A história do leitor teve origem na expansão da imprensa e seu desenvolvimento está relacionado a uma ampliação do mercado do livro, ao crescimento da escola e à alfabetização das populações urbanas, bem como ao surgimento da família burguesa, entre outros. A operacionalização da imprensa, que antes era tarefa do Estado, passou a ser uma atividade empresarial e, portanto, dirigida para o lucro. Tal fato só foi possível graças ao crescimento de uma clientela que dominava a habilidade de ler, em decorrência da obrigatoriedade do ensino. A valorização da família era sustentada por uma ideologia que preservava o amor filial, mitificava a maternidade, pregava deveres entre pais e filhos, dando-lhe laços internos fortes, mas separando-a dos grandes grupos a que se agregava anteriormente. Este fato torna a família, miniatura da sociedade idealizada, frágil no aspecto político, porém fator fundamental na constituição da sociedade moderna. Assim, a leitura se consolida no interior deste tipo de família por se constituir numa atividade adequada à privacidade requerida por ela e própria à atividade doméstica. Acrescenta-se a este fato a necessidade da difusão da Bíblia por grupos religiosos protestantes e reformistas que apregoavam a aprendizagem da leitura como habilidade necessária à formação moral de seus seguidores. Desta forma, a leitura de folhetins religiosos semanais e da Bíblia passa a fazer parte do cotidiano do lar burguês, de forma individual ou coletiva, em voz alta ou silenciosa, constando das representações imaginárias da classe média, apresentadas em pinturas e fotografias num ambiente de paz doméstica.
As práticas associadas aos modos tradicionais de narrar, de forma oral, de grande sentido comunitário, especialmente no meio rural, foram transportadas para o meio urbano e se estabeleceram no universo da família burguesa. Por esse motivo os primeiros livros de sucesso na Europa foram baseados em uma apropriação dos contos populares narrados no meio rural.
Chartier e Hébrard (1995), em seus estudos sobre um século de leitura (1880 a 1980) na França, questionam se teria havido um tempo em que ler valia por si e não existiam grandes polêmicas sobre o assunto, ao contrário do que acontece atualmente quando se diz que não se lê mais. Uma das análises feita revela que, no século XIX, as preocupações eram com o ingresso da sociedade no mundo letrado e as reclamações eram de que o povo lia demais, ou lia qualquer coisa. Houve um momento em que a leitura não era objeto de um discurso específico e falar sobre a leitura consistia em falar de suas próprias leituras em reuniões informais, ou em lugares em que se exercia a crítica. A pesquisa levou à conclusão de que a valorização incondicional da leitura (preocupação com os iletrados) surgiu após os anos 1950 com o aparecimento de discursos prescritivos que valorizavam um tipo ideal de leitura ou representações que denunciavam as más leituras.
Torna-se importante assinalar que a figura do leitor enquanto papel de materialidade histórica, assim como a leitura como prática coletiva surgiram no contexto das sociedades burguesas relacionadas à economia capitalista. Os leitores tornam-se, então, público consumidor numa das primeiras manifestações da indústria do lazer.Por muito tempo, as bibliotecas na França pertenceram a instituições ou eram privadas e foi somente em 1790 que se pensou em ofertar os acervos ao povo em geral, surgindo, assim, as primeiras bibliotecas nacionais. Em 1839 houve uma preocupação com a rede de bibliotecas, quando se percebeu que esta usava as subvenções apenas em gastos com pessoal. As bibliotecas públicas passam a ser lugares de conservação e surgem os primeiros bibliotecários devotados a salvar o patrimônio público, pois era preciso cuidar dos leitores que esqueciam de manipular um objeto precioso como o livro com cuidado. A seguir, o leitor foi até considerado um obstáculo ao bom funcionamento da biblioteca em que os funcionários não estão a serviço do leitor e sim dos livros, cuidando de sua catalogação, manutenção e reparo.
