. Suas pernas,
entretanto, eram uns molambos sem governo, um estorvo.
Ah! se ele soubesse que aquilo era raso, não teria dado dois
coices na
cara da velha, não teria matado uma entrevada que queria subir
para a jangada
num lugar raso, onde ninguém se afogaria se a jangada
afundasse...
Mas quem sabe ela estava ali, com as unhas metidas no chão, as
pernas
escorrendo ao longo do rio?
Quem sabe ela não tinha rodado? Não tinha caído na cachoeira,
cujo
ronco escurecia mais ainda a treva?
- Mãe, ô, mãe!
- Mãe, a senhora tá aí?
E as águas escachoantes, rugindo, espumejando, refletindo
cinicamente
a treva do céu parado, do céu defunto, do céu entrevado,
estuporado.
- Mãe, ô, mãe! Eu num sabia que era raso.
- Espera aí, mãe!
O barulho do rio ora crescia, ora morria e Quelemente foi-se
metendo
por ele a dentro. A água barrenta e furiosa tinha vozes de
pesadelo, resmungo
de fantasmas, timbres de mãe ninando filhos doentes, uivos
ásperos de cães
danados. Abriam-se estranhas gargantas resfolegantes nos
torvelinhos malucos
e as espumas de noivado ficavam boiando por cima, como
flores sobre túmulos.
- Mãe! - lá se foi Quelemente, gritando dentro
da noite, até que a água lhe encheu a boca aberta, lhe tapou o nariz, lhe
encheu os olhos arregalados, lhe entupiu os ouvidos abertos à voz da mãe que
não respondia, e foi deixá-lo, empazinado, nalgum perau distante, abaixo da
cachoeira
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Dentro da noite João do Rio
— Então causou sensação?
— Tanto mais quanto era inexplicável. Tu amavas a Clotilde, não? Ela coitadita! parecia louca por ti e os pais estavam radiantes de alegria. De repente, súbita transformação. Tu desapareces, a família fecha os salões como se estivesse de luto pesado. Clotilde chora… Evidentemente havia um mistério, uma dessas coisas capazes de fazer os espíritos imaginosos arquitetarem dramas horrendos. Por felicidade, o juízo geral é contra o teu procedimento.
— Contra mim?
Podia ser contra a pureza da Clotilde.
Graças aos deuses, porém, é contra ti. Eu mesmo concordaria com o Prates que te chama velhaco, se não viesse encontrar o nosso Rodolfo, agora, às onze da noite, por tamanha intempérie metido num trem de subúrbio com o ar desvairado…
— Eu tenho o ar desvairado?
— Absolutamente desvairado.
— Vê-se?
— É claro. Pobre amigo! Então, sofreste muito? Conta lá. Estás pálido, suando apesar da temperatura fria, e com um olhar tão estranho, tão esquisito. Parece que bebeste e que choraste. Conta lá. Nunca pensei encontrar o Rodolfo Queirós, o mais elegante artista desta terra, num trem de subúrbio, às onze de uma noite de temporal. É curioso. Ocultas os pesares nas matas suburbanas? Estás a fazer passeios de vício perigoso?
O trem rasgara a treva num silvo alanhante, e de novo cavalava sobre os trilhos. Um sino enorme ia com ele badalando, e pelas portinholas do vagão viam-se, a marginar a estrada, as luzes das casas ainda abertas, os silvedos
empapados d’água e a chuva lastimável a tecer o seu infindável véu de lágrimas. Percebi então que o sujeito gordo da banqueta próxima – o que falava mais – dizia para o outro:
— Mas como tremes, criatura de Deus! Estás doente?
O outro sorriu desanimado.
— Não; estou nervoso, estou com a maldita crise.
E como o gordo esperasse:
— Oh! meu caro, o Prates tem razão! E teve razão a família de Clotilde e tens razão tu cujo olhar é de assustada piedade. Sou um miserável desvairado, sou um infame desgraçado.
— Mas que é isto, Rodolfo?
— Que é isto! É o fim, meu bom amigo, é o meu fim. Não há quem não tenha o seu vício, a sua tara, a sua brecha. Eu tenho um vício que é positivamente a loucura. Luto, resisto, grito, debato-me, não quero, não quero, mas o vício vem vindo a rir, toma-me a mão, faz-me inconsciente, apodera-se de mim. Estou com a crise. Lembras-te da Jeanne Dambreuil quando se picava com morfina? Lembras-te do João Guedes quando nos convidava para as fumeries de ópio? Sabiam ambos que acabavam a vida e não podiam resistir. Eu quero resistir e não posso. Estás a conversar com um homem que se sente doido.
— Tomas morfina, agora? Foi o desgosto decerto…
O rapaz que tinha o olhar desvairado perscrutou o vagão. Não havia ninguém mais – a não ser eu, e eu dormia profundamente… Ele então aproximou-se do sujeito gordo, numa ânsia de explicações.
— Foi de repente, Justino. Nunca pensei! Eu era um homem regular, de bons instintos, com uma família honesta. Ia casar com a Clotilde, ser de bondade a que amava perdidamente. E uma noite estávamos no baile das Praxedes, quando a Clotilde apareceu decotada, com os braços nus. Que braços! Eram delicadíssimos, de uma beleza ingênua e comovedora, meio infantil, meio mulher – a beleza dos braços das Oreadas pintadas por Botticelli, misto de castidade mística e de alegria pagã. Tive um estremecimento. Ciúmes? Não. Era um estado que nunca se apossara de mim: a vontade de tê-los só para os meus olhos, de beijá-los, de acariciá-los, mas principalmente de fazê-los sofrer. Fui ao encontro da pobre rapariga fazendo um enorme esforço, porque o meu desejo era agarrar-lhe os braços, sacudi-los, apertá-los com toda a força, fazer-lhes manchas negras, bem negras, feri-los… Por quê? Não sei, nem eu mesmo sei – uma nevrose! Essa noite passei-a numa agitação incrível. Mas contive-me. Contive-me dias, meses, um longo tempo, com pavor do que poderia acontecer O desejo, porém, ficou, cresceu, brotou, enraizou-se na minha pobre alma. No primeiro instante, a minha vontade era bater-lhe com pesos, brutalmente. Agora a grande vontade era de espetá-los, de enterrar-lhes longos alfinetes, de cosê-los devagarinho, a picadas. E junto de Clotilde, por mais compridas que trouxesse as mangas, eu via esses braços nus como na primeira noite, via a sua forma grácil e suave, sentia a finura da pele e imaginava o súbito estremeção quando pudesse enterrar o primeiro alfinete, escolhia posições, compunha o prazer diante daquele susto de carne que havia de sentir.
— Que horror!
