sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Viagem aos seios de Duília Aníbal Machado



Durante mais de trinta anos, o bondezinho das dez e quinze, que descia do Silvestre, parava como um burro ensinado em frente à casinha de José Maria, e ali encontrava, almoçado e pontual, o velho funcionário.
Um dia, porém, José Maria faltou. O motorneiro batia a sirene. Os passageiros
se impacientavam. Floripes correu aflita a avisar o patrão. Achou-o
de pijama, estirado na poltrona, querendo rir. - Seu José Maria, o senhor hoje perdeu a hora! Há muito tempo o
motorneiro está a dar sinal.
- Diga-lhe que não preciso mais.
A velha portuguesa não compreendeu.
- Vá, diga que não vou... Que de hoje em diante não irei mais.
A criada chegou à janela, gritou o recado. E o bondezinho desceu sem
o seu mais antigo passageiro.
Floripes voltou ao patrão. Interroga-o com o olhar.
- Não sabes que estou aposentado?
-Uê!...
- Sim, Floripes. Aposentado.
- E que vai fazer agora, patrão?
- Sei lá, Floripes... Sei lá!
- Mas o almoço será sempre servido à mesma hora, pois não?  - Tanto faz. Pode ser às nove e meia, onze, meio-dia ou quando você quiser. Minha vida de hoje em diante vai ser um domingão sem fim...  Debruçado à janela, José Maria olhava para a cidade embaixo e achava a vida triste. Saíra na véspera o decreto de aposentadoria. Trinta e seis anos de Repartição.
Interrompera da noite para o dia o hábito de esperar o bondezinho, comprar o jornal da manhã, bebericar o café na Avenida, e instalar-se à mesa do Ministério, sisudo e calado, até as dezessete horas.  Que fazer agora?
Não mais informar processos, não mais preocupar-se com o nome e a cara do futuro Ministro.
Pela primeira vez fartava a vista no cenário de águas e montanhas que a bruma fundia.
Inúmeras vezes o fizera, mas sem perceber o Pão de Açúcar e a baía, as ilhas e os navios, o Corcovado e as praias do Atlântico, sempre se interpondo entre seus olhos e a paisagem uma reminiscência molesta, lembrança de antigo aborrecimento ou de contrariedades na Repartição. Se algum navio transpunha a barra e vinha crescendo para o porto no ritmo calmo da marcha, seu coração amargava-se contra o sobrinho Beto que embarcara como radiotelegrafista de um navio do Lóide, e nunca mais dera notícias; se o Cristo do Corcovado se erguia de um pedestal de nuvens, vinha-lhe à memória aquele triste fim de tarde, lá em cima, em que pela primeira vez na vida se conduziu de maneira vergonhosa, embriagado que estava, a dizer impropérios contra a República e contra um ato injusto do “Sr. Ministro”, até ser detido por um guarda. Aposentado agora, continuava a ligar os diferentes aspectos da natureza a acontecimentos que a deformavam.  Com os trinta e seis anos perdidos na Repartição, teria perdido também o dom de viver?
Muito próximo se achava ainda desse passado para não lhe receber a
influência. A manifestação de despedida fora ontem mesmo. Cobriram-lhe
a mesa de flores; saudou-o em nome dos chefes de serviço o diretor mais
antigo, seu ex-adversário; falou depois um dos subordinados, estudante de
Medicina; por último uma funcionária, a Adélia, que usava decote largo, se
“ ‘
referiu a competência e exemplar austeridade do querido chefe de quem todos se lembrarão com saudade”. Uma menina, filha do arquivista, fez-lhe entrega de uma bengala de castão de ouro, com a data e o nome. E o Ministro mandou um telegrama.
Foi só, estava encerrada a etapa principal e maior de sua vida.
Os decênios de trabalho monótono, de “austeridade exemplar” como
dizia Adélia, forjaram-lhe uma máscara fria. Atrás dela se escondeu e de si
mesmo se perdera. Como fazer desaparecer-lhe os vestígios? Como se reencontrar? Adélia não podia imaginar o que para ele representava a “exemplar austeridade”. Adélia jamais saberá o que ocorria na alma do antigo chefe quando os olhos deste passavam como um relâmpago pelo colo branco de sua subordinada; talvez nem ela pressentisse. Austero coisa nenhuma:
desajeitado apenas, tímido: gostaria de poder fazer o que censurava nos outros.
Floripes admirava a bengala procurando decifrar os dizeres do castão
de ouro.
- E o que me resta, Floripes, dos trinta e seis anos. Isso e um telegrama
do Ministro!
- O que me está a dizer, patrão?
- Nada, Floripes.
“Ora veja! Estou livre agora, livre!... Mas livre para quê?” Ao clarear do dia seguinte escancarou a janela para a baía. Procurava sentir a manhã de sol como a deviam estar sentindo àquela hora os moradores da bela colina. Mas nada lhe diziam os barcos a vela flutuando longe, nem os castelos de nuvens que se armavam no céu.  Ia experimentar a cidade, andar sem destino. E sem chapéu. A ausência do chapéu seria a primeira mudança exterior em seus hábitos, um começo de libertação. Até então, a moda lhe parecera ridícula, além de fonte de resfriados. E se envergasse uma camisa esporte? Poderiam rir-se dele: a pele do pescoço perdera consistência; e a marca circular do colarinho duro lá estava, firme como uma tatuagem.
Na rua, um colega veio dizer-lhe que os jornais deram a notícia; alguns até com elogios ao velho servidor. O amigo abraçou-o. E logo recuou com certo espanto: - O seu chapéu, Zé Maria?
- Ah, não uso mais!...
- Felizardo! Vai começar a gozar a vida, hein? Já até parece outro homem, disse, interpretando a ausência do chapéu como o primeiro passo para um programa de rejuvenescimento.
O aposentado livrou-se do importuno. “Livre! Estou livre!” Namorou vitrinas, tomou café, repetiu café, tomou chope, foi, voltou, viu, tomou café outra vez, cumprimentou... O tempo não passava. Mais lento ainda do que na Repartição.
A título de despedir-se de alguns companheiros e de apanhar uma caneta-tinteiro, lembrou-se de chegar até lá. Na verdade, sentia-se impelido por um desejo ambíguo, como o general reformado que vai à paisana em visita a seu antigo regimento. Era tarde, porém; o rush se avolumara. Achou melhor voltar para casa, postar-se na fila do bonde. “Livre! Estou livre!” Durante a subida, a brisa fresca fê-lo sentir a falta do chapéu. Via-se como que despido.
Floripes serviu-lhe o jantar, deixou tudo arrumado, e retirou-se para dormir no barraco da filha.
Mais do que nunca, sentiu José Maria naquela noite a solidão da casa.
Não tinha amigos, não tinha mulher nem amante. E já lera todos os jornais.  Havia o telefone, é verdade. Mas ninguém chamava. Lembrava-se que certa vez, há uns quinze anos, aquela fria coisa, pendurada e morta, se aquecera à voz de uma mulher desconhecida. A máquina que apenas servia para recados ao armazém e informações do Ministério transformara-se então em instrumento de música: adquirira alma, cantava quase. De repente, sem motivo, a voz emudecera. E o aparelho voltou a ser na parede do corredor a aranha de metal, sempre calada. O sussurro da vida, o sangue de suas paixões passavam longe do telefone de Zé Maria...
Como vencer a noite que mal começava? Fechou o rádio com desespero, virou dois tragos de vinho do Porto,
deitou-se. A espaços ouvia o barulho do bondezinho rilhando nas curvas da
colina, a explosão de um e outro foguete que subiam da vertente de Aguas
Férreas, seguida de latidos de cães e gritos indistintos. Ingeriu outra dose de vinho. E adormeceu.
O telefone toca. Quem será? Quem se lembraria dele? Algum convite?
Trote?
- Alô, meu bem!
- Alô! aqui fala José Maria.
- É engano, proferiu secamente a interlocutora.  Era engano! Antes não o fosse. A quem estaria destinada aquela voz carregada de ternura? Preferia que dissesse desaforos, que o xingasse.  A boca feminina já devia estar dizendo frases de amor na linha procurada.
