segunda-feira, 28 de maio de 2012
Estão apenas ensaiando Bernardo Carvalho
Estão apenas ensaiando. Ao mesmo tempo em que os dois atores avançam
pelo palco, saindo das coxias à esquerda para o centro da cena, um
homem entra na sala escura, e com ele uma nesga da luz das cinco pela fresta
da porta que entreabriu ao fundo e que separa a platéia do hall e da rua, onde
o dia segue o seu curso com um burburinho de buzinas, motores e sirenes.
O diretor, na quinta fila, procura com a mão, tateando, a coxa de sua
assistente, para lhe dizer alguma coisa ao ouvido, e o iluminador interrompe
a piada que ia sussurrando ao técnico a seu lado, no mezanino, já que
retomam a cena. Quando os dois atores colocam os pés de novo no palco,
avançando das coxias à esquerda para o centro, e interrompendo também o
que sussurravam um ao outro nos bastidores, para passar em alto e bom som
ao diálogo que decoraram, o homem que acabou de entrar ao fundo é ainda
menos que um vulto sem rosto, porque já não tem nem mesmo a nesga de
luz das cinco para destacá-lo da penumbra, agora que a porta que separa a
sala escura do hall e da rua se fechou. O diretor com a mão na coxa da
assistente, depois de lhe sussurrar qualquer coisa ao ouvido, que a faz rir
baixinho, controlada, espera ansioso, e pela enésima vez, que a fala seja dita
pelo ator com a entonação desejada, e o iluminador, no mezanino, aguarda
por seu turno uma nova interrupção - no fundo, mesmo que inconscientemente,
torce por mais um fracasso da interpretação, para poder terminar de uma vez por todas a piada que contava ao técnico.
Um ator diz ao outro, no centro do palco: "Você é o malfeitor; e por
isso preciso saber quem é você, onde está, de onde vem, do que é capaz para
ter tamanho poder e me provocar sem prevenir, devastando o meu pasto
verdejante, e minando, para derrubá-lo, o meu muro de arrimo." E é quando
o outro, que embora sem a foice ou o manto (estão apenas ensaiando)
responde pela morte, vai abrindo a boca, que o diretor mais uma vez, tirando
a mão da coxa da assistente, interrompe a cena com um gesto, para perguntar
num tom propositalmente inaudível, de tão irritado que está, quantas vezes
mais vai ter de explicar.
Ele repete, como se falasse para dentro, que se trata de um texto do
século XV, que o humilde lavrador invoca a morte (aqui representada por
um homem) com as palavras que lhe restam como último recurso, quer que
ela se compadeça dele e lhe devolva a mulher adorada, vítima das atrocidades
da guerra. O diretor repete irritado que falta vigor à interpretação do ator,
e
desespero, não parece que o humilde lavrador esteja realmente sofrendo ou
indignado pela injustiça da morte da mulher na flor da idade. Diz isso aos
dois atores e depois, enquanto eles voltam para as coxias, sussurra a mesma
coisa ao ouvido da assistente, arrematando com uma gracinha que a faz
sacudir num risinho sincopado.
De volta às coxias, o ator que interpreta o humilde lavrador aproveita
para retomar com o outro que interpreta a morte o sussurro que havia
interrompido. Desanca o diretor, diz que não dá para mostrar desespero com
um texto daqueles, inverossímil, ninguém vai falar com a morte daquele jeito
depois de perder a mulher de uma maneira violenta. Resmunga baixinho
qualquer coisa sobre o tipo de representação que aquela cena exige, na sua
opinião, e que tem a ver com um certo distanciamento. De repente, no meio
da frase sussurrada, olhando o relógio (não precisa tirá-lo, estão apenas
ensaiando), exclama a hora num murmúrio, fala qualquer coisa sobre o atraso
da própria mulher, que ela já devia ter chegado, e ao mesmo tempo em que
diz isso, o iluminador no mezanino tenta inutilmente sussurrar o final da sua
piada, porque mal esboça o desenlace cômico e os dois atores já estão de volta
ao palco, seguindo os sinais mudos da assistente do diretor, e o homem ao
fundo da sala, após uns instantes parado indistinto dentro da sombra, já
avança alguns passos pelo corredor lateral da platéia.
O ator que interpreta o humilde lavrador vira-se para o outro, que
interpreta a morte, embora sem foice ou manto (estão apenas ensaiando), e
vai abrir a boca quando percebe que, em vez de olhá-lo, o diretor, sempre
com a mão na coxa da assistente, cochicha algo ao seu ouvido que a faz levar
a mão aos lábios para impedir que o riso transborde. Percebe o diretor, que
está no centro da sala, na quinta fila, mas não o vulto que avança pelo lado,
na penumbra. Irritado, o ator repete a cena idêntica à que tinha feito antes,
declamando sua fala com o mesmo distanciamento que lhe parece tão
apropriado, ao que o diretor enfurecido se levanta e, balançando os braços
e
sacudindo a cabeça, mudo, dá a entender que está péssimo.
