quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Tangerine-Girl Rachel de Queiroz



De princípio a interessou o nome da aeronave: não “zepelim” nem
dirigível, ou qualquer outra coisa antiquada; o grande fuso de metal
brilhante chamava-se modernissimamente blimp. Pequeno como um brinquedo,
independente, amável. A algumas centenas de metros da sua casa
ficava a base aérea dos soldados americanos e o poste de amarração dos
dirigíveis. E de vez em quando eles deixavam o poste e davam uma volta,
como pássaros mansos que abandonassem o poleiro num ensaio de vôo.
Assim, de começo, aos olhos da menina, o blimp existia como uma coisa em
si - como um animal de vida própria; fascinava-a como prodígio mecânico que era, e principalmente ela o achava lindo, todo feito de prata, igual a uma
jóia, librando-se majestosamente pouco abaixo das nuvens. Tinha coisas de
ídolo, evocava-lhe um pouco o gênio escravo de Aladim. Não pensara nunca
em entrar nele; não pensara sequer que pudesse alguém andar dentro dele.
Ninguém pensa em cavalgar uma águia, nadar nas costas de um golfinho; e,
no entanto, o olhar fascinado acompanha tanto quanto pode águia e
golfinho, numa admiração gratuita - pois parece que é mesmo uma das
virtudes da beleza essa renúncia de nós próprios que nos impõe, em troca de
sua contemplação pura e simples.
Os olhos da menina prendiam-se, portanto, ao blimp sem nenhum
desejo particular, sem a sombra de uma reivindicação. Verdade que via lá
dentro umas cabecinhas espiando, mas tão minúsculas que não davam
impressão de realidade - faziam parte da pintura, eram elemento
decorativo,
obrigatório como as grandes letras negras U S. Navy gravadas no bojo
de prata. Ou talvez lembrassem aqueles perfis recortados em folha que fazem
de chofer nos automóveis de brinquedo.
O seu primeiro contato com a tripulação do dirigível começou de maneira
puramente ocasional. Acabara o café da manhã; a menina tirara a mesa e fora
à porta que dá para o laranjal, sacudir da toalha as migalhas de pão. Lá de cima
um tripulante avistou aquele pano branco tremulando entre as árvores espalhadas
e a areia, e o seu coração solitário comoveu-se. Vivia naquela base como um frade
no seu convento - sozinho entre soldados e exortações patrióticas. E ali
estava, juntinho ao oitão da casa de telhado vermelho, sacudindo um pano entre a
mancha verde das laranjeiras, uma mocinha de cabelo ruivo. O marinheiro
agitou-se todo com aquele adeus. Várias vezes já sobrevoara aquela casa, vira
gente embaixo entrando e saindo; e pensara quão distantes uns dos outros vivem os
homens, quão indiferentes passam entre si, cada um trancado na sua vida. Ele
estava voando por cima das pessoas, vendo-as, espiando-as, e, se algumas
erguiam os olhos, nenhuma pensava no navegador que ia dentro; queriam só ver a beleza
prateada vagando pelo céu.
Mas agora aquela menina tinha para ele um pensamento, agitava no ar um pano, como uma bandeira; decerto era bonita - o sol lhe tirava fulgurações de fogo do cabelo, e a silhueta esguia se recortava claramente no fundo verde-e-areia. Seu coração atirou-se para a menina num grande
impulso agradecido; debruçou-se à janela, agitou os braços, gritou: “Amigo!, amigo!”- embora soubesse que o vento, a distância, o ruído do motor não deixariam ouvir-se nada. Ficou incerto se ela lhe vira os gestos e quis lhe corresponder de modo mais tangível. Gostaria de lhe atirar uma flor, uma
oferenda. Mas que podia haver dentro de um dirigível da Marinha que servisse para ser oferecido a uma pequena? O objeto mais delicado que encontrou foi uma grande caneca de louça branca, pesada como uma bala de canhão, na qual em breve lhe iriam servir o café. E foi aquela caneca que o navegante atirou; atirou, não: deixou cair a uma distância prudente da figurinha iluminada, lá embaixo; deixou-a cair num gesto delicado, procurando abrandar a força da gravidade, a fim de que o objeto não chegasse sibilante como um projétil, mas suavemente, como uma dádiva.