Era um triste aparelho telefônico!
Atirou-se de bruços na cama. E sonhou. Sonhou que conversava ao telefone e era a voz da mulher de há quinze anos... Foi andando para o passado... Abriu-se-lhe uma cidade de montanha, pontilhada de igrejas.  E sempre para trás - tinha então dezesseis anos -‘ ressurgiu-lhe a cidadezinha onde encontrara Duília. Aí parou. E Duília lhe repetiu calmamente aquele gesto, o mais louco e gratuito, com que uma moça pode iluminar para sempre a vida de um homem tímido.
Acordou com raiva de ter acordado, fechou os olhos para dormir de novo e reatar o fio de sonho que trouxe Duília. Mas a imagem esquiva lhe escapou, Duília desapareceu no tempo.
Á medida que os meses passavam, foi tomando horror à expressão “funcionário público aposentado”, que lhe cheirava a atestado de óbito.  Jurou nunca mais freqüentar a “Mão do Salvador”, instituição de caridade, cuja sede, com seus móveis severos e gente sem graça, lembrava o ambiente atroz da Repartição.
Chamava Floripes a todo momento, queria saber minúcias do passado dela.
Ia dar início a profundas modificações em sua pessoa. Começaria pelos trajes: roupa clara, moderna, não mais aqueles ternos escuros cobrindo a eventual austeridade. Seu físico de homem empinado e enxuto não parecia de todo desagradável. Entraria de sócio para algum clube; e se encontrasse um professor discreto, talvez aprendesse a dançar.  Essas providências seriam a sua toilette exterior para a nova fase da vida.  Semanas depois, aliviado do colarinho duro, era visto pelas ruas em trajes mais leves, sorrindo forçado para os conhecidos.  Tornou-se sócio de um clube da Lagoa. Sozinho porém nunca punha os pés lá, até que um dia se fez acompanhar pelo Lulu, bom atleta e péssimo funcionário, que o apresentara como “velho servidor do Estado” às principais beldades do bairro. Como dialogar com elas? Não conhecia futebol nem equitação, não sabia jogar baralho, não guardava nomes de artistas de cinema, ignorava os escândalos da sociedade.
Tentou manter conversa, não conseguiu. Parecia-lhe que zombavam dele. Se algumas moças lhe dirigiam a palavra era como se lhe atirassem esmola. Acabou a noite só e triste, agarrado ao seu copo de uísque. Quase nunca provava essa bebida; achava-a até ruim. Como fazia parte do rito social, não custava virar o copo. Deixou o Lulu com as moças, e saiu fazendo uma careta. “Velho servidor do Estado...”
O farol dos automóveis apagava nas águas da Lagoa o reflexo das últimas estrelas. Um casal abraçava-se debaixo de uma amendoeira. Sentiu-se mais só. A vida era para os outros. Antes tivesse ainda algum processo a informar;
estaria ocupado em alguma cousa. Não! Um começo de soluço contraiu-lhe a garganta. Chamou um taxi.
No dia seguinte postou-se, como outros de sua idade, numa das
esquinas da Rua Gonçalves Dias, local preferido pelos militares da reserva
e
aposentados de luxo, gente saudosa do passado. Notou que eles se compraziam
em adejar perto dos doces da confeitaria, e ver passar as damas elegantes de outrora.
Ali se perfilava, de terno branco, um velho Almirante de suas relações:
- Olhe, faça como eu: nunca se convença de que é aposentado.  Adquira algum vício, se já não o tem. Evite os velhos. Um pouco de exercício pela manhã. Hormônios às refeições, não é mau. Quanto a conviver, só com gente moça.
Ele aprendera na véspera o que era conviver com gente moça... Para rematar, e como índice de otimismo, contou-lhe o Almirante uma anedota pornográfica.
O funcionário riu com esforço, e despediu-se enojado. Entrou numa livraria. Buscaria a solução na leitura dos romances.  Pediu um, à escolha do caixeiro. Tentou ler. Impossível passar das primeiras páginas. Não compreendia como tanta gente perde horas lendo mentiras. Ao atravessar, dias depois, o Viaduto, deixou o livro cair lá embaixo, sentiu-se livre daquilo.
O melhor mesmo era ficar debruçado à janela. E todas as manhãs,
enquanto a criada abria a meio as venezianas para deixar sair a poeira da
arrumação, José Maria as escancarava para fazer entrar a paisagem. Dali
devassava recantos desconhecidos. Ilhas que jamais suspeitara. Acompanhava
a evolução das nuvens, começava a distinguir as mutações da luz no céu e
sobre as águas. Notava que tinha progredido alguma coisa na percepção dos
fenômenos naturais. Começava a sentir realmente a paisagem. E se considerava
quase livre da uréia burocrática.
Esse noivado tardio com a natureza fê-lo voltar às impressões da adolescência.
Duília!
Toda vez que pensava nela, o longo e inexpressivo interregno do Ministério, que chegava a confundir-se com a duração definitiva de sua própria vida, apagava-se-lhe de repente da memória. O tempo contraía-se.  Duília!
Reviu-se na cidade natal com apenas dezesseis anos de idade, a acompanhar a
procissão que ela seguia cantando. Foi nessa festa da igreja, num fim de tarde, que tivera a grande revelação.
Passou a praticar com mais assiduidade a janela. Quanto mais o fazia, mais as colinas da outra margem lhe recordavam a presença corporal da moça.  Às vezes chegava a dormir com a sensação de ter deixado a cabeça pousada no colo dela. As colinas se transformavam em seios de Duília. Espantava-se da metamorfose, mas se comprazia na evocação.
Não ignorava o que havia de alucinatório nisso. Chegava a envergonhar-se. Como
evitá-lo? E por que, se isso lhe fazia bem?
Era o aforamento súbito da namorada, seus seios reluzindo na memória como duas gemas no fundo d’água. Só agora se dava conta de que, sem querer, transferira para Adélia a imagem remota. Mas Adélia não podia perceber que era apenas a projeção da outra. Mesmo porque, temendo o ridículo, José Maria jamais se deixara trair.
Disponível, sem jeito de viver no presente, compreendeu que despertara com muitos anos de atraso nos dias de hoje. Não encontraria mais os caminhos do futuro, nem havia mais futuro nenhum. Chegara ao fim da pista. De Beto, não havia mais notícias.
Da velha cidade que restava? Onde o Rio de outrora? As casas rentes ao solo, os pregões, o peixeiro à porta? A cada arranha-céu que subia - eles sobem
a todo momento - a cidade calma de José Maria ia-se desmanchando.
Sentiu que sobrava. Impossível reatar relações com uma cidade irreconhecível.  Pediu que o cancelassem do clube da Lagoa; desistiu da aula de dança.
Só lhe fazia bem desentranhar o passado. Dias e noites o evocava com a cumplicidade da paisagem. E no fundo da contemplação, insistiam os dois focos luminosos. Ora se acendendo, ora se apagando.  Odiava recordar-se da Repartição. Nem sabia explicar como, nas tardes de movimento, mais de uma vez suas pernas o largaram nas imediações do Ministério.
Começava a sentir-se livre. Para outra direção o chamava o que havia de mais excitante em sua vida. Ao apelo póstumo, nem tudo de seu passado parecia perdido. Sabia agora o que ia fazer. Trauteando uma canção, tomou o bondezinho. Entrou em casa com o coração palpitando. Reviu-se mais jovem ao espelho.
Quando Floripes chegou de manhã cedo, encontrou-o de pé. Lamentava não ter
tempo de encomendar um terno novo para apresentar-se melhor
ao seu passado...
- Floripes, tu tomas conta do apartamento. Eu vou viajar. Meu
procurador te dará dinheiro para as despesas. Se Beto aparecer, dirás que eu
parti... Dirás também que... Não, não precisas dizer mais nada. Se quiseres,
traze para cá tua filha e o netinho.
Floripes parou espantada.
- Será que o patrão vai-se embora?
- Vou, Floripes.
- Para não voltar mais?
- Não sei, Floripes.
