terça-feira, 29 de maio de 2012
A caolha Júlia Lopes de Almeida
A caolha era uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto
arqueado, braços compridos, delgados, largos nos cotovelos, grossos nos
pulsos; mãos grandes, ossudas, estragadas pelo reumatismo e pelo trabalho;
unhas grossas, chatas e cinzentas, cabelo crespo, de uma cor indecisa entre
o
branco sujo e o louro grisalho, desse cabelo cujo contato parece dever ser
áspero e espinhento; boca descaída, numa expressão de desprezo, pescoço
longo, engelhado, como o pescoço dos urubus; dentes falhos e cariados.
O seu aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos; não
tanto pela sua altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada tinha
um defeito horrível: haviam-lhe extraído o olho esquerdo; a pálpebra descera
mirrada, deixando, contudo, junto ao lacrimal, uma fístula continuamente
porejante.
Era essa pinta amarela sobre o fundo denegrido da olheira, era essa
destilação incessante de pus que a tornava repulsiva aos olhos de toda a gente.
Morava numa casa pequena, paga pelo filho único, operário numa
oficina de alfaiate; ela lavava a roupa para os hospitais e dava conta de todo
o serviço da casa inclusive cozinha. O filho, enquanto era pequeno, comia
os pobres jantares feitos por ela, às vezes até no mesmo prato; à proporção
que ia crescendo, ia-se-lhe a pouco e pouco manifestando na fisionomia a
repugnância por essa comida; até que um dia, tendo já um ordenadozinho,
declarou à mãe que, por conveniência do negócio, passava a comer fora...
Ela fingiu não perceber a verdade, e resignou-se.
Daquele filho vinha-lhe todo o bem e todo o mal.
Que lhe importava o desprezo dos outros, se o seu filho adorado lhe
apagasse com um beijo todas as amarguras da existência?
Um beijo dele era melhor que um dia de sol, era a suprema carícia para
o seu triste coração de mãe! Mas... os beijos foram escasseando também,
com o crescimento do Antonico! Em criança ele apertava-a nos bracinhos e
enchia-lhe a cara de beijos; depois, passou a beijá-la só na face direita,
aquela
onde não havia vestígios de doença; agora, limitava-se a beijar-lhe a mão!
Ela compreendia tudo e calava-se.
O filho não sofria menos.
Quando em criança entrou para a escola pública da freguesia, começaram logo
os colegas, que o viam ir e vir com a mãe, a chamá-lo - o filho da
caolha.
Aquilo exasperava-o; respondia sempre.
Os outros riam-se e chacoteavam-no; ele queixava-se aos mestres, os
mestres ralhavam com os discípulos, chegavam mesmo a castigá-los - mas
a alcunha pegou, já não era só na escola que o chamavam assim.
Na rua, muitas vezes, ele ouvia de uma ou de outra janela dizerem: o
filho da caolha! Lá vai o filho da caolha! Lá vem o filho da caolha!
Eram as irmãs dos colegas, meninas novas, inocentes e que, industriadas
pelos irmãos, feriam o coração do pobre Antonico cada vez que o viam passar!
As quitandeiras, onde iam comprar as goiabas ou as bananas para o lunch, aprenderam depressa a denominá-lo como os outros e, muitas vezes,
afastando os pequenos que se aglomeravam ao redor delas, diziam, estendendo
uma mancheia de araçás, com piedade e simpatia:
- Taí, isso é pra o filho da caolha!
O Antonico preferia não receber o presente a ouvi-lo acompanhar de
tais palavras; tanto mais que os outros, com inveja, rompiam a gritar,
cantando em coro, num estribilho já combinado:
- Filho da caolha, filho da caolha!
O Antonico pediu à mãe que o não fosse buscar à escola; e, muito
vermelho, contou-lhe a causa; sempre que o viam aparecer à porta do colégio
os companheiros murmuravam injúrias, piscavam os olhos para o Antonico
e faziam caretas de náuseas!
A caolha suspirou e nunca mais foi buscar o filho.
Aos onze anos o Antonico pediu para sair da escola: levava a brigar com
os condiscípulos, que o intrigavam e malqueriam. Pediu para entrar para
uma oficina de marceneiro. Mas na oficina de marceneiro aprenderam
depressa a chamá-lo - o filho da caolha, a humilhá-lo, como no colégio.