A menina que sacudia a toalha erguera realmente os olhos ao ouvir o motor do blimp. Viu os braços do rapaz se agitarem lá em cima. Depois viu aquela coisa branca fender o ar e cair na areia; teve um susto, pensou numa brincadeira de mau gosto - uma pilhéria rude de soldado estrangeiro. Mas quando viu a caneca branca pousada no chão, intacta, teve uma confusa intuição do impulso que a mandara; apanhou-a, leu gravadas no fundo as mesmas letras que havia no corpo do dirigível: U S. Navy. Enquanto isso,
o blimp, em lugar de ir para longe, dava mais uma volta lenta sobre a casa e o pomar. Então a mocinha tornou a erguer os olhos e, deliberadamente dessa vez, acenou com a toalha, sorrindo e agitando a cabeça. O blimp fez mais duas voltas e lentamente se afastou - e a menina teve a impressão de que
ele levava saudades. Lá de cima, o tripulante pensava também - não em saudades, que ele não sabia português, mas em qualquer coisa pungente e doce, porque, apesar de não falar nossa língua, soldado americano também tem coração.
Foi assim que se estabeleceu aquele rito matinal. Diariamente passava o blimp e diariamente a menina o esperava; não mais levou a toalha branca, e às vezes nem sequer agitava os braços: deixava-se estar imóvel, mancha clara na terra banhada de sol. Era uma espécie de namoro de gavião com gazela: ele, fero soldado cortando os ares; ela, pequena, medrosa, lá embaixo, vendo-o passar com os olhos fascinados. Já agora, os presentes, trazidos de propósito da base, não eram mais a grosseira caneca improvisada; caíam do
céu números da Life e da Time, um gorro de marinheiro e, certo dia, o tripulante tirou do bolso o seu lenço de seda vegetal perfumado com essência sintética de violetas. O lenço abriu-se no ar e veio voando como um papagaio de papel; ficou preso afinal nos ramos de um cajueiro, e muito trabalho
custou à pequena arrancá-lo de lá com a vara de apanhar cajus; assim mesmo
ainda o rasgou um pouco, bem no meio.
Mas de todos os presentes o que mais lhe agradava era ainda o primeiro: a
pesada caneca de pó de pedra. Pusera-a no seu quarto, em cima da banca de
escrever. A princípio cuidara em usá-la na mesa, às refeições, mas se arreceou da
zombaria dos irmãos. Ficou guardando nela os lápis e canetas. Um dia teve idéia
melhor e a caneca de louça passou a servir de vaso de flores. Um galho de manacá,
um bogari, um jasmim-do-cabo, uma rosa-menina, pois no jardim rústico da
casa de campo não havia rosas importantes nem flores caras.
Pôs-se a estudar com mais afinco o seu livro de conversação inglesa;
quando ia ao cinema, prestava uma atenção intensa aos diálogos, a fim de
lhes apanhar não só o sentido, mas a pronúncia. Emprestava ao seu marinheiro
as figuras de todos os galãs que via na tela, e sucessivamente ele era
Clark Gable, Robert Taylotõu Cary Grant. Ou era louro feito um mocinho
que morria numa batalha naval do Pacífico, cujo nome a fita não dava;
chegava até a ser, às vezes, careteiro e risonho como Red Skelton. Porque ela
era um pouco míope, mal o vislumbrava, olhando-o do chão: via um recorte
de cabeça, uns braços se agitando; e, conforme a direção dos raios do sol,
parecia-lhe que ele tinha o cabelo louro ou escuro.
Não lhe ocorria que não pudesse ser sempre o mesmo marinheiro. E, na
verdade, os tripulantes se revezariam diariamente: uns ficavam de folga e iam
passear na cidade com as pequenas que por lá arranjavam; outros iam embora
de vez para a África, para a Itália. No posto de dirigíveis criava-se aquela
tradição da menina do laranjal. Os marinheiros puseram-lhe o apelido de
“Tangerine-Girl”. Talvez por causa do filme de Dorothy Lamour, pois
Dorothy Lamour é, para todas as forças armadas norte-americanas, o modelo
do que devem ser as moças morenas da América do Sul e das ilhas do Pacífico.
Talvez porque ela os esperava sempre entre as laranjeiras. E talvez porque o
cabelo ruivo da pequena, quando brilhava à luz da manhã, tinha um brilho
acobreado de tangerina madura. Um a um, sucessivamente, como um bem de todos, partilhavam eles o namoro com a garota Tangerine. O piloto da aeronave dava voltas, obediente, voando o mais baixo que lhe permitiam os regulamentos, enquanto o outro, da janelinha, olhava e dava adeus.
Não sei por que custou tanto a ocorrer aos rapazes a idéia de atirar um
bilhete. Talvez pensassem que ela não os entenderia. Já fazia mais de um mês
que sobrevoavam a casa, quando afinal o primeiro bilhete caiu; fora escrito
sobre uma cara rosada de rapariga na capa de uma revista: laboriosamente,
em letras de imprensa, com os rudimentos de português que haviam
aprendido da boca das pequenas, na cidade: “Dear Tangerine-Girl. Please
você vem hoje (today) base X. Dancing, show. Oito horas P.M.” E no outro
ângulo da revista, em enormes letras, o “Amigo”, que é a palavra de passe
dos americanos entre nós.