- E se chegar alguma carta, patrão, para onde devo mandar?
- Não haverá cartas para mim. Ninguém me escreve...
- E se alguém telefonar?
- Oh, Floripes, por favor...
O que transpirava de solidão e amargura nessas palavras, compreendeu-o a velha
Floripes, que se absteve de novas perguntas.
Descendo à cidade, José Maria comprou malas, preveniu passagens.  Outro homem agora, alegre quase. Não precisaria mais fazer esforço para ser o que não era. Difícil coisa querer forçar a alma e o corpo a uma vida a que não se adaptam. Agora, sim, ia ser feliz. E se alvoroçava como o imigrante que se repatria.
Fazia uma tarde bonita. Pela primeira vez Zé Maria achara agradável estar na rua. Mulheres sorrindo, vitrinas iluminadas. Parecia que a cidade, à última hora, caprichava em exibir-lhe alguns de seus encantos. Assim procede a mulher indiferente, ao ver partir o homem a quem fez sofrer.  Comprou um mapa do país. Só com apertá-lo ao peito sentiu-se livre e já fora do Rio. Voltou para casa. Abriu-o em cima da cama, seguindo com a ponta do lápis os meandros do coração montanhoso do Brasil.  - Aqui! marcou.
Era perto de uma cordilheira no centro-sul. A cidadezinha enchia-lhe o coração, embora insignificante demais para constar na carta.  Estranhou o apito fanhoso da Diesel à hora da partida. Voz sem autoridade, mais mugido que apito. Tão diferente do grito lírico da locomotiva que há mais de quarenta anos o trouxera do interior. Entristeceu. Muita coisa haveria que encontrar pela frente, modificada pelo progresso: a locomotiva por exemplo; o trem de luxo em que viajava.
Seu desejo era refazer de volta, pelos meios de antigamente, o mesmo roteiro de outrora. Impossível. Estradas novas vieram substituir-se aos
caminhos que levam ao passado. Com o coração inundado de reminiscências, preferia evitar Belo Horizonte. Receava que a visão da cidade nova viesse aumentar-lhe a sensação do envelhecimento pessoal.  Pela madrugada, o trem parou horas entre duas estações. O viajante despertou com o silêncio. Só ouvia o sussurro do ventilador. Toda a composição de um cargueiro tinha tombado mais adiante, entornando manganês pelo vale. Preparava-se a baldeação.  José Maria aproveitou para descer, e sentir o cheiro de Minas. O sol vinha esgarçando devagar o véu de bruma que cobria as serras tranqüilas.  Anoitecia já em Belo Horizonte, quando chegou com atraso. Disseram-lhe que era preciso tomar, no dia seguinte, a “jardineira” para Curvelo.  A nova Capital, mesquinha cidade poeirenta há quarenta anos, era agora um grande centro onde ninguém se lembraria dele. Para que então sair à rua, ver arranha-céus, caminhar entre as novas gerações de desconhecidos?  Preferível fechar-se no quarto do hotel até que chegasse a hora da “jardineira Agradável. na manhã seguinte o percurso numa rodovia que não era de seu tempo. Ônibus e caminhões escureciam as estradas de poeira. Ao pé de uma serra calcárea, que conhecera intacta, as chaminés de uma fábrica de cimento emitiam rolos de fumaça escura. Mais adiante, os fornos de uma siderúrgica.
Cansado, adormeceu. Despertou com um coro longe, de vozes, coro que subitamente cresceu e passou, lançando-lhe no coração um jacto de poesia. Era uma “jardineira” repleta de mocinhas, colegiais de uniforme azul e branco que desciam do sertão para a reabertura do ano letivo na capital.  No banco ao lado, um passageiro queimado de sol parecia esperar que José Maria acordasse para encetar conversa.
- Pois é. Estamos em fins de fevereiro e nada de chuva! Em toda a parte agora tem Ceará. Se aquilo lá desaba - apontou para uma nuvem escura - é porque Deus qué me ajudá: tá mesmo em cima de minha roça.  Mas não desaba, não!...
Olhou fitamente para José Maria. Teria achado nele um tipo estranho
à região.
- Vosmecê também vai comprá cristá, não é?
- Não, respondeu José Maria.
- Tá indo pro Rio S. Francisco?
- Não. Estou indo para um lugar chamado Pouso Triste.
- Pra cá de Monjolo? Ah! conheço por demais... Já botei roça lá perto.
- Ouviu por acaso falar em Duília?
- Duília... Duília... Espera aí... Duília... Ah! o senhor queria dizer D. Dudu, não é? Conheço muito.
José Maria sentiu um estremecimento. Arrependera-se da pergunta.
Calou-se. A deformação de um nome tão doce como Duília horrorizava-o.  Devia ser outra pessoa. Era melhor não prosseguir na conversa. O homem queimado compreendeu, e calou-se.
Ao entardecer, apitava uma fábrica de tecidos e uma vitrola esganiçava a todo pano, quando a “jardineira” encostou à porta do hotel principal de uma cidade. Era Curvelo, boca do sertão mineiro.  José Maria já se sentia dentro da área do passado.  Daí em diante a viagem se faria nas costas de um burro. Tudo como quando tinha dezesseis anos. Tratou um “camarada” que o gerente do hotel lhe indicara. Na manhã seguinte, cedinho, partiu rumo de leste.  - Se não cai temporá, nóis chega dereitinho, patrão - disse-lhe o camarada, enquanto Curvelo desaparecia atrás, numa nuvem de poeira.
O velho funcionário, ao mesmo tempo que sentia a delícia de montar
um animal e respirar o ar puro, receava lhe voltassem aquelas pontadas que
o atormentavam na Repartição. Soero, o camarada, desconfiava estar seguindo um homem importante;
mas não ousava perguntar.
- O Rio das Velhas vem vindo por aí, anunciou depois das primeiras horas de caminhada.
Pouco depois, o rio fiel aparecia ao viajante. - Oh! velho Rio das Velhas! exclamou José Maria. Sempre no mesmo lugar! E todo esse tempo me esperando!
Achou-o tranqüilo, mas um pouco emagrecido.
Soero foi chamar o balseiro, enquanto José Maria, agachado na areia, deixava que o velho rio lhe ficasse correndo longo tempo entre os dedos.  Embarcaram as alimárias, e foram deslizando de balsa para a margem oposta.
De pé, o funcionário parecia estar sonhando. A bengala desamarrou-se da mala e caiu na correnteza. Soero quis mergulhar. - Deixa, deixa! gritou José Maria.
Preferia não perdê-la. Era afinal uma lembrança dos ex-colegas. Mas já que foi para o fundo do rio, que lá ficasse.
Almoçaram e retomaram a montaria.
- Agora vem Dumbá. Oito léguas, disse o camarada.
- E o Paraúna? reclamou o viajante, recordando-se.
- Ainda temos que atravessá.
Tudo era deslumbramento para o viajante. À medida que ouvia esses nomes quase esquecidos, a coisa nomeada aparecia logo adiante, rio ou povoado.
As léguas se estiravam, a noite ia longe. Ou porque a escuridão fosse
maior com a lua minguante, ou porque a correnteza engrossasse de repente,
o Paraúna surgiu mudado e agressivo. Nem parecia o rio que os viajantes
atravessam a vau. Soero explicou que devia ter chovido muito nas cabeceiras,
daí aquele despropósito de águas; mas baixariam depressa, esses rios magrinhos
enfezam por qualquer pancada de chuva, depois se aquietam que nem córrego manso.
- Se vosmecê não quisé chegá até o arraiá, a gente espaia os burro e arrancha por aqui mesmo.
Apearam-se. Soero desceu os arreios e a cangalha, amarrou o cincerro ao pescoço do cavalo-madrinha, e deixou os animais pastando perto.  Deitado no couro, José Maria escutava o sussurro das águas. Pouco se lhe dava o corpo moído, a dor nos rins. Nunca se imaginara deitado ao relento, a cabeça quase encostada a um de “seus rios”. Ficou a escutá-lo. Era como o primeiro rumor de um passado que vinha se aproximando.  Cobrindo-se com a manta, adormeceu. Soero fumava e se persignava, a olhar desconfiado para a outra margem onde um vulto branco parecendo fantasma esperava pelo abaixamento das águas.  De madrugada o Paraúna voltou ao natural. Soero saudou o vulto de branco com quem cruzou no meio do rio. O homem respondeu em latim.  José Maria se espantou ao ouvir frases latinas em cima daquelas águas, naquele ermo... Perguntou o que era aquilo. Soero disse que não sabia, sempre o encontrava bêbado pelos caminhos.
