De princípio a interessou o nome da aeronave: não “zepelim”
nem
dirigível, ou qualquer outra coisa antiquada; o grande fuso
de metal
brilhante chamava-se modernissimamente blimp. Pequeno como
um brinquedo,
independente, amável. A algumas centenas de metros da sua
casa
ficava a base aérea dos soldados americanos e o poste de
amarração dos
dirigíveis. E de vez em quando eles deixavam o poste e
davam uma volta,
como pássaros mansos que abandonassem o poleiro num ensaio
de vôo.
Assim, de começo, aos olhos da menina, o blimp existia
como uma coisa em
si - como um animal de vida própria; fascinava-a como
prodígio mecânico que era, e principalmente ela o achava lindo, todo feito de
prata, igual a uma
jóia, librando-se majestosamente pouco abaixo das nuvens.
Tinha coisas de
ídolo, evocava-lhe um pouco o gênio escravo de Aladim. Não
pensara nunca
em entrar nele; não pensara sequer que pudesse alguém
andar dentro dele.
Ninguém pensa em cavalgar uma águia, nadar nas costas de
um golfinho; e,
no entanto, o olhar fascinado acompanha tanto quanto pode
águia e
golfinho, numa admiração gratuita - pois parece que é
mesmo uma das
virtudes da beleza essa renúncia de nós próprios que nos
impõe, em troca de
sua contemplação pura e simples.
Os olhos da menina prendiam-se, portanto, ao blimp sem
nenhum
desejo particular, sem a sombra de uma reivindicação.
Verdade que via lá
dentro umas cabecinhas espiando, mas tão minúsculas que
não davam
impressão de realidade - faziam parte da pintura, eram
elemento
decorativo,
obrigatório como as grandes letras negras U S. Navy
gravadas no bojo
de prata. Ou talvez lembrassem aqueles perfis recortados
em folha que fazem
de chofer nos automóveis de brinquedo.
O seu primeiro contato com a tripulação do dirigível começou
de maneira
puramente ocasional. Acabara o café da manhã; a menina
tirara a mesa e fora
à porta que dá para o laranjal, sacudir da toalha as migalhas
de pão. Lá de cima
um tripulante avistou aquele pano branco tremulando entre as
árvores espalhadas
e a areia, e o seu coração solitário comoveu-se. Vivia
naquela base como um frade
no seu convento - sozinho entre soldados e exortações
patrióticas. E ali
estava, juntinho ao oitão da casa de telhado vermelho, sacudindo um
pano entre a
mancha verde das laranjeiras, uma mocinha de cabelo ruivo. O
marinheiro
agitou-se todo com aquele adeus. Várias vezes já sobrevoara
aquela casa, vira
gente embaixo entrando e saindo; e pensara quão distantes uns dos
outros vivem os
homens, quão indiferentes passam entre si, cada um trancado
na sua vida. Ele
estava voando por cima das pessoas, vendo-as, espiando-as,
e, se algumas
erguiam os olhos, nenhuma pensava no navegador que ia dentro;
queriam só ver a beleza
prateada vagando pelo céu.
Mas agora aquela menina tinha para ele um pensamento,
agitava no ar um pano, como uma bandeira; decerto era bonita - o sol lhe
tirava fulgurações de fogo do cabelo, e a silhueta esguia se
recortava claramente no fundo verde-e-areia. Seu coração atirou-se para a menina
num grande
impulso agradecido; debruçou-se à janela, agitou os
braços, gritou: “Amigo!, amigo!”- embora soubesse que o vento, a distância, o ruído
do motor não deixariam ouvir-se nada. Ficou incerto se ela lhe vira os
gestos e quis lhe corresponder de modo mais tangível. Gostaria de lhe atirar
uma flor, uma
oferenda. Mas que podia haver dentro de um dirigível da
Marinha que servisse para ser oferecido a uma pequena? O objeto mais
delicado que encontrou foi uma grande caneca de louça branca, pesada
como uma bala de canhão, na qual em breve lhe iriam servir o café. E foi
aquela caneca que o navegante atirou; atirou, não: deixou cair a uma
distância prudente da figurinha iluminada, lá embaixo; deixou-a cair num gesto
delicado, procurando abrandar a força da gravidade, a fim de que o objeto não
chegasse sibilante como um projétil, mas suavemente, como uma
dádiva.
A menina que sacudia a toalha erguera realmente os olhos
ao ouvir o motor do blimp. Viu os braços do rapaz se agitarem lá em
cima. Depois viu aquela coisa branca fender o ar e cair na areia; teve um
susto, pensou numa brincadeira de mau gosto - uma pilhéria rude de soldado
estrangeiro. Mas quando viu a caneca branca pousada no chão, intacta, teve
uma confusa intuição do impulso que a mandara; apanhou-a, leu gravadas
no fundo as mesmas letras que havia no corpo do dirigível: U S. Navy.
