sexta-feira, 11 de maio de 2012

Calor Luiz Vilela

Calor, muito calor ainda — o sol batendo na parede do quarto —, mas ele agora sentia-se melhor. — Você aqui é como uma brisa... Ela sorriu, alegre e bonitinha nos seus quinze anos. — Mais cedo eu tive a visita de uma amiga — ele contou, a cama com a cabeceira erguida: — mas ela é tão feia, tão feia que o meu quadro de saúde até piorou. Ela riu. — Quem, tio?... — Não, isso eu não posso te contar — Por quê? — Você conta pros outros... — Juro que eu não conto. — Só posso te contar isso: que ela é tão feia, que eu quase piorei; quase tive de tomar uma injeção. Ela deu uma risada. — Pois é — ele disse; — é isso. Eu estava assim. Mas a. você chegou, e aí eu melhorei; agora eu estou bem... Sentada numa das três cadeiras do quarto, ela, de shortinho, cruzou as pernas; depois jogou para trás os longos e lisos cabelos castanhos. — Eu queria vir ontem à tarde — ela disse; — mas a minha professora de inglês trocou o horário, e aí... — Foi melhor — ele disse, — melhor você ter vindo hoje: ontem eu estava ruim, estava sentindo muita dor ainda. — Mas a operação correu bem... — Correu; correu tudo bem, felizmente. — E o corte, foi grande? — O corte? Uns... Alguns centímetros. Você quer ver? Você está pensando em ser médica... — É, eu estou pensando... Ela se levantou e se aproximou da cama. Ele, de peito nu, afastou o lençol; depois empurrou um pouco a cueca e... — Ôp! — cobriu rápido; — o passarinho querendo fugir... Ela riu. — Aqui — ele mostrou: — o corte vai daqui ate aqui... Ela ficou olhando — as tiras de esparadrapo sobre a gaze, a pele vermelha de merthiolate. — É grande, não é? — ele disse. Ela balançou a cabeça, concordando Voltou então a sentar—se. Os dois calados. Uma tosse de velho lá no fim do corredor. — Fui te mostrar uma coisa — ele disse, — e você acabou vendo outra... — Eu? — ela disse. — Eu não vi nada. — Não?... — Você cobriu! — Ah... — Por que você cobriu? — Por quê?... Ela riu: — Estou brincando, hem tio? Não vai achar que eu... — Bom — ele disse: — se você quer ver de novo... — Eu não! — ela disse, olhando assustada para o corredor. — Não?... — Não. — Por quê? — Por quê?... Ela riu, mas não respondeu. — Hum? — Pra você depois contar pros seus amigos, né?... — Contar pros meus amigos?... — Claro — ela disse. — Lá no bar, lá na sua rodinha, depois de tomar umas tantas, você vai dizer: "Sabem aquela minha sobrinha, a Daniela?...” — Não, não vou falar isso não; não vou falar pra ninguém. — Sei... — Palavra de honra. — Acredito muito... — Eu prometo. Só nós dois saberemos. Será um segredo nosso: até a morte. — Hum... Muito bonito... — Juro. Pode acreditar em mim. — Você não quis acreditar em mim... — Eu? — Agora há pouco. — Mas aquilo era uma coisa à toa. — E isso? — Isso? Bom, isso... — Hum; o que é isso? — Eu acho que isso é uma coisa bonita, uma coisa entre um homem e uma mulher; entre um adulto e uma jovem; uma coisa entre um tio e uma sobrinha que se querem. — Eu, pelo menos... — Eu também, Daniela; eu também te quero; quero muito, você pode ter certeza. — Você é o meu tio mais legal, o único de cabeça aberta, o mico com quem dá pra conversar. — Obrigado... — Se fossem os outros... Se fossem os outros, eu nem tinha vindo aqui. — É? — Tio Breno, por exemplo: Tio Breno mal me cumprimenta; como se eu não existisse. Tio Jerônimo de vez em quando ainda dá umas prosas, mas eu acho que a única coisa no mundo que interessa para ele é boi; ele só fala em boi, e agora na falta de chuva: que se não chover dentro de poucos dias, ele vai perder não sei quantas cabeças de gado e que... Ele só fala nisso. Eu acho que ele nem dorme, pensando nos bois dele... Ele riu. — Já a Tia Zilda... Tia Zilda é aquela fera. Ela vive no meu pé. Agora ela deu pra implicar com os meus shortinhos: "Por que essa menina não anda pelada de uma vez?..." — Ótimo . — Ótimo?... — ela riu. — Quê que é ótimo?... — A Zilda falar assim. — Ah... — Agora, você andar pelada... Sinceramente: se de shortinho já é isso que a gente vê, pelada... — Tio... Ele riu. — Você está com febre?... — ela perguntou. — Não... — Então é o calor. — Quem sabe? — Eu nunca te vi assim... Uma enfermeira passou, em direção ao fundo, e deu uma olhada para dentro do quarto. A tosse do velho. Um bebê chorando. Vozes. De novo o silêncio. — Bom, mas então. — ele disse; — quer dizer que você não quer mesmo... — O quê? — Ver; ver de novo... — Não. — Então tá; fim de papo... Ela curvou—se para amarrar melhor o cadarço. Depois ergueu o pé, mostrando para ele: — Que tal? Gostou do meu tênis? — Gostei. E você, gostou do meu pênis? — Tio!... — ela disse, se levantando e pondo a mão na boca. — É só pra fazer um trocadilho... — Você hoje está impossível, hem? — Eu não ia perder a oportunidade de fazer esse trocadilho... — Você hoje... você está precisando de umas