- Dizem que sabe muito e ficou maluco.
As alimárias seguiam agora em trote mais animado para a Rancharia do Dumbá, onde, a conselho do “camarada”, devia o viajante descansar o resto da tarde e passar a noite, antes de encetarem a travessia mais difícil da Serra do Riacho do Vento, na Cordilheira do Espinhaço.  A Rancharia é pouso forçado para quem atravessou ou vai atravessar a Cordilheira. Reconheceu-a de longe o viajante, pelo pé de tamarindo. O mesmo de sempre.
O pernoite ali, enquanto os animais recebiam ração mais forte de sal e
capim, ia permitir ao metódico funcionário a recuperação das forças exaundas. Viagem violenta demais para um sedentário. Ficara-lhe nos ouvidos o Paraúna com o barulho de suas águas. Não era o desconforto da cama nem a pobreza do aposento que lhe tiravam o sono; nem o latido dos cães, nem o relinchar dos burros; nem uma sanfona triste que parecia exprimir toda a solidão lá fora: era o fato de se achar mais perto, dentro quase daquilo que não precisava mais evocar para sentir.  Mais algumas léguas e tocaria o núcleo de seu sonho.  O que mais o espantara no gesto de Duília - recordava-se José Maria durante a insônia, agarrando-se ao travesseiro - foi a gratuidade inexplicável e a absurda pureza. Ela era moça recatada, ele um rapazinho tímido; apenas se namoravam de longe. Mal se conheciam. A procissão subia a ladeira, o canto místico perdia-se no céu de estrelas. De repente, o séquito parou para que as virgens avançassem, e na penumbra de uma árvore, ela dá com o olhar dele fixo em seu colo, parece que teve pena e, com simplicidade, abrindo a blusa, lhe disse: - Quer ver? - Ele quase morre de êxtase. Pálidos ambos, ela ainda repete: - Quer ver mais? - E mostra-lhe o outro seio branco, branco... E fechou calmamente a blusa. E prosseguiu cantando...  Só isso. Durou alguns segundos, está durando uma eternidade. Apenas uma vez, depois do acontecimento, avistara Duília. A moça se esquivara. Mas o que ela havia feito estava feito, e era um alumbramento.  Custava acreditar que estivesse agora se aproximando dessa fonte de claridade. Sentiu bater mais depressa o coração. E desejou que o dia raiasse logo.
Puseram-se de novo a caminho. Horas depois, galgavam a serra. Salvo nos capões onde a quaresma e o pequizeiro se destacavam, a vegetação ia-se fazendo mais pobre: canela-de-ema, coqueiro-anão, cacto - enquanto o panorama se ampliava, e a vista abarcava os longes. Por um segundo essa paisagem cruzou no pensamento de José Maria com o panorama de Santa Teresa. Um segundo apenas, pois logo apareceu uma boiada que lhe cobriu o rosto num turbilhão de poeira.
Faltava o trecho maior para se chegar ao Arraial de Camilinho. Os burros suavam na subida penosa. - Daqui a pouco vem o Chapadão, avisou Soero.
A essa palavra, José Maria animou-se. Tal como na antevéspera, ao ouvir o nome Rio das Velhas.
Pela altitude, pelas suas léguas de pedra e vento, pelo seu silêncio, esse chapadão do Riacho do Vento lhe surgira como entidade autônoma e orgulhosa, que dava passagem ao homem mas lhe negava abrigo para morar e pastagem para o gado.
Era o trecho mais imponente e difícil no acesso à região de Duília. Por ali transitara há mais de quatro decênios, fazia uma noite escura, só pelos relâmpagos podia suspeitar o panorama irreal que se desdobrava de dia. Ia então fazer os preparatórios em Ouro Preto, e caminhava cheio de medo para o Futuro; seu pai e um caixeiro-viajante o acompanharam até a primeira estação da Estrada de Ferro. Láo puseram no carro. Foi quando começou a ficar só no mundo, e pela primeira vez chorou o choro da tristeza.  O velho funcionário não dava uma palavra. Contemplava. À esquerda, as extensões lisas das “gerais” do S. Francisco; à direita, as colinas arranhadas pelas minerações da bacia do alto Jequitinhonha. Estranhava o ar parado numa serra que trazia o nome de Riacho do Vento.  Entre os trilhos quase apagados que confundiam o viandante, quem dava a direção era o cincerro do cavalo-madrinha.  Já o sol deixara de reluzir nos aforamentos de pedra e mica, e ainda havia léguas pela frente. Como fica longe o lugar do passado!  Abatido, o olhar vago, o viajante parecia estar seguindo os caminhos do próprio pensamento. O cansaço aumentava. Onde o fim do Chapadão? Imenso Brasil. Era então por esses ermos sem fim que corriam ofícios e papéis da administração pública?! Quantos, ele mesmo, José Maria, fizera despachar sem a mais vaga idéia das distâncias que iam cobrir! Mergulhava em reflexões. Infinita a distância entre a natureza e o papelório! De repente, dirigindo-se ao camarada:
- Você conhece Duília?
Soero não ouvira bem, ou não compreendera a pergunta que vinha perfurar um silêncio de horas. Esperou que o patrão a repetisse, mas o grito de um pássaro desmanchou o começo do diálogo. E tudo ficou por isso mesmo.
Depois de seis léguas de marcha batida, Soero sentiu que o homem misterioso não agüentava mais.
- Acho que de uma vezada só até Camilinho, é um bocado de chão pra vosmecê.
Propôs uma pausa. Pouco adiante, descobriu uma grota para o pernoite.  Num córrego de águas frescas, os animais desarreados mataram a sede. Os dois homens jantaram o que traziam nos bornais. Os couros Foram novamente estendidos. José Maria, amedrontado, perguntou a Soero se havia onças por ali.
O camarada tranqüilizou-o. Enquanto para este era aquela uma noite de rotina, para o velho funcionário repetia-se, a céu descoberto, a aventura excitante das margens do Paraúna. Doíam-lhe tanto os membros e era tal o cansaço, que já não podia contemplar por muito tempo as estrelas que cintilavam pertinho. Mergulhou no sono pesado.  Às onze horas do dia seguinte, entrava no Arraial do Camilinho. Aí se dispunha a refazer as energias para a etapa final.  Tudo o que vinha percorrendo já era país de Duília. Agora sim, não precisava ter pressa. A bem dizer, do alto do Riacho do Vento para cá, a moça parecia ter-lhe vindo ao encontro. Era como se ela viajasse na garupa do animal.
O resto da tarde e a noite passou-os José Maria na pensão da Juvência.  A velha nem se lembrava de que ele ali estivera, adolescente, ao deixar Pouso Triste: também ela o supunha algum emissário norte-americano atrás de minério para a guerra. José Maria preferiu passar incógnito. Absteve-se de pedir informações.
Mais seis horas e estaria naquela cidadezinha, face a face com a mulher sonhada. Não imaginava agora fosse tão fácil aproximar-se do que tão longe lhe parecera no tempo ou no espaço.
Detinha o burro a cada momento; olhava, hesitava. Nem mesmo se inquietara com a nuvem de chuva que vinha avançando do nordeste. Soero estranhou a indiferença do patrão. O aguaceiro caiu, molhou a ambos.  José Maria tinha medo de chegar.
Passou a chuva, veio o sol, borboletas voejavam sobre a lama recente.  E Pouso Triste se aproximando... perfil de colinas conhecidas... o riacho cristalino com um último faiscador... o sítio do Janjão. Agora, o cemitério onde dormem os seus pais... “Estarei sonhando?” - Pouso Triste!