Enquanto isso,
o blimp, em lugar de ir para longe, dava mais uma volta
lenta sobre a casa e o pomar. Então a mocinha tornou a erguer os olhos e,
deliberadamente dessa vez, acenou com a toalha, sorrindo e agitando a cabeça. O
blimp fez mais duas voltas e lentamente se afastou - e a menina teve a
impressão de que
ele levava saudades. Lá de cima, o tripulante pensava
também - não em saudades, que ele não sabia português, mas em qualquer
coisa pungente e doce, porque, apesar de não falar nossa língua, soldado
americano também tem coração.
Foi assim que se estabeleceu aquele rito matinal.
Diariamente passava o blimp e diariamente a menina o esperava; não mais levou
a toalha branca, e às vezes nem sequer agitava os braços: deixava-se estar
imóvel, mancha clara na terra banhada de sol. Era uma espécie de namoro de
gavião com gazela: ele, fero soldado cortando os ares; ela, pequena, medrosa,
lá embaixo, vendo-o passar com os olhos fascinados. Já agora, os
presentes, trazidos de propósito da base, não eram mais a grosseira caneca improvisada;
caíam do
céu números da Life e da Time, um gorro de marinheiro e,
certo dia, o tripulante tirou do bolso o seu lenço de seda vegetal
perfumado com essência sintética de violetas. O lenço abriu-se no ar e veio
voando como um papagaio de papel; ficou preso afinal nos ramos de um cajueiro, e
muito trabalho
custou à pequena arrancá-lo de lá com a vara de apanhar
cajus; assim mesmo
ainda o rasgou um pouco, bem no meio.
Mas de todos os presentes o que mais lhe agradava era ainda
o primeiro: a
pesada caneca de pó de pedra. Pusera-a no seu quarto, em
cima da banca de
escrever. A princípio cuidara em usá-la na mesa, às
refeições, mas se arreceou da
zombaria dos irmãos. Ficou guardando nela os lápis e
canetas. Um dia teve idéia
melhor e a caneca de louça passou a servir de vaso de
flores. Um galho de manacá,
um bogari, um jasmim-do-cabo, uma rosa-menina, pois no
jardim rústico da
casa de campo não havia rosas importantes nem flores
caras.
Pôs-se a estudar com mais afinco o seu livro de conversação
inglesa;
quando ia ao cinema, prestava uma atenção intensa aos
diálogos, a fim de
lhes apanhar não só o sentido, mas a pronúncia. Emprestava
ao seu marinheiro
as figuras de todos os galãs que via na tela, e
sucessivamente ele era
Clark
Gable, Robert Taylotõu Cary Grant. Ou era louro feito um mocinho
que morria numa batalha naval do Pacífico, cujo nome a
fita não dava;
chegava até a ser, às vezes, careteiro e risonho como Red
Skelton. Porque ela
era um pouco míope, mal o vislumbrava, olhando-o do chão:
via um recorte
de cabeça, uns braços se agitando; e, conforme a direção
dos raios do sol,
parecia-lhe que ele tinha o cabelo louro ou escuro.
Não lhe ocorria que não pudesse ser sempre o mesmo
marinheiro. E, na
verdade, os tripulantes se revezariam diariamente: uns
ficavam de folga e iam
passear na cidade com as pequenas que por lá arranjavam;
outros iam embora
de vez para a África, para a Itália. No posto de dirigíveis
criava-se aquela
tradição da menina do laranjal. Os marinheiros puseram-lhe o
apelido de
“Tangerine-Girl”. Talvez por causa do filme de Dorothy
Lamour, pois
Dorothy Lamour é, para todas as forças armadas
norte-americanas, o modelo
do que devem ser as moças morenas da América do Sul e das
ilhas do Pacífico.
Talvez porque ela os esperava sempre entre as laranjeiras. E
talvez porque o
cabelo ruivo da pequena, quando brilhava à luz da manhã,
tinha um brilho
acobreado de tangerina madura. Um a um, sucessivamente,
como um bem de todos, partilhavam eles o namoro com a garota Tangerine. O
piloto da aeronave dava voltas, obediente, voando o mais baixo que
lhe permitiam os regulamentos, enquanto o outro, da janelinha, olhava e
dava adeus.
Não sei por que custou tanto a ocorrer aos rapazes a idéia
de atirar um
bilhete. Talvez pensassem que ela não os entenderia. Já
fazia mais de um mês
que sobrevoavam a casa, quando afinal o primeiro bilhete
caiu; fora escrito
sobre uma cara rosada de rapariga na capa de uma revista:
laboriosamente,
em letras de imprensa, com os rudimentos de português que
haviam
aprendido da boca das pequenas, na cidade: “Dear
Tangerine-Girl. Please
você vem hoje (today) base X. Dancing, show. Oito horas
P.M.” E no outro
ângulo da revista, em enormes letras, o “Amigo”, que é a
palavra de passe
dos americanos entre nós.