— Afinal, uma outra vez, encontrei-a na sauterie da viscondessa de Lajes, com um vestido em que as mangas eram de gaze. Os seus braços – oh! que braços, Justino, que braços! – estavam quase nus. Quando Clotilde erguia-os, parecia uma ninfa que fosse se metamorfoseando em anjo. No canto da varanda, entre as roseiras, ela disse-me: “Rodolfo, que olhar o seu. Está zangado?” Não foi possível reter o desejo que me punha a tremer, rangendo os dentes. – “Oh! não! fiz. Estou apenas com vontade de espetar este alfinete no seu braço.” Sabes como é pura a Clotilde. A pobrezita olhou-me assustada, pensou, sorriu com tristeza: – “Se não quer que eu mostre os braços por que não me disse há mais tempo, Rodolfo? Diga, é isso que o faz zangado?” – “É , é isso, Clotilde.” E rindo – como esse riso devia parecer idiota! – continuei: “É preciso pagar ao meu ciúme a sua dívida de sangue. Deixe espetar o alfinete.” — “Está louco, Rodolfo?” — “Que tem?” — “Vai fazer-me doer” — “Não dói.” — “E o sangue?” — “Beberei essa gota de sangue como a ambrosia do esquecimento.” E dei por mim, quase de joelhos, implorando, suplicando, inventando frases, com um gosto de sangue na boca e as fontes a bater, a bater… Clotilde por fim estava atordoada, vencida, não compreendendo bem se devia ou não resistir Ah! meu caro, as mulheres! Que estranho fundo de bondade, de submissão, de desejo, de dedicação inconsciente tem uma pobre menina! Ao cabo de um certo tempo, ela curvou a cabeça, murmurou num suspiro: “Bem. Rodolfo, faça… mas devagar, Rodolfo! Há de doer tanto!”. E os seus dois braços tremiam.
Tirei da botoeira da casaca um alfinete, e nervoso, nervoso como se fosse amar pela primeira vez, escolhi o lugar, passei a mão, senti a pele macia e enterrei-o. Foi como se fisgasse uma pétala de camélia, mas deu-me um gozo complexo de que participavam todos os meus sentidos. Ela teve um ah! de dor, levou o lenço ao sítio picado, e disse, magoadamente: “Mau!”
— Ah! Justino, não dormi. Deitado, a delícia daquela carne que sofrera por meu desejo, a sensação do aço afundando devagar no braço da minha noiva, dava-me espasmos de horror! Que prazer tremendo! E apertando os varões da cama, mordendo a travesseira, eu tinha a certeza de que dentro de mim rebentara a moléstia incurável. Ao mesmo tempo em que forçava o pensamento a dizer: nunca mais farei essa infâmia! todos os meus nervos latejavam: voltas amanhã; tens que gozar de novo o supremo prazer! Era o delírio, era a moléstia, era o meu horror..
Houve um silêncio. O trem corria em plena treva, acordando os campos com o desesperado badalar da máquina. O sujeito gordo tirou a carteira e acendeu uma cigarreta.
— Caso muito interessante, Rodolfo. Não há dúvida de que é uma degeneração sexual, mas o altruísmo de S. Francisco de Assis também é degeneração e o amor de Santa Tereza não foi outra coisa. Sabes que Rousseau tinha pouco mais ou menos esse mal? É mais um tipo a enriquecer a série enorme dos discípulos do marquês de Sade. Um homem de espírito já definiu o sadismo: a depravação intelectual do assassinato. É um Jack hipercivilizado, contenta-se com enterrar alfinetes nos braços. Não te assustes.
O outro resfolegava, com a cabeça entre as mãos.
— Não rias, Justino. Estás a tecer paradoxos diante de uma criatura já do outro lado da vida normal. E lúgubre.
— Então continuaste?
— Sim, continuei, voltei, imediatamente. No dia seguinte, à noitinha, estava em casa de Clotilde, e com um desejo louco, desvairado. Nós conversávamos na sala de visitas. Os velhos ficavam por ali a montar guarda. Eu e a Clotilde íamos para o fundo, para o sofá. Logo ao entrar tive o instinto de que podia praticar a minha infâmia na penumbra da sala, enquanto o pai conversasse. Estava tão agitado que o velho exclamou: — “Parece, Rodolfo, que vieste a correr para não perder a festa.”
Eu estava louco, apenas. Não poderás nunca imaginar o caos da minha alma naqueles momentos em que estive a seu lado no sofá, o maelstrom de angústias, de esforços, de desejos, a luta da razão e do mal, o mal que eu senti saltar-me à garganta, tomar-me a mão, ir agir, ir agir… Quando ao cabo de alguns minutos acariciei-lhe na sombra o braço, por cima da manga, numa carícia lenta que subia das mãos para os ombros, entre os dedos senti que já tinha o alfinete, o alfinete pavoroso. Então fechei os olhos, encolhi-me, encolhi-me, e finquei. Ela estremeceu, suspirou. Eu tive logo um relaxamento de nervos, uma doce acalmia. Passara a crise com a satisfação, mas sobre os meus olhos os olhos de Clotilde se fixaram enormes e eu vi que ela compreendia vagamente tudo, que ela descobria o seu infortúnio e a minha infâmia. Como era nobre, porém! Não disse uma palavra. Era a desgraça. Que se havia de fazer?…
Então depois, Justino, sabes? foi todo o dia. Não lhe via a carne mas sentia-a marcada, ferida. Cosi-lhe os braços! Por último perguntava: – “Fez sangue, ontem?” E ela pálida e triste, num suspiro de rola: “Fez”… Pobre Clotilde! A que ponto eu chegara, na necessidade de saber se doera bem, se ferira bem, se estragara bem! E no quarto, à noite, vinham-me grandes pavores súbitos ao pensar no casamento porque sabia que se a tivesse toda havia de picar-lhe a carne virginal nos braços, no dorso, nos seios… Justino, que tristeza!…
De novo a voz calou-se. O trem continuava aos solavancos na tempestade, e pareceu-me ouvir o rapaz soluçar. O outro porém estava interessado e indagou:
— Mas então como te saíste?
— Em um mês ela emagreceu, perdeu as cores. Os seus dois olhos negros ardiam aumentados pelas olheiras roxas. Já não tinha risos. Quando eu chegava, fechava-se no quarto, no desejo de espaçar a hora do tormento. Era a mãe que a ia buscar. “Minha filha, o Rodolfo chegou. Avia-te.” E ela de dentro: “Já vou, mãe”. Que dor eu tinha quando a via aparecer sem uma palavra! Sentava-se à janela, consertava as flores da jarra, hesitava, até que sem forças vinha tombar a meu lado, no sofá, como esses pobres pássaros que as serpentes fascinam. Afinal, há dois meses, uma criada viu-lhe os braços, deu o alarme. Clotilde foi interrogada, confessou tudo numa onda de soluços. Nessa mesma tarde recebi uma carta seca do velho desfazendo o compromisso e falando em crimes que estão com penas no código.
— E fugiste?
— Não fugi; rolei, perdi-me. Nada mais resta do antigo Rodolfo. Sou outro homem, tenho outra alma, outra voz, outras idéias. Assisto-me endoidecer Perder a Clotilde foi para mim o soçobramento total. Para esquecê-la percorri os lugares de má fama, aluguei por muito dinheiro a dor das mulheres infames, freqüentei alcouces. Até aí o meu perfil foi dentro em pouco o terror As mulheres apontavam-me a sorrir, mas um sorriso de medo, de horror.