Olhou confrangido. Era então aquilo!... E a cidade?
Trazia na memória a visão de uma cidade: surgiu-lhe um arraial!...
Pobre e inaceitável burgo, todo triste e molhado de chuva!...
Foi descendo devagar. Passou em frente à igreja, entrou na praça vazia.
Fantasmas desdentados conversavam à porta da venda.
A brisa agitava as folhas da única árvore gotejante.
Tinha sido ali...
A pensão. Parou e entrou. Pediu um banho, mudou de roupa. Sórdido chuveiro. Foi para a janela. Povoado lúgubre! Como compará-lo à cidade
luminosa que erguera em pensamento para santuário de Duília? Teve raiva de si mesmo. Nenhum parente, ninguém para reconhecê-lo. Melhor assim.
Fixou a árvore. Era a mesma... Pelo menos aquilo sobrevivera. Saiu para vê-la
de perto; deixou-se ficar debaixo de seus galhos. Reviveu a cena
inesquecível... Mas não encontrou o mesmo sabor. A árvore parecia indiferente. Não se conformava com a falta de claridade. Nem a da luz exterior, nem a outra, subjetiva, que iluminava a cidade ideal onde se dera a aparição da moça.
Pertinho, bem perto devia estar ela. Tão perto que assustava. Dentro de poucos instantes - o seu rosto, a sua voz, os seios!... Mas aquele marasmo, o torpor das coisas - o envelhecimento da árvore e da paisagem, tudo prenunciava a impossibilidade de Duília.
Timidamente, pediu notícias à dona da pensão. A velha fez um esforço de memória. E tal como o passageiro da “jardineira”, respondeu: - Duília?...  Dona Dudu, não é? Uma viúva? Ah! sumiu daqui já faz tempo. Ouvi dizer que está de professora no Monjolo. Ainda que mal lhe pergunte, vosmecê é parente dela? - Não, disse José Maria. E para desarmar a curiosidade da velha:
- Trago-lhe umas encomendas.
Deixou passar alguns instantes. Perguntou por perguntar:
- Sabe dizer se tem filhos?
- Filhos? Um horror de netos!... Que Deus me perdoe, o marido era uma peste.
Não quis saber do resto.
Despediu-se de Soero, o bom camarada; pagou-lhe bem o serviço.
Seguiria sozinho até Monjolo. Conhecia a estrada. Pouco mais de três léguas.  Léguas que se tornaram difíceis, pois a lama era muita, e o burro mal ferrado patinhava.
A viagem se arrastava sem o encantamento da que terminara na véspera.  Não desejava que a decepção de Pouso Triste influísse na sua chegada a Duília.
Tudo agora parecia pior, o caminho mais estreito, mais aflitiva a ausência de claridade. Sentiu o deserto no coração. Sua alma deixou de viajar.  Fazia-lhe falta a presença muda de Soero. Fez parar o animal.
- Será que Duília...
Novamente lhe viera o terrível pressentimento. Como aceitar outra imagem dela senão a que guardara consigo: a namorada eterna, fixa? A imaginação delirante não cedia à evidência da razão.  A poucas horas da amada, José Maria tremia de medo.  O burro começou a andar por conta própria. Os últimos quilômetros o viajante os fez como um autômato.
Monjolo se anunciava por um som de sanfona que parecia o gemido constante do fundo do Brasil.
Foi surgindo pela frente um arraial ainda menor e mais pobre que Pouso Triste. Os urubus não freqüentavam o céu, quase se deixavam pisar pelas patas da alimária. José Maria engoliu um soluço.  Tomados de espanto, os poucos moradores espiavam o estrangeiro.  O letreiro “Escola Rural” aparecia em tinta esmaecida. Uma casinha modesta, com chiqueiro no porão. A sala de espera limpa, com gravuras de santos enfeitados de flores de papel, e que tanto servia à Escola como à residência, nos fundos. As carteiras escolares estavam quebradas.  O viajante apeou-se, bateu à porta. Uma senhora, muito pálida, veio atendê-lo em chinelos.
- Eu queria falar com Duília... Dona Duília... corrigiu.
A senhora fê-lo entrar e sentar-se. Pediu licença, deixou a sala.
Momentos depois, voltou mais arrumada. Seus cabelos eram grisalhos, a voz meio rouca, o sorriso agradável, apesar dos dentes cariados. Ainda não tinha
sessenta anos, e aparentava mais.
- A senhora também é professora?
Duas crianças gritaram da porta: - Dona Dudu! Dona Dudu!
Ela respondeu: - Vão brincar lá fora. E virando-se para o estranho:
- Não se pode ficar sossegada um minuto. Esses meninos acabam com a
gente.
José Maria sentiu como que uma pancada na nuca. Baixou as pálpebras,
confuso. A professora ficou esperando que ele se identificasse. Notou-lhe a
fisionomia alterada, um começo de vertigem.
- Está-se sentindo mal?
Saiu e voltou com um copo d’água.
- Não foi nada. O cansaço da viagem. Já passou.
Olhava para ela estarrecido.
A mulher, aflita por que o desconhecido desse o nome.
- Veio a passeio, não é?
- Não. Não vim propriamente a passeio...
- Um lugar tão distante... Ultimamente as jazidas têm atraído muitos estrangeiros para cá.
- Eu não sou estrangeiro - respondeu o visitante. Sou brasileiro...
E daqui... de bem perto daqui. Sou também de Pouso Triste...
Uma expressão de surpresa e simpatia clareou o rosto da professora.
José Maria encarou-a com dolorosa intensidade. Subitamente empalideceu.  Chegara o momento culminante. Fechou os olhos como se não quisesse ver o efeito das próprias palavras. A professora pressentiu que algo de grave trouxera até ali o sombrio visitante. Atordoada, esperou. José Maria principiou a falar:
- Lembra-se de um rapazinho, há muitos anos, que a viu numa procissão?
A mulher abriu os olhos.
- Nós tínhanos parado debaixo de uma árvore... lembra-se? Ela ainda está lá... não morreu. Eu olhava como um louco para você, Duília...  Ao ouvir pronunciar seu nome com intimidade cúmplice, a professora teve um arrepio. O homem não sabia como continuar. Hesitou um momento.  - Depois... depois eu larguei Pouso Triste. Nunca mais me esqueci.
E só agora...
Parou no meio da frase. Tremia-lhe o queixo.  A mulher, assustada, reconhecera nele o rapazinho de outrora. Fitou-o longamente. Passou-lhe pelo rosto um lampejo de mocidade.  Volvendo a cabeça para o chão, enrubesceu com quarenta anos de atraso...
Quedaram-se por alguns momentos. O vazio do mundo pesava sobre o sossego do povoado. Grunhiam os porcos embaixo. Um cheiro de lavagem e de goiaba madura entrava pela janela, e parecia a exalação do passado.  José Maria suspirou fundo. Aquela mulher, flor de poesia, era agora aquilo! Fantasma da outra, ruína de Duília... Dona Duília... Dudu!
A mulher interrompeu a longa pausa:
- Tudo aqui envelheceu tanto! disse, erguendo a cabeça. Que veio fazer nesse fim de mundo, seu José Maria?
Ouvindo-a por sua vez pronunciar-lhe o nome, sentiu-se José Maria menos distante dela. Parecia que davam juntos o mesmo salto no tempo.  - Vim à procura de meu passado, respondeu.
- Viajar tão longe para se encontrar com uma sombra! E volvendo-se para si mesma: - Veja a que fiquei reduzida.
José Maria pousou o olhar no colo murcho, local do memorável acontecimento.
Aquilo que ali estava poderia ser a mãe de Duília, da Duília que ele trazia na memória, jamais a própria.
- Não devia ter feito isso, advertiu a mulher, como que despertando
da profunda cisma.
- O quê?
- Voltar ao lugar das primeiras ilusões.
