quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Poema de Sete Faces Carlos Drummond de Andrade




Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na

vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus,

pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do

bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma

solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o

diabo.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Cogito Torquato Neto





eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível


eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora


eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim


eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.


segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Guardar Antonio Cicero



Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.



sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Esse punhado de ossos (Ivan Junqueira A Moacyr Felix)


Esse punhado de ossos que, na areia,
alveja e estala à luz do sol a pino
moveu-se outrora, esguio e bailarino,
como se move o sangue numa veia.
Moveu-se em vão, talvez, porque o destino
lhe foi hostil e, astuto, em sua teia
bebeu-lhe o vinho e devorou-lhe à ceia
o que havia de raro e de mais fino.
Foram damas tais ossos, foram reis,
e príncipes e bispos e donzelas,
mas de todos a morte apenas fez
a tábua rasa do asco e das mazelas.
E ai, na areia anônima, eles moram.
Ninguém os escuta. Os ossos choram.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Versos Íntimos Augusto dos Anjos



Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Leminski



um bom poema
leva anos
  cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
  seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
  sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
  três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
  uma eternidade, eu e você,
caminhando junto
Paulo Leminski


terça-feira, 9 de outubro de 2012

Cenário (Cecília Meireles)



Passei por essas plácidas colinas
e vi das nuvens, silencioso, o gado,
pascer nas solidões esmeraldinas.


Largos rios de corpo sossegado
dormiam sobre a tarde, imensamente,
e eram sonhos sem fim, de cada lado.


Entre nuvens, colinas e torrente,
uma angústia de amor estremecia
a deserta amplidão na minha frente.


Que vento, que cavalo, que bravia
saudade me arrastava a esse deserto,
me obrigava a adorar o que sofria?


Passei por entre as grotas negras, perto
dos arroios fanados, do cascalho
cujo ouro já foi todo descoberto.


As mesmas salas deram-me agasalho
onde a face brilhou de homens antigos,
iluminada por aflito orvalho.


De coração votado a iguais perigos,
vivendo as mesmas dores e esperanças,
a voz ouvi de amigos e inimigos.


Vencendo o tempo, fértil em mudanças,
conversei com doçura as mesmas fontes,
e vi serem comuns nossas lembranças.


Da brecha tenebrosa aos curvos montes,
do quebrado almocafre aos anjos de ouro
que o céu sustêm nos longos horizontes,


tudo me fala e entende do tesouro
arrancado a estas Minas enganosas,
com sangue sobre a espada, a cruz e o louro.


Tudo me fala e entendo: escuto as rosas
e os girassóis destes jardins, que um dia
foram terras e areias dolorosas,


por onde o passo da ambição rugia;
por onde se arrastava, esquartejado,
o mártir sem direito de agonia.


Escuto os alicerces que o passado
tingiu de incêndio: a voz dessas ruínas
de muros de ouro em fogo evaporado.


Altas capelas contam-me divinas
fábulas. Torres, santos e cruzeiros
apontam-me altitudes e neblinas.


Ó pontes sobre os córregos! ó vasta
desolação de ermas, estéreis serras
que o sol freqüenta e a ventania gasta!


Rubras, cinéreas, tenebrosas terras
retalhadas, por grandes golpes duros,
de infatigáveis, seculares guerras...


Tudo me chama: a porta, a escada, os muros,
as lajes sobre mortos ainda vivos,
dos seus próprios assuntos inseguros.


Assim viveram chefes e cativos,
um dia, neste campo, entrelaçados
na mesma dor, quiméricos e altivos.


E assim me acenam por todos os lados.
Porque a voz que tiveram ficou presa
na sentença dos homens e dos fados.


Cemitério das almas... – que tristeza
nutre as papoulas de tão vaga essência?
(Tudo é sombra de sombras, com certeza...


O mundo, vaga e inábil aparência,
que se perde nas lápides escritas,
sem qualquer consistência ou conseqüência.


Vão-se as datas e as letras eruditas
na pedra e na alma, sob etéreos ventos,
em lúcidas venturas e desditas.


E são todas as coisas uns momentos
de perdulária fantasmagoria
– jogo de fugas e aparecimentos.)


Das grotas de ouro à extrema escadaria,
por asas de memória e de saudade,
com o pó do chão meu sonho confundia.