Além de tudo, o serviço era pesado e ele começou a ter vertigens e
desmaios. Arranjou então um lugar de caixeiro de venda; os seus ex-colegas
agrupavam-se à porta, insultando-o, e o vendeiro achou prudente mandar o
caixeiro embora, tanto que a rapaziada ia-lhe dando cabo do feijão e do arroz
expostos à porta nos sacos abertos! Era uma contínua saraivada de cereais
sobre o pobre Antonico!
Depois disso passou um tempo em casa, ocioso, magro, amarelo,
deitado pelos cantos, dormindo às moscas, sempre zangado e sempre bocejante!
Evitava sair de dia e nunca, mas nunca, acompanhava a mãe; esta
poupava-o: tinha medo de que o rapaz, num dos desmaios, lhe morresse nos
braços, e por isso nem sequer o repreendia! Aos dezesseis anos, vendo-o mais
forte, pediu e obteve-lhe, a caolha, um lugar numa oficina de alfaiate.
A infeliz mulher contou ao mestre toda a história do filho e suplicou-lhe que
não deixasse os aprendizes humilhá-lo; que os fizesse terem caridade!
Antonico encontrou na oficina uma certa reserva e silêncio da parte dos
companheiros; quando o mestre dizia: Sr. Antonico, ele percebia um sorriso
mal oculto nos lábios dos oficiais; mas a pouco e pouco essa suspeita, ou esse
sorriso, se foi desvanecendo, até que principiou a sentir-se bem ali.
Decorreram alguns anos e chegou a vez de Antonico se apaixonar. Até
aí, numa ou outra pretensão de namoro que ele tivera, encontrara sempre
uma resistência que o desanimava, e que o fazia retroceder sem grandes
mágoas. Agora, porém, a coisa era diversa: ele amava! amava como um louco
a linda moreninha da esquina fronteira, uma rapariguinha adorável, de olhos
negros como veludo e boca fresca como um botão de rosa. O Antonico voltou
a ser assíduo em casa e expandia-se mais carinhosamente com a mãe; um dia,
em que viu os olhos da morena fixarem os seus, entrou como um louco no
quarto da caolha e beijou-a mesmo na face esquerda, num transbordamento
de esquecida ternura!
Aquele beijo foi para a infeliz uma inundação de júbilo! tornara a
encontrar o seu querido filho! pôs-se a cantar toda a tarde, e nessa noite,
ao
adormecer, dizia consigo:
- Sou muito feliz... o meu filho é um anjo!
Entretanto, o Antonico escrevia, num papel fino, a sua declaração de amor
à vizinha. No dia seguinte mandou-lhe cedo a carta. A resposta fez-se esperar.
Durante muitos dias Antonico perdia-se em amarguradas conjeturas.
Ao princípio pensava:
- "É o pudor". Depois começou a desconfiar de outra causa; por fim
recebeu uma carta em que a bela moreninha confessava consentir em ser sua
mulher, se ele se separasse completamente da mãe! Vinham explicações confusas, mal alinhavadas: lembrava a mudança de bairro; ele ali era muito
conhecido por filho da caolha, e bem compreendia que ela não se poderia
sujeitar a ser alcunhada em breve de - nora da caolha, ou coisa semelhante!
O Antonico chorou! Não podia crer que a sua casta e gentil moreninha
tivesse pensamentos tão práticos!
Depois o seu rancor voltou-se para a mãe.
Ela era a causadora de toda a sua desgraça! Aquela mulher perturbara a
sua infância, quebrara-lhe todas as carreiras, e agora o seu mais brilhante
sonho de futuro sumia-se diante dela! Lamentava-se por ter nascido de
mulher tão feia, e resolveu procurar meio de separar-se dela; considerar-se-ia
humilhado continuando sob o mesmo teto; havia de protegê-la de longe,
vindo de vez em quando vê-la à noite, furtivamente...
Salvava assim a responsabilidade de protetor e, ao mesmo tempo,
consagraria à sua amada a felicidade que lhe devia em troca do seu consentimento
e amor...
Passou um dia terrível; à noite, voltando para casa, levava o seu projeto
e a decisão de o expor à mãe.
A velha, agachada à porta do quintal, lavava umas panelas com um trapo
engordurado. O Antonico pensou: "A dizer a verdade eu havia de sujeitar
minha mulher a viver em companhia de... uma tal criatura?" Estas últimas
palavras foram arrastadas pelo seu espírito com verdadeira dor. A caolha
levantou para ele o rosto, e o Antonico, vendo-lhe o pus na face, disse:
- Limpe a cara, mãe...