A pequena não atinou bem com aquele “Tangerine-Girl”. Seria ela?
Sim, decerto... e aceitou o apelido, como uma lisonja. Depois pensou que
as duas letras, do fim: “P.M.”, seriam uma assinatura. Peter, Paul, ou Patsy,
como o ajudante de Nick Carter? Mas uma lembrança de estudo lhe ocorreu:
consultou as páginas finais do dicionário, que tratam de abreviaturas, e
verificou, levemente decepcionada, que aquelas letras queriam dizer “a hora
depois do meio-dia”.
Não pudera acenar uma resposta porque só vira o bilhete ao abrir a
revista, depois que o blimp se afastou. E estimou que assim o fosse: sentia-se
tremendamente assustada e tímida ante aquela primeira aproximação com o
seu aeronauta. Hoje veria se ele era alto e belo, louro ou moreno. Pensou em
se esconder por trás das colunas do portão, para o ver chegar - e não lhe
falar nada. Ou talvez tivesse coragem maior e desse a ele a sua mão; juntos
caminhariam até a base, depois dançariam um fox langoroso, ele lhe faria ao
ouvido declarações de amor em inglês, encostando a face queimada de sol
ao seu cabelo. Não pensou se o pessoal de casa lhe deixaria aceitar o convite.
Tudo se ia passando como num sonho - e como num sonho se resolveria,
sem lutas nem empecilhos.
Muito antes do escurecer, já estava penteada, vestida. Seu coração batia,
batia inseguro, a cabeça doía um pouco, o rosto estava em brasas. Resolveu
não mostrar o convite a ninguém; não iria ao show; não dançaria, conversaria
um pouco com ele no portão. Ensaiava frases em inglês e preparava o ouvido
para as doces palavras na língua estranha. às sete horas ligou o rádio e ficou
escutando languidamente o programa de swings. Um irmão passou, fez troça
do vestido bonito, naquela hora, e ela nem o ouviu. Às sete e meia já estava
na varanda, com o olho no portão e na estrada. Às dez para as oito, noite
fechada já há muito, acendeu a pequena lâmpada que alumiava o portão e
saiu para o jardim. E às oito em ponto ouviu risadas e tropel de passos na
estrada, aproximando-se.
Com um recuo assustado verificou que não vinha apenas o seu marinheiro
enamorado, mas um bando ruidoso deles. Viu-os aproximarem-se,
trêmula. Eles a avistaram, cercaram o portão - até parecia manobra militar
-‘ tiraram os gorros e foram se apresentando numa algazarra jovial.
E, de repente, mal lhes foi ouvindo os nomes, correndo os olhos pelas
caras imberbes, pelo sorriso esportivo e juvenil dos rapazes, fitando-os de um
em um, procurando entre eles o seu príncipe sonhado - ela compreendeu
tudo. Não existia o seu marinheiro apaixonado - nunca fora ele mais do
que um mito do seu coração. Jamais houvera um único, jamais “ele” fora o
mesmo. Talvez nem sequer o próprio blimp fosse o mesmo...
Que vergonha, meu Deus! Dera adeus a tanta gente; traída por uma
aparência enganosa, mandara diariamente a tantos rapazes diversos as mais
doces mensagens do seu coração, e no sorriso deles, nas palavras cordiais que
dirigiam à namorada coletiva, à pequena Tangerine-Girl, que já era uma
instituição da base - só viu escárnio, familiaridade insolente... Decerto pensavam que ela era também uma dessas pequenas que namoram os marinheiros de passagem, quem quer que seja... decerto pensavam... MeuDeus do Céu!
Os moços, por causa da meia-escuridão, ou porque não cuidavam
naquelas nuanças psicológicas, não atentaram na expressão de mágoa e susto
que confrangia o rostinho redondo da amiguinha. E, quando um deles,
curvando-se, lhe ofereceu o braço, viu-a com surpresa recuar, balbuciando
timidamente:
- Desculpem... houve engano... um engano...
E os rapazes compreenderam ainda menos quando a viram fugir, a
princípio lentamente, depois numa carreira cega. Nem desconfiaram que ela
fugira a trancar-se no quarto e, mordendo o travesseiro, chorou as lágrimas
mais amargas e mais quentes que tinha nos olhos.
Nunca mais a viram no laranjal; embora insistissem em atirar presentes,
viam que eles ficavam no chão, esquecidos - ou às vezes eram apanhados
pelos moleques do sítio.

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