A pedir, a rogar um instante de calma eu corria às vezes ruas inteiras da Suburra, numa enxurrada de apodos. Esses entes querem apanhar do amante, sofrem lanhos na fúria do amor, mas tremem de nojo assustado diante do ser que pausadamente e sem cólera lhes enterra alfinetes. Eu era ridículo e pavoroso. Dei então para agir livremente, ao acaso, sem dar satisfações, nas desconhecidas. Gozo agora nos tramways, nos music-halls, nos comboios dos caminhos de ferro, nas ruas. E muito mais simples. Aproximo-me, tomo posição, enterro sem dó o alfinete. Elas gritam, às vezes. Eu peço desculpa. Uma já me esbofeteou. Mas ninguém descobre se foi proposital. Gosto mais das magras, as que parecem doentes.
A voz do desvairado tomara-se metálica, outra.
De novo porém a envolveu um tremor assustado.
— Quando te encontrei, Justino, vinha a acompanhar uma rapariga magrinha. Estou com a crise, estou… O teu pobre amigo está perdido, o teu pobre amigo vai ficar louco…
De repente, num entrechocar de todos os vagões o comboio parou. Estávamos numa estação suja, iluminada vagamente. Dois ou três empregados apareceram com lanternas rubras e verdes. Apitos trilaram. Nesse momento, uma menina loira com um guarda-chuva a pingar, apareceu, espiou o vagão, caminhou para outro, entrou. O rapaz pôs-se de pé logo.
— Adeus.
— Saltas aqui?
— Salto.
— Mas que vais fazer?
— Não posso, deixa-me! Adeus!
Saiu, hesitou um instante. De novo os apitos trilaram. O trem teve um arranco. O rapaz apertou a cabeça com as duas mãos como se quisesse reter um irresistível impulso. Houve um silvo. A enorme massa resfolegando rangeu por sobre os trilhos. O rapaz olhou para os lados, consultou a botoeira, correu para o vagão onde desaparecera a menina loira. Logo o comboio partiu. O homem gordo recolheu a sua curiosidade, mais pálido, fazendo subir a vidraça da janela. Depois estendeu-se na banqueta. Eu estava incapaz de erguer-me, imaginando ouvir a cada instante um grito doloroso no outro vagão, no que estava a menina loira. Mas o comboio rasgara a treva com o outro silvo, cavalgando os trilhos vertiginosamente. Através das vidraças molhadas viam-se numa correria fantástica as luzes das casas ainda abertas, as sebes empapadas d’água sob a chuva torrencial. E à frente, no alto da locomotiva, como o rebate do desespero, o enorme sino reboava, acordando a noite, enchendo a treva de um clamor de desgraça e de delírio.
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sexta-feira, 21 de setembro de 2012
Gestalt Hilda Hilst
Absorto, centrado no nó das trigonometrias, meditando
múltiplos
quadriláteros, centrado ele mesmo no quadrado do quarto, as superfícies de
cal, os triângulos de acrílico, suspensos no espaço por
uns fios finos os polígonos, Isaiah o matemático, sobrolho peluginoso,
inquietou-se quando descobriu o porco. Escuro, mole, seu liso, nas coxas
diminutos enrugados, existindo aos roncos, e em curtas corridas gordas,
desajeitadas, o ser do porco estava ali. E porque o porco efetivamente estava
ali, pensá-lo parecia lógico a Isaiah, e começou pensando spinosismos: “de
coisas que nada tenham em comum entre si, uma não pode ser causa da outra.” Mas
aos poucos, reolhando com apetência pensante, focinhez e escuros do porco,
considerou inadequado para o seu próprio instante o Spinoza citado aí de cima, acercou-se,
e de cócoras, de olho-agudez, ensaiou pequenas frases tortas, memorioso: se é
que estás aqui, dentro da minha evidência, neste quarto, atuando na minha
própria circunstância, e efetivamente estás e atuas, dize-me por quê. Nas
quatro patas um esticado muito teso, nos moles da garganta pequeninos ruídos
gorgulhantes, o porco de Isaiah absteve-se de responder tais rigorismos, mas
focinhou de Isaiah os sapatos, encostou nádegas e ancas com alguma timidez e
quando o homem tentou alisá-lo como se faz aos gatos, aos cachorros, disparou
outra vez num corre gordo, desajeitado, e de lá do outro canto novamente um
esticado muito teso e pequeninos ruídos gorgulhantes. Bem, está aí. Milho,
batatas, uma lata de água, e sinto muito o não haver terra para o teu mergulho
mais fundo, de focinhez. Retomou
algarismos, figuras, hipóteses, progressões, anotava seus cálculos com tinta
roxa, cerimoniosa, canônica, limpo bispal. Isaiah limpou dejetos do porco,
muito sóbrio, humildoso, sóbrio agora também o porco um pouco triste
esfregando-se nos cantos, um aguado-ternura nos dois olhos, e por isso Isaiah
lembrou-se de si mesmo, menino, e do lamento do pai olhando-o: immer krank parece, immer krank, sempre doente parece, sempre
doente, é o que pai dizia na sua língua. E doença não é Hilde? Hilde sua
mãe, sorria, Ach nem, é pequeno, é criança, e quando ainda somos assim,
sempre de alguma coisa temos medo, não é doença Karl, é medo. Isaiah foi
adoçando a voz, vou te dar um nome, vem aqui, não te farei mais
perguntas, vem, e ele veio, o porco, a anca tremulosa roçou as canelas de
Isaiah, Isaiah agachou-se, redondo de afago foi amornando a lisura do couro,
e mimos e falas, e então descobriu que era uma porca o porco. Devo
dizer-lhes que em contentamento conviveu com Hilde a vida inteira. Deu-lhe o
nome da mãe em homenagem àquela frase remota: sempre de alguma coisa temos
medo.
E na manhã de um domingo celebrou esponsais. Um parênteses
devo me permitir antes de terminar: Isaiah foi plena, visceral,
lindamente feliz.
Hilde
também.
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domingo, 16 de setembro de 2012
Um discurso sobre o método Sérgio Sant’Anna
Ele se encontrava sobre a estreita marquise do 18º andar.
Tinha pulado ali a fim de limpar pelo lado externo as vidraças das salas vazias
do conjunto 180 1/5, a serem ocupadas em breve por uma firma de engenharia. Ele era um empregado recém-contratado da
Panamericana - Serviços Gerais. O fato de haver se sentado à beira da marquise,
com as pernas balançando no espaço, se devera simplesmente a uma pausa para
fumar a metade de cigarro que trouxera no bolso. Ele não queria dispersar este
prazer misturando-o com o trabalho.
Quando viu o ajuntamento de pessoas lá embaixo, apontando
mais ou
menos em sua direção, não lhe passou pela cabeça que
pudesse ser ele o centro
das atenções. Não estava habituado a ser este centro e
olhou para baixo e para
cima e até para trás, a janela às suas costas. Talvez
pudesse haver um princípio
de incêndio ou algum andaime em perigo ou alguém prestes a
pular. Não havia nada identificável à
vista e ele, através de operações bastante lógicas, chegou à conclusão de que o
único suicida em potencial era ele próprio. Não que já houvesse se cristalizado
em sua mente, algum dia, tal desejo, embora como todo mundo, de vez em
quando... E digamos que a pouca importância que dava a si próprio não permitia
que aflorasse seriamente em seu campo de decisões a possibilidade de um gesto
tão grandiloqüente. E que o instinto
cego de sobrevivência levava uma vantagem de uns quarenta por cento sobre o seu
instinto de morte, tanto é que ele viera levando a vida até aquele preciso
momento sob as mais adversas condições.