“Sim, é verdade, pensou o homem, não devia ter vindo. O melhor de seu passado não estava ali, estava dentro dele. A distância alimenta o sonho.  Enganara-se. Tal como Fernão Dias com as esmeraldas...” Ergueu-se, chegou à janela. A tarde caía depressa. Os casebres se fundiam na cinza suja. Uma preta entrou e acendeu o lampião de querosene.  Não tinha mais tempo para criar novas ilusões. Nada mais a esperar.  Ficaria por ali mesmo... Floripes fizesse o que entendesse da casinha de Santa Teresa. Felizes os que ainda desejam alguma coisa, os que lutam e morrem por alguma coisa. Felizes aquelas meninas que desceram cantando para Belo Horizonte. A ele, José Maria, só lhe restava encalhar naquele buraco, dissolver-se por ali mesmo, agarrado aos últimos destroços do passado.  Sentiu falta de ar. Bem a seu lado se achava alguém que se dizia Duília, espectro da outra. Espectro também, Pouso Triste; e aquele mesquinho arraial lá fora... e tudo o mais que a noite vinha cobrindo!  Súbita raiva transfigurou-lhe as feições. Voltou a ser o estranho, o que invadira a mansão de miséria e paz da velha professora. Teve ímpeto de espancá-la, destruir aquele corpo que ousara ter sido o de Duília. Desse corpo de que só vira um trecho, num relâmpago de esplendor...  Ante o silêncio sombrio do visitante, a professora teve medo. Procurou aliviar-lhe o desespero contido.
- Vai voltar para o Rio?
Ao ouvir a voz mansa, José Maria enterneceu-se. Sentia-lhe no timbre a ressonância musical da antiga. Sentou-se de novo; e fechando o rosto com as mãos, caiu no pranto. Achou-se ridículo, pediu desculpas. Duília, compassiva, tomou-lhe a mão, procurou consolá-lo. Um sentimento comum aproximava-os.
Espantou-se a professora ao se dar conta do que estava fazendo: dar a mão ao quase desconhecido de há pouco.
Por longo tempo, as duas mãos enrugadas se aqueceram uma na outra.  Mudos, transidos de emoção, ambos cerraram os olhos. Duas sombras dentro da sala triste...
O homem não se conteve. Ergueu-se, saiu precipitadamente. A professora correu
atrás:
- José Maria! Senhor José Maria!...
A voz rouca mais parecia soluço do que apelo.
- José Maria!
Os moradores se alvoroçaram:
- O que terá havido com a professora?
- Foi depois que chegou aquele estrangeiro alto!
- Quem será esse indivíduo?
E já se preparavam para perseguir o intruso, munindo-se de pedras e pedaços de pau. Mas o desconhecido desapareceu na escuridão.  Parada no meio do largo, Duília arquejava. Ninguém lhe ouvia mais a voz nem lhe distinguia o vulto.
Alguns soluços cortaram a treva. 

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Galinha cega João Alphonsus



Na manhã sadia, o homem de barbas poentas, entronado na carrocinha,
aspirou forte. O ar passava lhe dobrando o bigode ríspido como a um
milharal. Berrou arrastadamente o pregão molengo:
- Frangos BONS E BARATOS!
Com as cabeças de mártires obscuros enfiadas na tela de arame os bichos
piavam num protesto. Não eram bons. Nem mesmo baratos. Queriam
apenas que os soltassem. Que lhes devolvessem o direito de continuar
ciscando no terreiro amplo e longe.
- Psiu!
Foi o cavalo que ouviu e estacou, enquanto o seu dono terminava o
pregão. Um bruto homem de barbas brancas na porta de um barracão
chamava o vendedor cavando o ar com o braço enorme.
Quanto? Tanto. Mas puseram-se a discutir exaustivamente os preços.
Não queriam por nada chegar a um acordo. O vendedor era macio.
O comprador brusco.
- Olhe esta franguinha branca. Então não vale?
- Está gordota... E que bonitos olhos ela tem. Pretotes... Vá lá!
O homem de barbas poentas entronou-se de novo e persistiu em gritar
pela rua que despertava:
- Frangos BONS E BARATOS!
Carregando a franga, o comprador satisfeito penetrou no barracão.
- Olha, Inácia, o que eu comprei.
A mulher tinha um eterno descontentamento escondido nas rugas.
Permaneceu calada.
- Olha os olhos. Pretotes...
- É.
- Gostei dela e comprei. Garanto que vai ser uma boa galinha.
- é.
No terreiro, sentindo a liberdade que retornava, a franga agitou as penas
e começou a catar afobada os bagos de milho que o novo dono lhe atirava
divertidíssimo.
A rua era suburbana, calada, sem movimento. Mas no alto da colina
dominando a cidade que se estendia lá embaixo cheia de árvores no dia e de
luzes na noite. Perto havia moitas de pitangueiras a cuja sombra os galináceos
podiam flanar à vontade e dormir a sesta.
A franga não notou grande diferença entre a sua vida atual e a que levava
em seu torrão natal distante. Muito distante. Lembrava-se vagamente de ter
sido embalaiada com companheiros mal-humorados. Carregaram os balaios
a trouxe-mouxe para um galinheiro sobre rodas, comprido e distinto, mas
sem poleiros. Houve um grito lá fora, lancinante, formidável. As paisagens
começaram a correr nas grades, enquanto o galinheiro todo se agitava,
barulhando e rangendo por baixo. Rolos de fumo rolavam com um cheiro
paulificante. De longe em longe as paisagens paravam. Mas novo grito e elas
de novo a correr. Na noitinha sumiram-se as paisagens e apareceram fagulhas.
Um fogo de artifício como nunca vira. Aliás ela nunca tinha visto um fogo
de artifício. Que lindo, que lindo. Adormecera numa enjoada madorna...
Viera depois outro dia de paisagens que tinham pressa. Dia de sede e fome.
Agora a vida voltava a ser boa. Não tinha saudades do torrão natal.
Possuía o bastante para sua felicidade: liberdade e milho. Só o galo é que
às
vezes vinha perturbá-la incompreensivelmente. Já lá vinha ele, bem elegante,
com plumas, forte, resoluto. Já lá vinha. Não havia dúvida que era bem
bonito. Já lá vinha... Sujeito cacete.
O galo - có, có, có - có, có, có - rodeou-a, abriu a asa, arranhou
as penas com as unhas. Embarafustaram pelo mato numa carreira doida. E
ela teve a revelação do lado contrário da vida. Sem grande contrariedade a
não ser o propósito inconscientemente feminino de se esquivar, querendo e
não querendo.
- A melhor galinha, Inácia! Boa à beça!
- Não sei por quê.
- Você sempre besta! Pois eu sei...
- Besta! besta, hein?
- Desculpe, Inácia. Foi sem querer. Também você sabe que eu gosto
da galinha e fica me amolando.
- Besta é você!
- Eu sei que eu sou.
Ao ruído do milho se espalhando na terra, a galinha lá foi correndo
defender o seu quinhão, e os olhos do dono descansaram em suas penas
brancas, no seu porte firme, com ternura. E os olhos notaram logo a
anormalidade. A branquinha - era o nome que o dono lhe botara - bicava
o chão doidamente e raro alcançava um grão. Bicava quase sempre a uma
pequena distância de cada bago de milho e repetia o golpe, repetia com
desespero, até catar um grão que nem sempre era aquele que visava.
O dono correu atrás de sua branquinha, agarrou-a, lhe examinou os
olhos. Estavam direitinhos, graças a Deus, e muito pretos. Soltou-a no
terreiro e lhe atirou mais milho. A galinha continuou a bicar o chão
desorientada. Atirou ainda mais, com paciência, até que ela se fartasse. Mas
não conseguiu com o gasto de milho, de que as outras se aproveitaram, atinar
com a origem daquela desorientação. Que é que seria aquilo, meu Deus do
céu. Se fosse efeito de uma pedrada na cabeça e se soubesse quem havia
mandado a pedra, algum moleque da vizinhança, ai... Nem por sombra
imaginou que era a cegueira irremediável que principiava.
Também a galinha, coitada, não compreendia nada, absolutamente
nada daquilo. Por que não vinham mais os dias luminosos em que procurava
a sombra das pitangueiras? Sentia ainda o calor do sol, mas tudo quase sempre
tão escuro. Quase que já não sabia onde é que estava a luz, onde é que estava
a sombra.