palmadas, viu? — Dá, dá as palmadas; suas palmadas seriam como... seriam como uma chuva de plumas em meu corpo. — Uai: você agora virou poeta? Ele riu. — Você hoje está um perigo... — Eu?... Que perigo pode ter um homem preso numa cama de hospital?... — Hum... Muito perigo!... Ele tornou a rir. — Você... — ela disse, se abanando com as mãos, os seios saltitando soltos sob a blusa. A enfermeira passou de volta, sem olhar para o quarto. — Bom, mas então... — ele disse; — quer dizer que o nosso assunto está mesmo encerrado... — Que assunto? — O nosso assunto... — Está. — Encerrado?... — Está. — Definitivamente?... — Definitivamente. — É... — ele disse; — é uma pena... — Pois é... Ela então andou devagar até a cama, encostando-se na beirada — as coxas bronzeadas de sol. Passou a mão de leve no braço dele: — Tio Leo, Tio Leo... — O quê — Não acredite em tudo que eu falo, tá?... — Não?... Ela negou com a cabeça. — Quer dizer que... Ela sacudiu a cabeça. — Ótimo... — ele disse. Olhou pela porta aberta, em direção ao corredor; ela também olhou. Então ele encolheu as pernas, fazendo com elas uma parede: afastou o lençol, e depois... — Nossa! — ela disse. — Tio!... — Pega. — Pode?... — Você me daria a maior felicidade. — Mesmo?... — Eu seria o homem mais feliz do mundo. Ela olhou para o corredor — Está com medo? — ele perguntou. — Não; eu... — Pega. Ela parada. — Você não quer? — Quero, mas... De repente ela puxou o lençol sobre ele. — Quê que foi?... — Nada — ela disse, nervosa; — eu que... Desculpe, tio... — Tudo bem... Ela foi até a janela e ficou, meio de costas, olhando para baixo. Da rua, quase sem barulho, veio a buzina de um picolezeiro. Ela deu um suspiro fundo: — Tem dia que eu tenho vontade de morrer... — Por quê? — Viver é complicado demais... — É assim mesmo — ele disse. Ela tornou a sentar-se, as mãos apoiadas nas coxas, o olhar fixo no chão e os cabelos quase cobrindo o rosto. — Acho que eu já vou... — Embora? — É... — Por quê? — Eu preciso... — Fica mais. — Não posso... — Fica... Ela olhou para ele — e de novo para o chão: — Eu não vou fazer mais nada — disse, com languidez;se é isso... — Não, não é isso. — Acho que a gente não devia ter feito o que a gente fez... — A gente não fez nada! — Não sei quê que me deu na hora... Às vezes acho que eu não bato bem... Ele ficou em silêncio. — Eu... — Está bem, Daniela — ele disse, ajeitando-se um pouco na cama e depois puxando o lençol até o peito. — Eu sou uma criança ainda, tio... Ele sacudiu a cabeça. — Meu corpo pode não ser mais de criança, mas eu ainda sou uma criança, entende? Eu sou muito inexperiente; eu não sei nada da vida, nada... — Esqueça o que houve; você esquece, e eu também esqueço. Tá? — Eu sou uma menina bem-comportada; eu não sou como algumas amigas minhas, algumas que já vão até em motel e... Ela se calou. O sol já sumira do quarto, e o calor diminuíra; em breve começaria o crepúsculo. Ela se levantou: — Eu já vou: às vezes amanhã, depois da aula, eu dou uma passadinha aqui. — É melhor você não passar. — É? — o espanto no rosto. — Então eu não passo. — Eu acho que... — Tiau — ela disse, e saiu do quarto. Ele ficou algum tempo olhando para o corredor. Depois, estirou as pernas — devagar, para não doer —, estendeu os braços ao longo do tronco e respirou fundo: — Merda — disse. Fechou então os olhos, para dormir um pouco. Mas, de súbito, quase num susto, abriu-os: ela estava ao pé da cama, olhando para ele — os olhos vermelhos. — O que houve?... — Eu voltei. — Eu estou vendo. — Você foi muito rude. — Rude?... — Você me magoou muito. — Eu?.. — Eu vim aqui te fazer uma visita... Uma lágrima deslizou pelo rosto. — Eu vim aqui pra... Limpou com o dedo outra lágrima. — Eu sei, Daniela, eu compreendo; eu gostei muito de você ter vindo. — Gostou... Gostou, mas... — Sabe?... Eu vou te dizer: essa cirurgia, as dores, as injeções, o soro, ficar o dia inteiro nessa cama sem poder mexer direito e, ainda por cima, nesse calor horroroso, tudo isso perturba muito a gente, Daniela... Ela escutando. — Tudo isso faz com que... E então... Sabe? É horrível, principalmente passar horas inteiras sozinho nesse quarto, olhando para essas paredes brancas; isso é o pior de tudo. E era por isso que eu queria que você ficasse mais; era por isso... — Eu fico — ela disse. — Fica?... Você fica mais?... Ela balançou a cabeça. — Que bom... — Mas tem uma condição — ela disse — Eu já te falei que é pra esquecer isso, não falei? — Não, minha condição não é essa... — Não? Qual que é a condição? Ela fez uma cara de mistério; deu meia-volta, andou até a porta e afastou com o pé a trava no chão; depois fechou a porta e girou a chave. Então voltou-se: olhou para ele e sorriu. — Sabe — ele disse. — Sabe de uma coisa? Você é uma menina surpreendente. — E bem-comportada; esqueceu?...

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