Armado pó que finge eternidade,
lavra imagens de santos e profetas
cuja voz silenciosa nos persuade.


E recompunha as coisas incompletas:
figuras inocentes, vis, atrozes,
vigários, coronéis, ministros, poetas.


Retrocedem os tempos tão velozes,
que ultramarinos árcades pastores
falam de Ninfas e Metamorfoses.


E percebo os suspiros dos amores
quando por esses prados florescentes
se ergueram duros punhos agressores.


Aqui tiniram ferros de correntes;
pisaram por ali tristes cavalos.
E enamorados olhos refulgentes


– parado o coração por escutá-los –
prantearam nesse pânico de auroras
densas de brumas e gementes galos.


Isabéis, Dorotéias, Eliodoras,
ao longo desses vales, desses rios,
viram as suas mais douradas horas


em vasto furacão de desvarios
vacilar como em caules de altas velas
cálida luz de trêmulos pavios.


Minha sorte se inclina junto àquelas
vagas sombras da triste madrugada,
fluidos perfis de donas e donzelas.


Tudo em redor é tanta coisa e é nada:
Nise, Anarda, Marília... – quem procuro?
Quem responde a essa póstuma chamada?


Que mensageiro chega, humilde e obscuro?
Que cartas se abrem? Quem reza ou pragueja?
Quem foge? Entre que sombras me aventuro?


Que soube cada santo em cada igreja?
A memória é também pálida e morta
sobre a qual nosso amor saudoso adeja.


O passado não abre a sua porta
e não pode entender a nossa pena.
Mas, nos campos sem fim que o sonho corta,


vejo uma forma no ar subir serena:
vaga forma, do tempo desprendida.
É a mão do Alferes, que de longe acena.


Eloqüência da simples despedida:
”Adeus! que trabalhar vou para todos!...”
(Esse adeus estremece a minha vida

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O peixe de ouro Haroldo Maranhão



De borracha é a cintura do peixe de ouro, uma curva infinita cavada na
carne. E são deletéreas as pernas do peixe de ouro, que se locomove
como se fosse o corpo acionado por molas. O andar é elástico, o andar do
peixe de ouro, e balança a cabeleira cor de charuto no dorso lisíssimo, tapando
a nuca. Não vejo a cara do peixe de ouro, sigo-lhe os passos, vejo-lhe as ancas,
de potranca, a roupa é rubra, a carne, de ouro, a carne do peixe de ouro. De repente o peixe inclina a cabeça e percebo, não há quem não perceba, um perfil de penugens que o sol divulga, nítido. Segue o peixe, segue, todo um rio o segue, rio de bichos, somos todos bichos, mordemos com vigor o músculo das ancas, arrancamos pedaços da anca, da melhor anca, da melhor.
Guardo no meu casaco o nobre fragmento da anca do peixe de ouro, e quero
ao menos um fio, um fio ao menos dos cabelos, mas já a cabeleira foi roubada
à força, quando voava descobrindo o pescoço. Cravo meus dentes na nuca
do peixe de ouro e bebo-lhe um mel, sugo aflito, como a uma fruta, meus
lábios ficam encharcados, escorre o mel, caem gotas na pedra, minha camisa
ensopa-se de baba e mel, um mel raro. Desoladamente constato que trepida
a epiderme desgarrada de seu recheio, em mantas, fiava pele há pouco
distendida em curvas, ora couro plissado, de gelhas. Peixe de ouro perde aos
poucos seu revestimento muscular, sangra, ossos despontam, interligados por
tendões, cartilagens, restos de carne. Com enorme rudez puxo um nervo
longo e de bom calibre para encordoar determinada viola d’amore. Desloco,
e com delicadeza removo uma vértebra do peixe, como quem se serve de um
doce, sorvo o creme vertebral e trituro a fina peça mal calcificada. A meu
lado, alguém empunha uma das tíbias como dava, e é milagre a sobrevida
do peixe de ouro, que não obstante prossegue sustentado não sei por que
espécie de fundamento. Poucos ossos, quase nenhum, raros tendões, nenhuma
carne. Agarro para mim a fossa ilíaca; luto por ela, ela me dilacera as mãos, mas é minha, conquistei-a, será o prato real onde comerei. Sigo, seguimos, impulsionados pelo mero costume, pois a unidade se partiu em blocos, o que era peixe não é, senão partículas, pó, aura, microtalco, microtalco de ouro.