Foi assim que, certa madrugada, quando abriu os olhos, abriu sem ver
coisa alguma. Tudo em redor dela estava preto. Era só ela, pobre, indefesa
galinha, dentro do infinitamente preto; perdida dentro do inexistente, pois
que o mundo desaparecera e só ela existia inexplicavelmente dentro da
sombra do nada. Estava ainda no poleiro. Ali se anularia, quietinha, se
finando quase sem sofrimento, porquanto a admirável clarividência dos seus
instintos não podia conceber que ela estivesse viva e obrigada a viver, quando
o mundo em redor se havia sumido.
Porém, suprema crueldade, os outros sentidos estavam atentos e fortes
no seu corpo. Ouviu que as outras galinhas desciam do poleiro cantando
alegremente. Ela, coitada, armou um pulo no vácuo e foi cair no chão
invisível, tocando-o com o bico, pés, peito, o corpo todo. As outras cantavam.
Espichava inutilmente o pescoço para passar além da sombra. Queria ver,
queria ver! Para depois cantar.
As mãos carinhosas do dono suspenderam-na do chão. - A coitada está cega, Inácia! Cega!
- é.
Nos olhos raiados de sangue do carroceiro (ele era carroceiro) boiavam
duas lágrimas enormes.
Religiosamente, pela manhãzinha, ele dava milho na mão para a galinha
cega. As bicadas tontas, de violentas, faziam doer a palma da mão calosa.
E ele sorria. Depois a conduzia ao poço, onde ela bebia com os pés dentro
da água. A sensação direta da água nos pés lhe anunciava que era hora de
matar a sede; curvava o pescoço rapidamente, mas nem sempre apenas o bico
atingia a água: muita vez, no furor da sede longamente guardada, toda a
cabeça mergulhava no líquido, e ela a sacudia, assim molhada, no ar. Gotas
inúmeras se espargiam nas mãos e no rosto do carroceiro agachado junto do
poço. Aquela água era como uma bênção para ele. Como a água benta, com
que um Deus misericordioso e acessível aspergisse todas as dores animais.
Bênção, água benta, ou coisa parecida: uma impressão de doloroso triunfo,
de sofredora vitória sobre a desgraça inexplicável, injustificável, na carícia
dos pingos de água, que não enxugava e lhe secavam lentamente na pele.
Impressão, aliás, algo confusa, sem requintes psicológicos e sem literatura.
Depois de satisfeita a sede, ele a colocava no pequeno cercado de tela
separado do terreiro (as outras galinhas martirizavam muito a branquinha)
que construíra especialmente para ela. De tardinha dava-lhe outra vez milho
e água, e deixava a pobre cega num poleiro solitário, dentro do cercado.
Porque o bico e as unhas não mais catassem e ciscassem, puseram-se a
crescer. A galinha ia adquirindo um aspecto irrisório de rapace, ironia do
destino, o bico recurvo, as unhas aduncas. E tal crescimento já lhe atrapalhava
os passos, lhe impedia de comer e beber. Ele notou mais essa miséria e, de
vez em quando, com a tesoura, aparava o excesso de substância córnea no
serzinho desgraçado e querido.
Entretanto, a galinha já se sentia de novo quase feliz. Tinha delidas
lembranças da claridade sumida. No terreiro plano ela podia ir e vir à vontade
até topar a tela de arame, e abrigar-se do sol debaixo do seu poleiro solitário.
Ainda tinha liberdade - o pouco de liberdade necessário à sua cegueira.
E milho. Não compreendia nem procurava compreender aquilo. Tinham
soprado a lâmpada e acabou-se. Quem tinha soprado não era da conta dela.
Mas o que lhe doía fundamente era já não poder ver o galo de plumas bonitas.
E não sentir mais o galo perturbá-la com o seu có-có-có malicioso. O ingrato.
Em determinadas tardes, na ternura crescente do parati, ele pegava a
galinha, após dar-lhe comida e bebida, se sentava na porta do terreiro e
começava a niná-la com a voz branda, comovida:
- Coitadinha da minha ceguinha!
- Tadinha da ceguinha...
Depois, já de noite, ia botá-la no poleiro solitário.
De repente os acontecimentos se precipitaram.
- Entra!
- Centra!
A meninada ria a maldade atávica no gozo do futebol originalíssimo.
A galinha se abandonava sem protesto na sua treva à mercê dos chutes. Ia e
vinha. Os meninos não chutavam com tanta força como a uma bola, mas
chutavam, e gozavam a brincadeira.
O carroceiro não quis saber por que é que a sua ceguinha estava no
meio da rua. Avançou como um possesso com o chicote que assoviou para
atingir umas nádegas tenras. Zebrou carnes nos estalos da longa tira de sola.
O grupo de guris se dispersou em prantos, risos, insultos pesados, revolta. - Você chicoteou o filho do delegado. Vamos à delegacia.
Quando saiu do xadrez, na manhã seguinte, levava um nó na garganta.
Rubro de raiva impotente. Foi quase que correndo para casa.
- Onde está a galinha, Inácia?
- Vai ver.
Encontrou-a no terreirinho, estirada, morta! Por todos os lados havia
penas arrancadas, mostrando que a pobre se debatera, lutara contra o
inimigo, antes deste abrir-lhe o pescoço, onde existiam coágulos de sangue...
Era tão trágico o aspecto do marido que os olhos da mulher se
esbugalharam de pavor.
- Não fui eu não! Com certeza um gambá!
- Você não viu?
- Não acordei! Não pude acordar!
Ele mandou a enorme mão fechada contra as rugas dela. A velha
tombou nocaute, mas sem aguardar a contagem dos pontos escapuliu para
a rua gritando: - Me acudam!
Quando de novo saiu do xadrez, na manhã seguinte, tinha açambarcado todas as
iras do mundo. Arquitetava vinganças tremendas contra o gambá.
Todo gambá é pau-d’água. Deixaria uma gamela com cachaça no terreiro.
Quando o bichinho se embriagasse, havia de matá-lo aos poucos. De-va-gari-nho.
GOSTOSAMENTE.
De noite preparou a esquisita armadilha e ficou esperando. Logo pelas
20 horas o sono chegou. Cansado da insônia no xadrez, ele não resistiu. Mas
acordou justamente na hora precisa, necessária. A porta do galinheiro, ao
luar leitoso, junto à mancha redonda da gamela, tinha outra mancha escura
que se movia dificilmente.
Foi se aproximando sorrateiro, traiçoeiro, meio agachado, examinando
em olhadas rápidas o terreno em volta, as possibilidades de fuga do animal,
para destruí-las de pronto, se necessário. O gambá fixou-o com os olhos
espertos e inocentes, e começou a rir:
- Kiss! kiss! kiss!
(Se o gambá fosse inglês com certeza estaria pedindo beijos. Mas não
era. No mínimo estava comunicando que houvera querido alguma coisa.
Comer galinhas por exemplo. Bêbado.)
O carroceiro examinou o bichinho curiosamente. O luar, que favorece
os surtos de raposas e gambás nos galinheiros, era esplêndido. Mas apenas
tocou-o de leve com o pé, já simpatizado:
- Vai embora, seu tratante!
O gambá foi indo tropegamente. Passou por baixo da tela e parou
olhando para a lua. Se sentia imensamente feliz o bichinho e começou a
cantarolar imbecilmente, como qualquer criatura humana:
- A lua como um balão balança!
A lua como um balão balança!
A lua como um ......
E adormeceu de súbito debaixo de uma pitangueira. 

domingo, 5 de agosto de 2012

Contrabandista João Simões Lopes Neto



Batia nos noventa anos o corpo magro mas sempre teso do Jango Jorge,
um que foi capitão duma maloca de contrabandistas que fez cancha nos
banhados do Ibirocaí.
Esse gaúcho desabotinado levou a existência inteira a cruzar os campos
da fronteira: à luz do sol, no desmaiado da lua, na escuridão das noites, na
cerração das madrugadas...; ainda que chovesse reiúnos acolherados ou que
ventasse como por alma de padre, nunca errou vau, nunca perdeu atalho,
nunca desandou cruzada!...