Ela sumiu a cabeça no avental; ele continuou:
- Afinal nunca me explicou bem a que é devido esse defeito!
- Foi uma doença, - respondeu sufocadamente a mãe - é melhor
não lembrar isso!
- E é sempre a sua resposta: é melhor não lembrar isso! Por quê?
- Porque não vale a pena; nada se remedeia...
- Bem! agora escute: trago-lhe uma novidade: o patrão exige que eu
vá dormir na vizinhança da loja... já aluguei um quarto: a senhora fica aqui
e eu virei todos os dias a saber da sua saúde ou se tem necessidade de alguma
coisa... É por força maior; não temos remédio senão sujeitar-nos!...
Ele, magrinho, curvado pelo hábito de costurar sobre os joelhos,
delgado e amarelo como todos os rapazes criados à sombra das oficinas, onde
o trabalho começa cedo e o serão acaba tarde, tinha lançado naquelas palavras
toda a sua energia, e espreitava agora a mãe com um olho desconfiado e
medroso.
A caolha levantou-se e, fixando o filho com uma expressão terrível,
respondeu com doloroso desdém:
- Embusteiro! o que você tem é vergonha de ser meu filho! Saia! que
eu também já sinto vergonha de ser mãe de semelhante ingrato!
O rapaz saiu cabisbaixo, humilde, surpreso da atitude que assumira a
mãe, até então sempre paciente e cordata; ia com medo, maquinalmente,
obedecendo à ordem que tão feroz e imperativamente lhe dera a caolha.
Ela acompanhou-o, fechou com estrondo a porta, e vendo-se só,
encostou-se cambaleante à parede do corredor e desabafou em soluços.
O Antonico passou uma tarde e uma noite de angústia.
Na manhã seguinte o seu primeiro desejo foi voltar à casa; mas não teve
coragem; via o rosto colérico da mãe, faces contraídas, lábios adelgaçados
pelo ódio, narinas dilatadas, o olho direito saliente, a penetrar-lhe até o
fundo
do coração, o olho esquerdo arrepanhado, murcho - e sujo de pus; via a
sua atitude altiva, o seu dedo ossudo, de falanges salientes, apontando-lhe
com energia a porta da rua; sentia-lhe ainda o som cavernoso da voz, e o
grande fôlego que ela tomara para dizer as verdadeiras e amargas palavras que
lhe atirara no rosto; via toda a cena da véspera e não se animava a arrostar com o perigo de outra semelhante.
Providencialmente, lembrou-se da madrinha, única amiga da caolha,
mas que, entretanto, raramente a procurava.
Foi pedir-lhe que interviesse, e contou-lhe sinceramente tudo que
houvera.
A madrinha escutou-o comovida; depois disse:
- Eu previa isso mesmo, quando aconselhava tua mãe a que te dissesse
a verdade inteira; ela não quis, aí está!
- Que verdade, madrinha?
- Hei de dizer-te perto dela; anda, vamos lá!
Encontraram a caolha a tirar umas nódoas do fraque do filho - queria
mandar-lhe a roupa limpinha. A infeliz arrependera-se das palavras que
dissera e tinha passado toda a noite à janela, esperando que o Antonico
voltasse ou passasse apenas... Via o porvir negro e vazio e já se queixava
de
si! Quando a amiga e o filho entraram, ela ficou imóvel: a surpresa e a alegria
amarraram-lhe toda a ação.
A madrinha do Antonico começou logo:
- O teu rapaz foi suplicar-me que te viesse pedir perdão pelo que houve
aqui ontem e eu aproveito a ocasião para, à tua vista, contar-lhe o que já
deverias ter-lhe dito!
- Cala-te! - murmurou com voz apagada a caolha.
- Não me calo! Essa pieguice é que te tem prejudicado! Olha! rapaz,
quem cegou tua mãe foste tu!
O afilhado tornou-se lívido; e ela concluiu:
- Ah, não tiveste culpa! eras muito pequeno quando, um dia, ao
almoço, levantaste na mãozinha um garfo; ela estava distraída, e antes que
eu pudesse evitar a catástrofe, tu enterraste-lho pelo olho esquerdo! Ainda
tenho no ouvido o grito de dor que ela deu!
O Antonico caiu pesadamente de bruços, com um desmaio; a mãe
acercou-se rapidamente dele, murmurando trêmula:
- Pobre filho! vês? era por isto que eu não lhe queria dizer nada!
*
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