No seu bolso, por exemplo, depois que se fora o cigarro,
só restavam a
carteira profissional e algumas poucas moedas,
insuficientes para tomar o
ônibus lá na Central do Brasil, numa hora em que os trens
já teriam parado. Até a Central, ainda dava para ir a pé, quando ele costumava
andar de cabeça
baixa, não por um sentimento de humilhação, em particular,
mas como uma forma de achar moedas, o que não era tão raro assim, uma vez que,
com a depreciação crescente do valor dessas moedas, muitas pessoas não se davam
mais ao trabalho de curvar-se para pegá-las, quando as deixavam cair.
Antes de pegar o serviço, hoje, no turno das quatro horas da
tarde, que se
estenderia até a meia-noite, ele hesitara bastante em gastar
o dinheiro da
passagem. Mas o vazio no estômago falara mais alto e ele
usara parte dessa
grana
com um cafezinho, enchendo três quartos da xícara com
açúcar, o que lhe
proporcionava umas tantas calorias, embora ele não
pensasse assim, em termos
de calorias, mas da diminuição da vontade de comer e, como
requinte, que um cigarro, mesmo pela metade, era bem mais saboroso depois de um
café. Ele meditara também sobre as
condições meteorológicas, olhando para o céu e concluindo que o tempo
continuaria firme, o que significava que ele poderia passar a noite num dos
bancos ou gramados do centro da cidade. Costumavam
causar-lhe tédio, quando dormia na rua, as manhãs sem destino até a hora de
pegar o serviço, procurando distrair-se olhando o mar e os aviões na ponta do
Aterro, perto do aeroporto, ou frangos giratórios nos fornos envidraçados ou,
nos cartazes de cinema, mulheres nuas e homens de ação. Mas este era um
problema para amanhã e depois de amanhã, no máximo, porque no terceiro dia
sairia o pagamento. Ele era um homem que vivia nas imediações do presente, pois
o passado não lhe trazia nenhuma recordação agradável, em especial, e o futuro
era melhor não prevê-lo, de tão previsível. A data de pagamento, porém, era um
marco cronológico ao qual ele se apegava.
O sujeito que o recrutara por um salário mínimo lhe dissera
que ele
ainda tinha sorte, pois o desemprego grassava no país. Era
um sujeito que
gostava de usar verbos desse tipo, de dicionário, que lhe
pareciam conceder
dignidade e pompa às suas palavras, embora ele não chegasse
a materializar
em sua mente tais substantivos abstratos. Autoridade e
importância, sim,
eram prerrogativas das quais ele se revestia em seu cargo,
ele ali sentado
com
a gravata e a palavra, enquanto que os homens que desfilavam
à sua frente
permaneciam de pé e mudos, a não ser por certas respostas
quase monossilábicas
como “sim senhor”, ou “não senhor” quando se tratava de
vícios como a cachaça. Se audiência fosse um pouco mais qualificada, ele
discorreria também um pouco mais sobre os problemas do país, que provinham do atraso
do povo, a desonestidade e incompetência dos políticos, agravadas pelo
gigantismo do Estado. Na intimidade do lar, ele apontava ainda causas como as
condições climáticas, uma colonização de degredados e a mistura de raças. Ele
era um homem da iniciativa privada numa posição de comando intermediário,
embora achasse que ganhava pouco, o que era amenizado pela perspectiva de subir
alguns degraus, desde que fosse perseverante e duro até o ponto da
inflexibilidade. E o nome Panamericana se revestia para ele de uma aura
multinacional, apesar de não ser mais do que isso, uma aura esperta que, a bem
da verdade, contaminava mesmo o homem lá na marquise, em seu uniforme com
aquelas letras gravadas significando para ele alguma coisa que não entendia bem
e por isso respeitava, algo ligado a competições esportivas que o Brasil
disputava. Alguma coisa imponente, sem dúvida, tanto é que eles eram proibidos,
em tese, de vestir os uniformes fora do horário do trabalho, justamente para
evitar que os empregados manchassem aquele nome envergando-o em botequins ou
bancos de praça e gramados.
Mas a perspectiva de passar a noite num desses dois últimos
locais trazia
em seu bojo a vantagem de que, não indo para casa, ele não
presenciaria o
que lá estivesse se passando, com a mulher e os três filhos
diante de uma
despensa - que era como eles chamavam alguns caixotes
empilhados totalmente vazia. Não que ele estivera pensando nisso em seu trajeto
rumo
à marquise, muito pelo contrário; ele costumava
desligar-se dos problemas
da casa tão logo punha os pés na rua. Sabia que as
mulheres eram capazes de
verdadeiros milagres, como uma contabilidade não escrita
de ovos e farinha tomados emprestados umas das outras na vizinhança, mas se um
homem se encontrasse por perto todas as queixas recairiam sobre ele. Pelo menos
era o que ele pensava, quando estava pensando nisso. Tais aflições subsistiam, porém, apenas como
uma espécie de latência dentro dele - uma ausência boa - ali na marquise, e não
teriam aflorado juntamente com o próprio meio de livrar-se delas, caso ele não
identificasse os gritos em coro das pessoas lá embaixo como pedidos para que
ele pulasse. Não que ele se dispusesse a
ceder àqueles apelos, bem entendido; apenas descobria, um tanto perplexo e até
fascinado, que esta era uma alternativa plausível para um ser humano como ele,
em dificuldades, mas de posse de todos os seus movimentos. E isso lhe concedia
uma liberdade insuspeitada e uma leveza, uma vez que um fio muito tênue podia
separá-lo da meta comum à espécie, que é não sofrer.
Pode-se indagar a respeito do medo. Se ele não tinha medo
de estar ali suspenso? Mas é preciso não esquecer que ele estava habituado a
ocupar posições delicadas no espaço.
Outro, em seu lugar, talvez se magoasse com o pouco caso que
a
assistência dava à sua vida. Mas, como já vimos, ele também
se dava pouca
importância, como um coadjuvante muito secundário, quase
imperceptível,
de um espetáculo polifônico. Por isso, também jamais se
cristalizara a
hipótese de forçar o destino com uma arma na mão, assaltando
pessoas físicas
e jurídicas, embora passasse por sua cabeça, como na de todo
mundo, de vez
em quando... E nesse espetáculo havia os que se colocavam
como espectadores
nos mais baixos degraus da fama e ele mesmo, se fosse numa
dessas manhãs em que flanava sem destino, teria se postado na platéia para
matar o tempo, mas sem voz ativa, porque era um homem sóbrio em seus atos, modesto.
Então não sentiu mágoa e até sabia, sem trazê-lo à consciência que em
ajuntamentos semelhantes existiam aqueles, como certas mulheres (às vezes já
com uma vela na bolsa), que passavam aflitamente a mão no rosto e diziam falas
melodramáticas como “pelo amor de Deus, não”, ou algo do gênero, e também
aqueles outros que chamavam a polícia e os bombeiros, sendo que um carro da
primeira corporação já chegava neste momento. Ele era um homem respeitador das leis e dos poderes
e, em nome de tal respeito, medo até, levantou-se imediatamente para retornar à
limpeza das vidraças, quando um silêncio de expectativa neutralizado por um
clamor de incentivo veio lá de baixo, para logo depois se transformar numa
vaia, quando perceberam que ele era apenas um homem trabalhando, ainda que em
condições precárias que sugeriam risco, ação, emoção, coragem.
