De borracha é a cintura do peixe de ouro, uma curva infinita
cavada na
carne. E são deletéreas as pernas do peixe de ouro, que se
locomove
como se fosse o corpo acionado por molas. O andar é elástico,
o andar do
peixe de ouro, e balança a cabeleira cor de charuto no dorso
lisíssimo, tapando
a nuca. Não vejo a cara do peixe de ouro, sigo-lhe os
passos, vejo-lhe as ancas,
de potranca, a roupa é rubra, a carne, de ouro, a carne do
peixe de ouro. De repente o peixe inclina a cabeça e percebo, não há quem não
perceba, um perfil de penugens que o sol divulga, nítido. Segue o peixe, segue,
todo um rio o segue, rio de bichos, somos todos bichos, mordemos com vigor o músculo
das ancas, arrancamos pedaços da anca, da melhor anca, da melhor.
Guardo no meu casaco o nobre fragmento da anca do peixe de
ouro, e quero
ao menos um fio, um fio ao menos dos cabelos, mas já a
cabeleira foi roubada
à força, quando voava descobrindo o pescoço. Cravo meus
dentes na nuca
do peixe de ouro e bebo-lhe um mel, sugo aflito, como a uma
fruta, meus
lábios ficam encharcados, escorre o mel, caem gotas na
pedra, minha camisa
ensopa-se de baba e mel, um mel raro. Desoladamente constato
que trepida
a epiderme desgarrada de seu recheio, em mantas, fiava pele
há pouco
distendida em curvas, ora couro plissado, de gelhas. Peixe
de ouro perde aos
poucos seu revestimento muscular, sangra, ossos despontam,
interligados por
tendões, cartilagens, restos de carne. Com enorme rudez puxo
um nervo
longo e de bom calibre para encordoar determinada viola d’amore.
Desloco,
e com delicadeza removo uma vértebra do peixe, como quem se
serve de um
doce, sorvo o creme vertebral e trituro a fina peça mal
calcificada. A meu
lado, alguém empunha uma das tíbias como dava, e é milagre a
sobrevida
do peixe de ouro, que não obstante prossegue sustentado não
sei por que
espécie de fundamento. Poucos ossos, quase nenhum, raros
tendões, nenhuma
carne. Agarro para mim a fossa ilíaca; luto por ela, ela
me dilacera as mãos, mas é minha, conquistei-a, será o prato real onde comerei.
Sigo, seguimos, impulsionados pelo mero costume, pois a unidade se partiu em blocos,
o que era peixe não é, senão partículas, pó, aura, microtalco, microtalco de
ouro.