A pequena não atinou bem com aquele “Tangerine-Girl”.
Seria ela?
Sim, decerto... e aceitou o apelido, como uma lisonja.
Depois pensou que
as duas letras, do fim: “P.M.”, seriam uma assinatura.
Peter, Paul, ou Patsy,
como o ajudante de Nick Carter? Mas uma lembrança de
estudo lhe ocorreu:
consultou as páginas finais do dicionário, que tratam de
abreviaturas, e
verificou, levemente decepcionada, que aquelas letras
queriam dizer “a hora
depois do meio-dia”.
Não pudera acenar uma resposta porque só vira o bilhete ao
abrir a
revista, depois que o blimp se afastou. E estimou que
assim o fosse: sentia-se
tremendamente assustada e tímida ante aquela primeira
aproximação com o
seu aeronauta. Hoje veria se ele era alto e belo, louro ou
moreno. Pensou em
se esconder por trás das colunas do portão, para o ver
chegar - e não lhe
falar nada. Ou talvez tivesse coragem maior e desse a ele
a sua mão; juntos
caminhariam até a base, depois dançariam um fox langoroso,
ele lhe faria ao
ouvido declarações de amor em inglês, encostando a face
queimada de sol
ao seu cabelo. Não pensou se o pessoal de casa lhe
deixaria aceitar o convite.
Tudo se ia passando como num sonho - e como num sonho se
resolveria,
sem lutas nem empecilhos.
Muito antes do escurecer, já estava penteada, vestida. Seu
coração batia,
batia inseguro, a cabeça doía um pouco, o rosto estava em
brasas. Resolveu
não mostrar o convite a ninguém; não iria ao show; não
dançaria, conversaria
um pouco com ele no portão. Ensaiava frases em inglês e
preparava o ouvido
para as doces palavras na língua estranha. às sete horas
ligou o rádio e ficou
escutando languidamente o programa de swings. Um irmão
passou, fez troça
do vestido bonito, naquela hora, e ela nem o ouviu. Às
sete e meia já estava
na varanda, com o olho no portão e na estrada. Às dez para
as oito, noite
fechada já há muito, acendeu a pequena lâmpada que
alumiava o portão e
saiu para o jardim. E às oito em ponto ouviu risadas e
tropel de passos na
estrada, aproximando-se.
Com um recuo assustado verificou que não vinha apenas o
seu marinheiro
enamorado, mas um bando ruidoso deles. Viu-os
aproximarem-se,
trêmula. Eles a avistaram, cercaram o portão - até parecia
manobra militar
-‘ tiraram os gorros e foram se apresentando numa
algazarra jovial.
E, de repente, mal lhes foi ouvindo os nomes, correndo os
olhos pelas
caras imberbes, pelo sorriso esportivo e juvenil dos
rapazes, fitando-os de um
em um, procurando entre eles o seu príncipe sonhado - ela
compreendeu
tudo. Não existia o seu marinheiro apaixonado - nunca fora
ele mais do
que um mito do seu coração. Jamais houvera um único,
jamais “ele” fora o
mesmo. Talvez nem sequer o próprio blimp fosse o mesmo...
Que vergonha, meu Deus! Dera adeus a tanta gente; traída
por uma
aparência enganosa, mandara diariamente a tantos rapazes
diversos as mais
doces mensagens do seu coração, e no sorriso deles, nas
palavras cordiais que
dirigiam à namorada coletiva, à pequena Tangerine-Girl,
que já era uma
instituição da base - só viu escárnio, familiaridade
insolente... Decerto pensavam que ela era também uma dessas pequenas que
namoram os marinheiros de passagem, quem quer que seja... decerto
pensavam... MeuDeus do Céu!
Os moços, por causa da meia-escuridão, ou porque não
cuidavam
naquelas nuanças psicológicas, não atentaram na expressão
de mágoa e susto
que confrangia o rostinho redondo da amiguinha. E, quando
um deles,
curvando-se, lhe ofereceu o braço, viu-a com surpresa
recuar, balbuciando
timidamente:
- Desculpem... houve engano... um engano...
E os rapazes compreenderam ainda menos quando a viram
fugir, a
princípio lentamente, depois numa carreira cega. Nem
desconfiaram que ela
fugira a trancar-se no quarto e, mordendo o travesseiro,
chorou as lágrimas
mais amargas e mais quentes que tinha nos olhos.
Nunca mais a viram no laranjal; embora insistissem em
atirar presentes,
viam que eles ficavam no chão, esquecidos - ou às vezes
eram apanhados
pelos moleques do sítio.
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