E esta vaia, sim, foi recebida por ele com mágoa, porque
os gritos
anteriores tinham sido algo assim como o entusiasmo da arquibancada
diante
de um atleta e, de repente, era como se ele houvesse
executado ajogada errada. Com o escovão e o pano nas mãos, e o balde a seus
pés, ele virou-se novamente para a platéia e deu um passo miúdo adiante, para
ouvir distintamente os gritos de “pula”, “pula”.
O fato é que ele jamais estivera num palco, num pedestal,
e isso afetara sua modéstia. Não é preciso conhecer a palavra pedestal para
saber que as estátuas repousam sobre uma base. Como também não é preciso
conhecer a palavra polifônico para ouvir as muitas vozes e o conjunto de sons
da cidade.
E haveria sempre alguém que pudesse narrar isso por ele,
até que as condições
socioeconômico-culturais da classe operária se
transformassem no país e ela pudesse falar com a própria voz.
Quando isso acontecera, por exemplo, na Inglaterra, dera
origem a fenômenos inesperados como os Beatles e os angry young men, jovens
zangados. Já na União Soviética ou em Cuba, o brilho de
algumas vozes fora abafado em nome de prioridades econômicas indiscutíveis. Ele
vira, na abertura dos Jogos Olímpicos de Moscou, a saúde e a beleza da
juventude soviética. Como todo mundo, no Brasil, ele dera o seu jeito de
comprar um aparelho de TV. Comprara de um rapaz vizinho, sem exigir nota fiscal
ou indagar sobre a marca ou procedência. O rapaz era um jovem zangado brasileiro
e assaltava pessoas físicas, preparando-se para encarar as jurídicas, do ramo
bancário. Ambos não conheciam os Beatles. As estátuas, ele conhecia bem, apesar de não
ler as placas. Perambulava muito diante delas e intuía que eram erigidas
(embora não utilizasse tal verbo, mais do estilo do chefe do Departamento de
Pessoal da Panamericana) em homenagem a pessoas que teriam realizado feitos
notáveis, tanto é que estavam ali em exibição pública, como exemplo moral. Não era bem o caso dele, certo, mas ele também
estava provando do poder sobre a massa, como alguns daqueles homens ilustres. E
isso ampliava, de repente, de maneira literalmente vertiginosa, a sua
consciência social. Aquele pessoal lá
embaixo, como ele próprio, a mulher e os filhos, não era gente bonita, bem
alimentada e imbuída de elevados propósitos; pelo contrário, era preciso
aplacá-los com sangue e circo. Então ele chegou a refletir - se se pode chamar
assim o clarão de raiva que o atravessou - sobre métodos violentos de
transformação da sociedade. Alguém mais cultivado poderia contrapropor métodos
constitucionais de mudança. Mas isso poderia levar décadas ou um século, ou
talvez não acontecesse nunca.
E o caso dele era premente: a situação financeira de
carência absoluta,
agravada pelo fato de ter se destacado tanto nos últimos
instantes na
Panamericana, de forma incompatível com a política de
pessoal da Companhia.
E havia o fato principal de que ele tinha uma só vida para
viver, apesar
de, paradoxalmente, andar ventilando, nesses últimos
momentos, como um
exercício, a hipótese de livrar-se dela. Diante disso, a
sociedade como um
todo era uma abstração. Ele estava se tornando agora,
sempre vertiginosamente,
um individualista. Se tivesse uma arma na mão, talvez
houvesse disparado a esmo. Ele não tinha tal arma e só poderia disparar contra
si mesmo, em forma de uma tristeza pontiaguda.
Em compensação isso ampliava sua consciência poética,
talvez dando razão àqueles que vêem na arte uma redenção do sofrimento.
Aproximava-se a hora do crepúsculo, uma hora bonita, ele também achava. Para
realçar tal beleza na melancolia, havia a possibilidade desta tornar-se também
a hora do seu crepúsculo, que ele podia fazer belo e significativo. Se pulasse,
transformar-se-ia numa personagem de jornal, um mártir da crise econômica, merecendo
mais do que um simples registro, porque teria conseguido transformar a avenida
Rio Branco lá embaixo, assim batizada por causa de um barão (que ele
desconhecia), num pandemônio, com o soar das sirenes e um carro do corpo de
bombeiros que ocupara um bom trecho do asfalto, o Estado usufruindo da
oportunidade de retribuir o dinheiro arrecadado dos contribuintes.
Um cordão de isolamento já fora estendido para que ele não
caísse em
cima das pessoas e, sem sabê-lo, ele se avizinhava de um
ideal romântico que
é o de morrer jovem e no auge da fama. Só não era belo. Era
um rapaz de
vinte e cinco anos, embora não parecesse. Aos argumentos de
praxe de que
tudo isso de nada lhe serviria depois de morto, ele poderia
contrapropor -
se além de romântico fosse poeta ou filósofo - que estava
gozando com a
máxima intensidade os lances dramáticos que podiam anteceder
a morte,
como num duelo ao entardecer. A cidade era
inquestionavelmente bela, com
seus picos e montanhas, o oceano, algumas aves marinhas,
outras não, um
avião que pousava naquele instante, com seus passageiros
que observavam a paisagem de um ângulo diverso do seu. É claro que não existe a
beleza sem
que a observe. Mas, por outro lado, não haveria tal
intensidade na
contemplação, no caso dele, não fosse certa iminência... Uma
iminência que
tornava
mais perceptível do que nunca, aos seus ouvidos, a polifonia
sinfônica das
ruas, como se ele fosse um apreciador sofisticado de música
aleatória, o que,
quando nada, demonstrava que não é preciso estar a par de
certas definições
e correntes estéticas para usufruir dos efeitos e dos
materiais que as compõem,
que acabavam por se reunir numa espécie de zumbido cósmico
que parecia nascer de dentro dele.
Havia também qualquer coisa de existencialista nele, com
esse negócio de viver intensamente um momento limite e dar-lhe um sentido, como
alguma personagem de Jean-Paul Sartre, além de ter sido acometido, há pouco, de
uma boa dose de náusea existencial em relação a si próprio e à massa humana.
Por outro lado, mesmo em condições socioeconômicas mais favoráveis, haveria o
absurdo da existência. Ele era um absurdo. Uma consciência largada no mundo,
que podia morrer a qualquer instante e não era feliz.