Com a nova interrupção, o iluminador trata de retomar do início a
piada que contava ao técnico, porque, a cada vez que a retoma, volta sempre
ao começo com medo de que a quebra interfira no efeito cômico. Seu
sussurro agora é mais corrido, tentando fazer caber a piada inteira no espaço
de tempo entre a interrupção do diretor e o retorno dos atores ao palco. Nas
coxias, enquanto olha o relógio (estão apenas ensaiando), o ator que faz o
humilde lavrador repete baixinho ao outro, que faz a morte, que a mulher a
esta altura já devia ter chegado, como tinham combinado, porque ele próprio
lhe dissera que tudo terminaria às cinco, não podia imaginar que o diretor
se revelasse um tamanho idiota justamente com esse texto inverossímil, e que o ensaio se arrastasse tanto.
A assistente dá o sinal mudo para que recomecem e o iluminador
interrompe inconformado, mais uma vez, já quase no fim, a piada que
sussurrava ao técnico no mezanino, e que corre o risco de perder a graça pela
repetição. O homem que vinha avançando lentamente pelo corredor lateral
agora pára à altura da quinta fila ao ver os dois atores de novo no palco.
O
humilde lavrador vira-se para a morte e diz: "Você é o malfeitor." O diretor
pede que parem. O tom compreensivo de sua voz é apenas um disfarce que
o ator está cansado de conhecer e em geral precede uma crise de nervos. O
diretor está tentando se controlar, sussurra: "Será que você não compreende?
Ele perdeu a mulher, na flor da idade, está desesperado, indignado contra a
injustiça da morte e dos homens e por isso a invoca, ainda acredita que pode
convencê-la a lhe devolver a mulher adorada. Ninguém diz isso com
distanciamento.
Os dois saem do palco. Olhando o relógio, o humilde lavrador sussurra
de novo à morte sem foice ou manto algo sobre o atraso da mulher, que a
esta altura já devia estar sentada na platéia. Não entende por que ela ainda
não chegou, como se já não bastasse o atraso do ensaio, graças à imbecilidade
do diretor. E enquanto o humilde lavrador sussurra a sua indignação, o
homem que antes era apenas um vulto já avança pela quinta fila, agora de
lado, na direção do diretor e de sua assistente, que só o vêem quando já está
a apenas algumas poltronas deles. Senta-se para se fazer menos notado
quando a assistente já está com o braço levantado, indicando aos atores que
podem recomeçar, e enquanto ele lhes revela num murmúrio o que veio
anunciar sobre o mundo do lado de fora, e que os petrifica, o iluminador no
mezanino se aproxima num sussurro da conclusão da piada.
O humilde lavrador de relógio e a morte sem foice ou manto (estão
apenas ensaiando) entram no palco. O lavrador vira-se para a morte e reinicia
a sua ladainha com a mesma entonação e o distanciamento que lhe parecem
mais apropriados. Mas desta vez, para sua surpresa, o diretor não o interrompe,
porque tem os olhos arregalados e está lívido enquanto o homem,
antes apenas um vulto, lhe sussurra algo ao ouvido. E ao ver o homem que
sussurra ao ouvido do diretor, e o olhar deste e de sua assistente, que pela
primeira vez não o interrompem, mas permanecem a encará-lo com os olhos
aterrados e arregalados (a assistente com os olhos cheios de lágrimas diante
da súplica que o lavrador faz à morte) enquanto escutam o que o outro lhes
diz ao ouvido, curvado na poltrona ao lado, embora a entonação no palco
tenha sido a mesma e devesse portanto, pela lógica, ser mais uma vez
interrompida, o próprio ator interrompe a ação e por fim compreende
aterrorizado e a um só tempo a sinistra coincidência da cena e do momento,
o que aquele vulto veio anunciar sobre o mundo do lado de fora, com
buzinas, motores e sirenes; compreende por que a mulher não apareceu e
afinal o que sente o humilde lavrador; compreende por que o diretor não o
interrompeu desta vez, porque por fim esteve perfeito na pele do lavrador
em sua súplica diante da morte; compreende que por um instante encarnou
de fato o lavrador, que involuntária e inconscientemente, por uma trapaça
do destino, tornou-se o próprio lavrador pelo que aquele vulto veio anunciar;
compreende tudo num segundo, antes mesmo de saber dos detalhes do
acidente que a matou atravessando a rua a duas quadras do teatro, diante dos
olhos arregalados do diretor e da assistente, sob as gargalhadas incontidas
do
iluminador e do técnico no mezanino, chegando ao fim da piada.
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