Toda e
qualquer forma de linguagem é criada pela cultura de um povo que define
correspondências, formando um sistema definidor das representações deste mesmo
povo sobre o mundo, portanto, a linguagem cria, dá significado ao mundo. Assim,
tanto falantes quanto leitores somos obrigados a ver o mundo por meio das configurações
das línguas e, de acordo com filósofos da linguagem como Wittgenstein (1996) e
Austin (1986), o que entendemos como real significa o sentido que lhe
atribuímos. Desta forma, aquilo que é dito depende de quem fala e da sua
ideologia, bem como depende do ouvinte. No caso de um grupo social estar
dominado por um só ponto de vista, contamina outros discursos e assim se perde
a polifonia de vozes. A escrita tem um papel perverso neste processo, pois pode
fixar significados, reforçando interpretações. Porém, na oralidade que antecede
a escrita se insinua a criação de sentidos, pois o homem ao mesmo tempo que
nomeia a natureza está interpretando-a, atribuindo significado, funções e
designações, ou seja, está lendo.
Yunes (2002)
considera que da mesma forma que a escrita não suprimiu a oralidade, continua
preservada a condição de leitor que pratica o tipo de leitura acima descrito,
uma camada secundária dentro da oralidade, intensamente presente na cultura
alfabetizada, porém, atualmente condicionada ideologicamente pela mídia. Assim,
O
mundo já aparece interpretado consoante as vozes que o manipulam, dos
telejornais às telenovelas, dos comentários às entrevistas que alienam contextos
para naturalizar práticas. (YUNES, 2002, p.54)
Da forma
explicitada acima, idealmente, todos somos leitores, embora os marginalizados
da alfabetização, muitas vezes não se considerem assim, pois não lhes é dada a
condição de construção de um imaginário a partir da linguagem escrita no meio
em que está inserido, isto é, sua capacidade de leitura é censurada.
Desta maneira,
sabendo que só escreve quem lê, é importante acrescentar que, na
pós-modernidade, precisamos ter clareza de que na leitura de mundo também está
presente uma leitura oriunda da escrita. A cidadania em nossos tempos não é a
mesma do século XIX, pois, neste último, havia a necessidade de formação de uma
sociedade em harmonia com uma nação, hoje, porém, há a necessidade de sobrevivência
humana à diversidade social. Para Yunes (2002), é importante a revisão da
história da leitura no sentido de corolário da escrita.
Sabemos que o
homem, desde os primórdios de sua existência, ao registrar, de várias formas, suas
impressões ou interpretações, realizava uma escrita não-alfabética como produto
de uma leitura precedente. Por outro lado, tal valorização da leitura poderia
levar ao pensamento de que a codificação imobiliza a mensagem, já que
preexistia à escrita. Tal fato, então, acarretaria a imobilidade da leitura,
situação que de fato ocorreu durante muitos séculos, a favor das ideologias
dominantes, juntamente com aqueles autorizados a ler, isto é, decodificando e
interpretando signos definidos a priori.
Por muito
tempo, o registro da participação do leitor ao longo da história não se
importou com o exercício de interpretação por ele exercido, mas sim com gestos
posturais, movimentação dos lábios, fonação etc. Tal aspecto era visto como um
reconhecimento na escrita dos sentidos retidos nela inscritos pelo poder
social. O sentido absoluto do que era registrado na escrita só se modificou com
o surgimento de sociedades de caráter democrático, mais recentemente, quando
houve a repercussão de valores e necessidades comuns entre classes sociais
diferentes, fato que colocou em dúvida a valorização do escrito como verdade
única.
Mais
recentemente, apesar do grande valor da escrita em nossa sociedade, sabemos de
estudos que destacam a mobilidade dos signos, regida por usuários que criam
novas referências, transformam as formas e sua ordem, criam discursos neste
espaço onde realmente acontece a leitura. Yunes (2002) usa as seguintes
palavras de Michel de Certeau para exemplificar este fato:
Bem
longe de serem escritores, fundadores de um lugar próprio, herdeiros dos
lavradores de antanho - mas, sobre o solo da linguagem, cavadores de poços e
construtores de casa –os leitores são vigilantes: eles circulam sobre a terra
de outrem, caçam, furtivamente, como nômades através de campos que não
escreveram, arrebatam os bens do Egito para com eles se regalar. A escrita
acumula, estoca, resiste ao tempo pelo estabelecimento de um lugar, e
multiplica a sua produção pelo expansionismo da reprodução. A leitura não se
protege contra o desgaste do tempo ( nós nos esquecemos e nós a esqueceremos);
ela pouco ou nada conserva de suas aquisições e cada lugar por onde ela passa é
repetição do paraíso perdido. (CERTEAU, apud Yunes, 2002, p. 55)
Assim, para
Yunes (2002, p. 56) “a escrita é um instantâneo no fluxo das leituras, ato
contínuo que se interrompe para registro, por um lado; por outro o exercício de
que fala de Certeau: desimobilizar o texto alheio, insuflando-lhe vida nova
pela sua reinserção no circuito de significação”.
Desta forma, é
possível dizer que a força do escrito vem do leitor, que a ela atribui um
sentido em um contexto histórico determinado. A oralidade anterior à escrita,
ou mesmo as sociedades ágrafas fundaram sua organização e cidadania na
confiabilidade da palavra oral. Já em nossa era, a oralidade está contaminada
pela escrita e as práticas de leitura são, na maioria das vezes, condicionadas
pelas forças ideológicas dominantes, principalmente no ambiente escolar.
Atualmente,
uma questão importante para os estudiosos da linguagem e da educação refere-se
ao objetivo do ensino da língua materna: desenvolver um padrão lingüístico,
norma padrão, ou reproduzir a ordem social vigente. De acordo com Silva (2002):
A
escola brasileira, ainda que pseudodemocratizada, no que diz respeito à língua materna, persegue, no geral, a
tradição normativo-prescritiva, (...). A
conseqüência disso para quem tenha algum verniz de formação lingüística é
óbvia: muitas e variadas normas chegam à escola
e essa persegue ainda um ideal normativo tradicional. A grande maioria cala e
tem que deixar a escola para lutar pela sobrevivência quotidiana e continuará
subalterno, na sociedade que se reproduz de geração a geração, deixando o poder
e a voz com aqueles que, por herança, já os adquiriram.( SILVA, 2002, p. 33)
De forma
similar a Silva (2002), Magnani (2001) declara:
A
escola, por sua vez, na medida em que trabalha primordialmente com a palavra,
“signo ideológico por excelência”, institucionaliza códigos de leitura e
escrita, os quais se baseiam em uma concepção de língua enquanto sistema de
normas forjadas por uma classe, mas aprendidos e utilizados como se fossem
naturais e espontâneos, e prepara um perfil de leitor que servirá de parâmetro
para a produção de livros. (Magnani, 2001, p.8)
A escola, em
função de tais aspectos, torna-se um dos principais agentes da atuação das
ideologias, atuando por meio da legislação, programas de ensino, conteúdos,
metodologias e avaliação na inculcação de um padrão para orientar o
comportamento dos indivíduos. Como existem brechas nessas relações, surgem
contra-ideologias que logo são combatidas pelo Estado na forma de reformas de
ensino, reorganização curricular, projetos, entre outros.
Joyce Sanchotene
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