É claro que, do ponto de vista de uma abordagem
psicanalítica, sua
ânsia recém-aflorada de pular era passível de ser
analisada sob outros ângulos,
alguns menos, outros mais românticos ainda. O fato de sua
força voltar-se contra ele próprio, num momento em que não podia dirigi-la para
fora, era somente a parte mais óbvia da questão que, com um mínimo de
paciência, poderia ser explicada a ele por algum psiquiatra do INPS, que a seguir
o consideraria apto a retornar ao trabalho. Ele não era burro, apenas não crescera
num ambiente propício a aprimorar sua educação. Quanto ao narcisismo, refletido
no ato de pavonear-se no espelho da massa, ele poderia canalizá-lo para
atividades socialmente mais ajustadas, como progredir no seu ramo de vidraças e
assoalhos, até deixá-los tão impecavelmente limpos que lhe devolvessem uma
imagem sem distorções e fantasias perniciosas. Ou, no caso de suas ambições
ultrapassarem o âmbito do emprego para atingir o mundo dos espetáculos - como
ocorria agora -, sempre restaria a possibilidade de buscar uma chance num
programa de calouros da TV, ou no futebol, mas isso, no segundo caso, se não
houvesse se passado em sua infância um acontecimento absolutamente traumático:
ter sido expelido, aos empurrões, de um time de garotos, por deficiência
técnica possivelmente decorrente de suas deficiências físicas, ainda que ele
fosse escalado na ponta-esquerda, posição que no Brasil costuma tornar-se a
mais próxima possível da reserva.
Tanto é que se comentassem com ele que o Brasil, em toda a
sua história esportiva, jamais tivera em suas seleções um só ponta-esquerda que
fosse o astro do time, ele captaria numa fração de segundo a origem e o
espírito da coisa, remetendo-a a seu próprio caso e isso, sem dúvida, seria
plenamente um insight, que o faria rir numa descarga nervosa, talvez
convencendo-o a aceitar melhor seus próprios limites, pois ele nem mesmo era
canhoto e tornava-se extremamente difícil cruzar a bola com o pé trocado. E
ainda lhe restaria, uma vez diluída uma prejudicial imagem idealizada, torcer e
identificar-se com um time que lhe devolvesse, de vez em quando, a sua
dedicação com um campeonato; afinal nem todos podem pisar o palco.
Mais difícil - e romântico - embora não impossível, desde
que se
encontrassem as expressões adequadas, seria aprofundar com
ele a coisa no
sentido de entendê-la, a sua tentação repentina de pular,
como um desejo
de retorno aos braços e seios maternos e talvez até a uma
vida uterina, ao
indiferenciado que a todos iguala, não houvesse sido esta
sobressaltada por
tentativas de morte contra ele e ainda por cima com a
utilização de métodos
inadequados - talvez sentidos por ele como maremotos no
líquido em que boiava -, embora, depois de ele ter vindo insistentemente à luz,
fosse
encarado, por seu raquitismo, como um castigo e uma
dádiva, o que já o colocava no mundo desde o início como um paradoxo e diante
de um conflito. Pois o mesmo fato que o levava a ser sacudido e surrado quando chorava
durante as noites, por sentir um oco inexplicável nas entranhas, era razão para
ser embalado e amamentado em plena via pública, sob marquises (!) dos
edifícios, porque a mãe complementava o magro orçamento doméstico mendigando no
centro da cidade, para onde ele era trazido num trem elétrico (!) vestindo seus
piores farrapos, se é que os havia e, nesse ponto, como prova material de
penúria para os pedestres, ele bem valia o seu peso em moedas.
E se depois de um primeiro tratamento de choque, no
referido INPS, ele fosse encaminhado a um profissional gabaritado, no ramo da
mente, este talvez pudesse anotar em seu bloquinho, não como uma certeza - pois
aprendera a desconfiar delas - mas como uma bela hipótese a ser investigada, o
fato de ele ter escolhido (ou ter sido escolhido por ela, pouco importa, pois
não existem coincidências, mas causalidades necessárias) uma profissão que o
levaria sempre para bem próximo das marquises e que agora estivesse na
iminência de jogar-se de uma delas para cair dentro do berço, que era a
calçada. A fortificar tal dedução, havia o fato indiscutível de que ele
trilhara literalmente esta via na vida, onde era sempre obrigado a pegar um
trem elétrico para chegar ao local de trabalho que se confundia com o mítico
ponto onde seria acalentado e daí, talvez, se pudesse explicar-lhe seu delírio
ambulatório e até curá-lo dele, pois num dia chave, como o de hoje, o ter gasto
o dinheiro da condução de volta com um café e principalmente açúcar (pois a
doçura na boca era um fator que, além das calorias, tinha necessariamente de
ser levado em consideração) podia não passar do que provavelmente era: um mero
pretexto a acobertar coisas mais reconditamente recalcadas no inconsciente. E o
final de todo este encadeamento era que ele gastara o dinheiro do ônibus, o
veículo que o levaria de volta ao sofrimento do lar, e não o daquele trem (o
seu trenzinho elétrico de infância) que o conduzia ao aconchego do seio
materno. E o profissional sorriria de prazer diante de tal insight não do
paciente, mas dele próprio - que poderia até ser levado a um congresso e
publicado na revista da Sociedade, espicaçando os lacanianos, eis que tais
associações não se teriam devido a nenhum troca-letras ou aliterações, mas a
imagens semanticamente justas, verdadeiro embrião para uma monografia que
poderia ser intitulada A psicanálise da classe operária e, desta vez, sem
qualquer ironia, a Europa verdadeiramente se curvaria diante do Brasil.
É certo que tal profissional, por sua integridade, somada a
uma boa
dose de esperteza, se anteciparia com um post-scriptum às
possíveis
desconfianças
diante de tal modelo, criticando-o ele mesmo justamente por
sua
perfeição, como a de um círculo, não deixando brechas, mas
redimindo-o
com o argumento de que muito mais do que pela justeza
científica de uma
resposta, um modelo psicanalítico se validava pela maior ou
menor
possibilidade
de um paciente ajustar-se dentro dele, como num pijama de
molde
adequado, e residiria aí, precisamente, a possibilidade de
cura, se se pode
falar em cura quando se trata de uma coisa volátil como a
mente, que, como
a alma, não ocupa propriamente um espaço. E, de qualquer
modo, dentro
das limitações de uma tentativa de conhecimento que não
chega a ser uma
ciência, mas um método, talvez propiciaria este modelo que o
paciente
pudesse voltar para casa, em vez de dissipar seu dinheiro na
rua, e lá beijar
a
mulher no rosto como qualquer cidadão de classe média.
Para então concluírem
juntos, paciente e analista, que no princípio e fim de
tudo está sempre o amor e, neste ponto, concordariam todos, freudianos,
lacanianos e
junguianos-bio-energéticos, que o que importava, no fundo,
na relação analítica, era a cumplicidade afetiva, amorosa mesmo, entre analista
e analisando, pena que tal tipo de cliente em potencial, este que estava
suspenso por um fio entre vida e morte, na marquise, não pudesse pagar para ver
isso de perto. Então só lhe restava o
amor de fato. O amor de uma mulher, por exemplo, que lhe estendesse a mão neste
momento crucial. Não a mulher dele, evidentemente, pois a relação que se
estabelecera entre ambos nos últimos tempos, depois dos desgastes da vida em
comum, era aquela que pode estabelecer-se entre um pedaço de pau e um buraco,
mais ou menos ajustados em suas dimensões, porém dissociados de uma
configuração gestaltiana que os integrasse dentro de um todo que incluiria um
aspecto de sublimação espiritual, aquilo que os seres humanos costumam
denominar amor. Ou mesmo um desejo intenso pela carne alheia que fosse mais do
que o apaziguar de uma coceira. Mas a natureza não queria nem saber das condições
extrabiológicas: no fim de nove meses dava filho e ele já tinha três. Boa parte daquela massa arfante que circulava
pelas ruas lá embaixo era proveniente do encontro de corpos em tais
circunstâncias de pobreza material e do espírito, então era natural que, em
termos de qualidade, houvesse uma baixa progressiva.