No mesmo estudo, Chartier e Hebrard (1995) referem-se aos professores primários do século XIX como bibliotecários circunstanciais à época da implantação das bibliotecas escolares, pois estas definiam suas identidades e posição na hierarquia cultural, já que mostravam que para instruir o povo e conservar o saber os professores deveriam trabalhar arduamente. Assim, o professor era o primeiro leitor da biblioteca escolar e único que poderia percorrê-la integralmente. Os autores consideram que esses fatores influenciaram os discursos sobre a leitura que se seguiram.
Atualmente existem dois discursos: o da escola em relação à leitura e o da leitura sobre a escola. O primeiro é interno, correspondente ao discurso dos profissionais, tratando dos fins e dos meios da leitura, baseado na vocação da escola para ensinar a ler. O outro, externo, vem dos porta-vozes do grande público, como a imprensa e a mídia, ancorados, talvez, em discursos seculares, analisando o trabalho feito pela escola com a leitura. Nesse momento, há um paradoxo nos discursos vindos da escola, pois esta assume como sua uma norma que não cabe só a ela, mas sim a um âmbito social muito maior. Enquanto os discursos da igreja e dos profissionais da leitura pública seguiam um padrão mais autônomo, os da escola mostravam uma permeabilidade a várias influências, prescrevendo representações alheias a ela.
Pesquisando textos oficiais e textos destinados à formação do pessoal do ensino, os autores acima citados concluem que os primeiros “prescrevem uma escola ideal, coerente e eficaz, na qual os meios e os fins se articulam de modo seguro, sem jogo ou atritos, na evidente racionalidade das palavras que explicam pacientemente o que deve ser o mundo e como fazer para que ele assim seja” (p. 249). Já, nos segundos, é encontrada uma literatura pedagógica para profissionais da escola, que emprega vários suportes como coleções publicadas por autores clássicos, revistas especializadas, boletins ou circulares destinados a professores, manuais escolares e, em alguns momentos de florescimento do tema escola, na imprensa e na mídia. São esses discursos, também, os que com maior rapidez se inscrevem à conjuntura social.
Como conclusão dessas análises, os pesquisadores percebem, nos anos 1970, um rompimento com um passado pedagógico quando é proposto o aprendizado da leitura como um aprendizado longo, com atenção às diferenças individuais, acrescido de um preparo da compreensão, necessária desde o início do aprendizado de acordo com a idéia de que a compreensão se dá antes da oralização. Desta forma, a leitura silenciosa é introduzida como um objetivo essencial da aprendizagem infantil e a leitura em voz alta é criticada, além de ser considerada como uma técnica difícil.
Mesmo com a democratização do ensino permaneceu como base do ensino a leitura de “bons autores”, com a leitura seguida e explicada do professor. Tal modelo não resistiu às constatações de uma crise no ensino da língua, foram adotadas técnicas variadas de escrita, exigidas em avaliações, tornando-se o trabalho da escrita mais importante do que o da leitura. Nesse momento, a escola passa a trabalhar com uma multiplicidade de textos, a leitura deixou de ser um fim e passou a ser um meio de conhecimento, instrumento de reflexão e a escola passa a adotar os exercícios escritos como base da formação. A leitura-formação, informativa e de entretenimento dá lugar a uma nova era de formação pela escrita. Desta maneira, no sistema educacional francês entre os anos de 1960 e 1980, como resultado de uma escolarização de massa, o principal problema era de que parte significativa de alunos da sexta série tinha dificuldade para ler, dificultando a realização dos estudos secundários. Assim, os pesquisadores concluem que o acesso à cultura do texto pela leitura não se dá apenas por injunções políticas. A escola escolarizou o conjunto do espaço social no momento em que parecia ter perdido o território específico da leitura, pois constituiu todas as leituras como leituras a avaliar, ou seja, leituras escolarizáveis.
Joyce Sanchotene
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