O amor que o poderia ter salvo seria, por exemplo, o de
uma datilógrafa que às vezes ele via fazendo horas extras numa das firmas para
as quais ele era designado para a limpeza. Era uma jovem bem proporcionalmente rechonchuda,
que provavelmente se tornaria gorda, com o correr do tempo.
Mas isso era um problema para depois, do qual ele não se
ocupava em suas
fantasias, pois estamos no terreno do presente
imediatíssimo. Além de ele
verdadeiramente admirar-se com suas formas e com o modo
velocíssimo da
moça bater à máquina sem olhar para as teclas, havia um
detalhe que fornecia
a ela uma aparência simultaneamente distinta e distante
(porque ele conhecia
bem o seu lugar no mundo): os óculos. Parecia-lhe incrível
que uma mulher
fosse ao mesmo tempo jovem e desejável e complementada por
um par de
óculos que fazia vir à mente dele professoras meigas que ele
não tivera a
oportunidade de conhecer. Eram os óculos um símbolo de
inacessibilidade
e cultura e as fantasias chegavam a ele primeiramente em
forma de preliminares,
como levá-la ao cinema, à Quinta da Boa Vista, até um dia
pegar na mão dela, para só depois, muito aos poucos, ir pegando no resto. O
momento em que ele a possuiria seria um acontecimento solene, quando deveria munir-se
de toda a delicadeza e a última coisa a retirar do corpo dela, se ele efetivamente
retirasse, seriam os óculos. Porque esses óculos, sem que ele o soubesse, eram
o seu fetiche.
Talvez ele se espantasse ao saber que também dentro dela se
passavam
devaneios, nos quais um homem sensível acabaria por
descobrir a alma gentil
que se abrigava naquele corpo curvado sobre a máquina e
atrás daqueles
óculos. Embora ela mantivesse relações esporádicas com um
contador casado
e com um jovem vizinho de bairro, que tinha um automóvel,
ainda não se
desfizera do seu sonho de casar-se com alguém que
verdadeiramente precisasse
dela, como algum jovem estudante de medicina que chegaria
ao final do curso com todo o sacrifício, do qual ela compartilharia com alegre
resignação. E se ela conhecesse um homem
assim quando ele se encontrasse à beira do desespero, seria capaz de
entregar-se ainda mais vitalmente, gozando entre lágrimas da comovente alegria
que é poder estender a mão àquele que se afoga, para trazê-lo não só à tona,
mas aos píncaros do sublime.
O problema é que para se ter direito ao amor, no
desespero, é preciso
carregar algum tipo reconhecível de beleza, nem que seja
através de obras, como um Toulouse-Lautrec. Embora Van Gogh, apesar de tudo...
Quanto
a ele, o homem na marquise, fora destinado a essa solidão radical
que é a
feiúra na pobreza. Mas ele seria até capaz de reconhecer,
modestamente, se
tivesse tido a tal educação mais aprimorada, que
Toulouse-Lautrec sofrera
mais do que ele, porque provara daquele mundo onde as
mulheres eram
belas, e os homens, artistas tão sequiosos dessa beleza,
que às vezes um deles,
por carência dela, se mandava daquele mundo para outro
melhor. Então só lhe restava, de fato, o
amor de Deus ou a Deus que, através de uma das suas personae cristãs, o Filho,
podia ser visto concretamente de braços abertos dominando a cidade. Podia ser
visto privilegiadamente dali de onde ele estava, o homem da marquise.
Iluminava-se o Cristo durante as noites e apagava-se ao amanhecer; encobria-se
de nuvens negras em dias de tormenta e era visto a brilhar novamente quando
voltava a bonança. Mas nunca, desde a inauguração da estátua, em 1931 -
incluindo a visita do Papa, em 1980 -, fora visto mexendo um só dos braços para
apaziguar uma dessas tormentas, individuais ou coletivas, nem quando eram as
águas das chuvas que, descendo do morro que sustentava a sua imagem, iam
provocar a catástrofe lá embaixo, levando na enxurrada casas, animais e pessoas
e induzindo estas pessoas a pensar em algum castigo que certamente teriam merecido.
Não era então previsível que movesse o Cristo um dos dedos que fosse, pelo
homem na marquise, ainda mais que, se se encontrava este em posição tão
periclitante, era de posse de um livre-arbítrio muito mais acentuado do que
normalmente dispunham as pessoas na sua posição, tomando-se esta no sentido
mais amplo possível. Pois não só ele dominava as alturas, como fora parar ali
por dever de ofício e não pelo desespero - a não ser o inerente ao próprio
ofício - e podia descer no momento em que quisesse, inclusive pelo lado de
dentro do prédio. E, se não o fazia, era pelo pecado do orgulho.
Embora por várias vezes houvesse abandonado o Cristo por
ídolos de periferia como orixás e exus, já ouvira falar, este homem, durante as
catequeses de infância, em sua paróquia - depois das quais era servido um lanche-,
que os pobres mereceriam um lugar de destaque no reino dos céus e que, por
outro lado, os suicidas não teriam perdão. Para encontrar-se então com Deus, no
seu caso particular, era preciso sobretudo ter paciência. E o que o homem fez foi abrir os braços para o
Cristo, movido um pouco por uma súplica vaga, porque ele não sabia como sair
honrosamente daquela armadilha, e um pouco por exibicionismo ou espírito de
imitação, que não raro são a gênese da loucura, quando um ser humano percebe
que, se não podem certas realidades ser transformadas, pode-se simplesmente mudar
a si mesmo, trocando-se um papel modesto por outro melhor, como o de Napoleão
ou outro general, em casos extremos, ou de um simples guarda de trânsito, nos
menos graves. Imitação que, naquele caso específico, fez sucesso, pois a massa
vibrou lá embaixo, talvez pela popularidade do modelo, talvez por acreditar que
a personagem que o encarnava finalmente iria voar. Foi neste momento que se fez ouvir a voz. A
voz trovejou não das alturas, mas da sala da firma de engenharia:
- O senhor desça já daí porque está preso - disse um
policial, empunhando seu revólver. Logo percebeu que incorrera numa
impropriedade semântica que podia trazer graves conseqüências, se o homem
descesse e, por isso, estendeu um dos braços dali do peitoril da janela para
agarrá-lo. Pela primeira vez, na vida,
este outro homem era tratado de senhor; tratamento, porém, que adivinhava seria
imediatamente abandonado uma vez nos braços truculentos da Lei. Então recuou na
marquise até um limite tão preciso e precário que, fatalmente, o colocava sob a
jurisdição do corpo de bombeiros.
O representante mais categorizado desta corporação, que
ali estava, fora submetido a um treinamento durante o qual se levara em conta,
entre outras
disciplinas, as humanidades. Fez um sinal para que o
membro da outra corporação se recolhesse a um canto discreto e assumiu o
comando das operações com um discurso para o qual se preparara desde o dia em
que, assistindo a um filme pela TV, descobrira que a sua verdadeira vocação era
ser bombeiro. Um discurso onde o formalismo era substituído, juntamente com as
armas, pelo tratamento mais brasileiro-homem-cordial do “você . - Rapaz - ele disse. - Pra tudo na vida há
remédio e você ainda vai rir dos problemas que te levaram até aí em cima, seja
lá o que for. Por que não chega mais perto pra gente conversar? Ou se quiser
fala daí mesmo, que nós estamos aqui é pra te ajudar.
Apesar das misturas de concordância e de uma certa armação
na fala, sua voz alcançara justamente aquele tom de cumplicidade afetiva,
amorosa mesmo, precioso para se estabelecer uma relação. E é preciso não
esquecer que o homem não se instalara ali com a intenção de pular; apenas fora tentado,
inadvertidamente, pela vertigem e poder das alturas. Virou-se então para o
bombeiro, que já saltara para a marquise, sob aplausos do público volúvel, e
sorriu encabuladamente, como que pedindo desculpas. Poderia ter explicado, simplesmente, que
estava limpando vidraças e que tudo não passava de um mal-entendido, era só ver
o balde etc., e checar na Panamericana - Serviços Gerais.
Mas a verdade é que haviam ocorrido em sua mente alguns
fenômenos bastante complexos, que modificaram a sua visão de mundo e que ele
gostaria de expor, inclusive a si mesmo, mas para os quais não encontrava
palavras.
- É como se fosse um outro, compreende? - ele disse ao
bombeiro, que
o abraçava sem encontrar resistência, para conduzi-lo à
sala. - Alguém possível
dentro de mim, que estivesse soprando pensamentos na minha
cabeça. Neste momento, ele deu um largo
sorriso, porque essas eram justamente as tais palavras. Porém o treinamento do
bombeiro não chegara a considerar certos aspectos mais recônditos, sutis e
contraditórios da mente e, como um profissional objetivo dentro das limitações
dos seus deveres, não teve dúvida em seu veredicto.
- É louco - avisou lá para dentro, ao mesmo tempo que
empurrava o homem para o interior da sala, onde foi imobilizado. Ele fora traído, mas, por outro lado, o seu
salvador - se podia chamá-lo assim - aplicara-lhe um rótulo novo que lhe
oferecia também uma nova identidade, talvez explicando suas novas sensações,
que agora ele preferia guardar para si mesmo.
“É como se tudo não passasse de um sonho, inclusive eu e o
bombeiro.” Um sentimento, aliás, sumamente agradável, porque o libertava de certas
cadeias.
Ele estava enganado, mas não muito longe da verdade,
embora o estivesse da originalidade: ele não era um sonho, mas uma alegoria
social. Social, política, psicológica e
o que mais se quiser. Aos que condenam tal procedimento metafórico, é preciso
relembrar que a classe trabalhadora, principalmente o seu segmento a que chamam
de lúmpen, ainda está longe do dia em que poderá falar, literariamente, com a
própria voz. Então se pode escrever a respeito dela tanto isso quanto aquilo.
Mas nesse ínterim chegava suado, gordo e ofegante ao
recinto uma
personagem bastante próxima da realidade: o chefe de
pessoal da Panamericana
- Serviços Gerais. Vinha imbuído de formalismo, dignidade
e prerrogativas do seu cargo, além de premido pelo medo de perdê-lo, diante de uma
publicidade que não era bem o que o departamento de Relações Públicas da firma
tinha em mente. Com os pés bem fincados no chão, disse:
- Você desonrou o uniforme. Pode trocar de roupa e me
entregá-lo
pessoalmente. O ato que acaba de cometer é falta grave,
passível de justa
causa. E portanto está demitido. Suas palavras judiciosas
visavam, desta vez, muito mais do que impressionar
estilisticamente a audiência, assegurar a todos que estava
fazendo o melhor possível nas circunstâncias, uma vez que o seu olhar clínico
para bêbados, vagabundos, ladrões e malucos falhara lamentavelmente naquele caso.
Inadvertidamente, estava cometendo mais um erro: suas palavras foram registradas
pela imprensa, um tanto frustrada até então com a negativa do homem da marquise
em dar qualquer depoimento em que as suas motivações se mostrassem claras. E
louco era uma palavra que os editores, a não ser os dos jornais populares,
consideravam um tanto vaga. E o
executivo não apareceu bem na história, onde, ao contrário do que pensava,
também não era sujeito, mas uma reles peça, primeiro passo numa derrocada que
se iniciaria com a sua demissão e terminaria com o seu suicídio, quando, por um
sentimento inato de justiça, viesse a aplicar em si próprio o mesmo código
severo que costumava destinar aos subordinados. Mas isso já é outra história.
Nesta, apenas os policiais ficaram impressionados. Embora
também
não encontrassem as palavras justas para dizê-lo, viram ali
uma manifestação
do poder temporal e também daquele outro, maior, que fora
ofendido numa
de suas principais personae. E, como punição exemplar aos
desesperados, mais
desespero. o
veterano de tantos incêndios e escombros de enchentes -, e disse que o rapaz só
ia trocar de roupa no hospital psiquiátrico, para onde seria levado. Suas palavras também foram registradas e, mais
uma vez, com toda a justiça, a corporação apareceu bem diante da opinião
pública, como um lampejo de esperança de que nem tudo estaria perdido.
Quanto à personagem principal da história, o homem da
marquise, ao saber do seu destino, em outras circunstâncias talvez se sentisse
ferido em seu ponto mais vulnerável, o que o teria feito, quem sabe,
aproveitando a vigilância afrouxada, pular enfim para a morte. Não por causa da
perda do salário, propriamente, pois já se encontrava há muito a um pequeno
passo do vazio econômico absoluto. Mas porque perceberia, com clareza, que a Panamericana
tinha sido até então para ele não apenas um emprego, uma firma na qual
trabalhava, mas um invólucro, materializado pelo uniforme, dentro do qual se
enfiava - ele que se sentira, desde o berço, como uma espécie de coisa oca - e
que, se não lhe fornecia uma identidade marcante, o tornava parte de uma
equipe, como no futebol, permitindo que - contrariando o regulamento -
passeasse entre os mendigos do Aterro sem sentir-se um deles, ainda que também
não tivesse nem um puto no bolso. O
sujeito do corpo de bombeiros - que indiscutivelmente surgia diante dos seus
olhos como a pessoa de maior autoridade moral, dentre todos, ali - falara numa
troca de uniformes no hospital psiquiátrico, do mesmo modo que fizera, a
propósito dele, sem titubear, um diagnóstico preciso: louco. Não havia então
por que desconfiar e ele caminhava com uma satisfação até ansiosa para trocar
de papel e de equipe.
Na verdade, ele já se encontrava sob outra jurisdição. Não
a dos dois
homens de branco que chegaram para levá-lo numa
ambulância, ele envergando
o uniforme da Panamericana e tudo. A jurisdição sob a qual
ele se
encontrava era a do “outro”, aquele alguém possível que
soprara pensamentos
em sua cabeça, sobre a marquise. E ele previa,
intuitivamente, que lá no
hospital deveria haver um pátio onde, flanando à vontade
debaixo das árvores
ou sentado num banco, ele teria todo o tempo do mundo para
encontrar e
conhecer o tal “outro”, até que os dois se tornassem a
mesma pessoa e falassem
com a mesma voz.
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