Conhecia as querências, pelo faro: aqui era o cheiro do açouta-cavalo
florescido, lá o dos trevais, o das guabirobas rasteiras, do capim-limão; pelo
ouvido: aqui, cancha de graxains, lá os pastos que ensurdecem ou estalam
no casco do cavalo; adiante, o chape-chape, noutro ponto, o areão. Até pelo
gosto ele dizia a parada, porque sabia onde estavam águas salobres e águas
leves, com sabor de barro ou sabendo a limo.
Tinha vindo das guerras do outro tempo; foi um dos que peleou na
batalha de Ituzaingo; foi do esquadrão do general José de Abreu e sempre
que falava do Anjo da Vitória ainda tirava o chapéu, numa braçada larga,
como se cumprimentasse alguém de muito respeito, numa distância muito
longe.
Foi sempre um gaúcho quebralhão, e despilchado sempre, por ser
muito de mãos abertas.
Se numa mesa de primeira ganhava uma ponchada de balastracas,
reunia a gurizada da casa, fazia - pi! pi! pi! pi! - como pra galinhas e
semeava as moedas, rindo-se do formigueiro que a miuçalha formava,
catando as pratas no terreiro.
Gostava de sentar um laçaço num cachorro, mas desses laçaços de
apanhar a paleta à virilha, e puxado a valer, tanto, que o bicho que o tomava,
ficando entupido de dor, e lombeando-se, depois de disparar um pouco é
que gritava, num - caim! caim! caim! - de desespero.
Outras vezes dava-lhe para armar uma jantarola, e sobre o fim do festo,
quando já estava tudo meio entropigaitado, puxava por uma ponta da toalha
e lá vinha, de tirão seco, toda a traquitanda dos pratos e copos e garrafas e
restos de comidas e caldas dos doces!...
Depois garganteava a chuspa e largava as onças pras unhas do bolicheiro, que
aproveitava o vento e le echaba cuentas degran capitãn...
Era um pagodista!
Aqui há poucos anos - coitado - pousei no arranchamento dele.
Casado ou doutro jeito, estava afamilhado. Não nos víamos desde muito
tempo.
A dona da casa era uma mulher mocetona ainda, bem parecida e mui
prazenteira; de filhos, uns três matalotes já emplumados e uma mocinha -
pro caso, uma moça -, que era o - santo-antoninho-onde-te-porei! -
daquela gente toda.
E era mesmo uma formosura; e prendada, mui habilidosa; tinha andado
na escola e sabia botar os vestidos esquisitos das cidadãs da vila.
E noiva, casadeira, já era.
E deu o caso, que quando eu pousei, foi justo pelas vésperas do
casamento; estavam esperando o noivo e o resto do enxoval dela.
O noivo chegou no outro dia, grande alegria; começaram os aprontamentos, e
como me convidaram com gosto, fiquei pro festo.
O Jango Jorge saiu na madrugada seguinte, para ir buscar o tal enxoval
da filha.
Aonde, não sei; parecia-me que aquilo devia ser feito em casa, à moda
antiga, mas, como cada um manda no que é seu...
Fiquei verdeando, à espera, e fui dando um ajutório na matança dos
leitões e no tiramento dos assados com couro.
Nesta terra do Rio Grande sempre se contrabandeou, desde em antes
da tomada das Missões.
Naqueles tempos o que se fazia era sem malícia, e mais por divertir e
acoquinar as guardas do inimigo: uma partida de guascas montava a cavalo,
entrava na Banda Oriental e arrebanhava uma ponta grande de eguariços,
abanava o poncho e vinha a meia-rédea; apartava-se a potrada e largava-se o
resto; os de lá faziam conosco a mesma cousa; depois era com gados, que se
tocava a trote e galope, abandonando os assoleanos.
Isto se fazia por despique dos espanhóis e eles se pagavam desquitando-se do
mesmo jeito.
Só se cuidava de negacear as guardas do Cerro Largo, em Santa Tecla,
no Haedo... O mais, era várzea!
Depois veio a guerra das Missões; o governo começou a dar sesmarias
e uns quantíssimos pesados foram-se arranchando por essas campanhas
desertas. E cada um tinha que ser um rei pequeno... e agüentar-se com as
balas, as lunares e os chifarotes que tinha em casa!...
Foi o tempo do manda-quem-pode!... E foi o tempo que o gaúcho, o
seu cavalo e o seu facão, sozinhos, conquistaram e defenderam estes pagos!...
Quem governava aqui o continente era um chefe que se chamava o
capitão-general; ele dava as sesmarias mas não garantia o pelego dos
sesmeiros...
Vancê tome tenência e vá vendo como as cousas, por si mesmas, se
explicam.
Naquela era, a pólvora era do el-rei nosso senhor e só por sua licença é
que algum particular graúdo podia ter em casa um polvarim...
Também só na vila de Porto Alegre é que havia baralhos de jogar, que
eram feitos só na fábrica do rei nosso senhor, e havia fiscal, sim, senhor,
das cartas de jogar, e ninguém podia comprar senão dessas! Por esses tempos antigos também o tal rei nosso senhor mandou botar pra fora os ourives da vila do Rio Grande e acabar com os lavrantes e
prendistas dos outros lugares desta terra, só pra dar flux aos retnois...
Agora imagine vancê se a gente lá de dentro podia andar com tantas
etiquetas e pedindo louvado pra se defender, pra se divertir e pra luxar!...
O tal rei nosso senhor não se enxergava, mesmo!...
E logo com quem!... Com a gauchada!...
Vai então, os estancieiros iam em pessoa ou mandavam ao outro lado,
nos espanhóis, buscar pólvora e balas, pras pederneiras, cartas de jogo e
prendas de ouro pras mulheres e preparos de prata pros arreios...; e ninguém
pagava dízimos dessas cousas.
Às vezes lá voava pelos ares um cargueiro, com cangalhas e tudo, numa
explosão de pólvora; doutras uma partilha de milicianos saía de atravessado
e tomava conta de tudo, a couce d’arma: isto foi ensinando a escaramuçar
com os golas-de-couro.
Nesse serviço foram-se aficionando alguns gaúchos: recebiam as
encomendas e pra aproveitar a monção e não ir com os cargueiros debalde,
levavam baeta, que vinha do reino, e fumo em corda, que vinha da Bahia, e
algum porrão de canha. E faziam trocas, de elas por elas, quase.
Os paisanos das duas terras brigavam, mas os mercadores sempre se
entendiam...
Isto veio mais ou menos assim até a guerra dos Farrapos; depois vieram
as califórnias do Chico Pedro; depois a guerra do Rosas.
Aí inundou-se a fronteira da província de espanhóis e gringos emigrados.
A cousa então mudou de figura. A estrangeirada era mitrada, na regra,
e foi quem ensinou a gente de cá a mergulhar e ficar de cabeça enxuta...;
entrou nos homens a sedução de ganhar barato: bastava ser campeiro e
destorcido. Depois, andava-se empandilhado, bem armado; podia-se às vezes
dar um vareio nos milicos, ajustar contas com algum devedor de desaforos,
aporrear algum subdelegado abelhudo...
Não se lidava com papéis nem contas de cousas: era só levantar os
volumes, encangalhar, tocar e entregar!...
Quanta gauchagem leviana aparecia, encostava-se.
Rompeu a guerra do Paraguai.
O dinheiro do Brasil ficou muito caro: uma onça de ouro, que corria
por trinta e dois, chegou a valer quarenta e seis mil-réis!... Imagine o que
a estrangeirada bolou nas contas!...
Começou-se a cargueirear de um tudo: panos, águas de cheiro, armas,
minigâncias, remédios, o diabo a quatro!... Era só pedir por boca!
Apareceram também os mascates de campanha, com baús encangalhados e canastras,
que passavam pra lá vazios e voltavam cheios, desovar
aqui...
Polícia pouca, fronteira aberta, direitos de levar couro e cabelo e nas
coletarias umas papeladas cheias de benzeduras e rabioscas...
Ora... ora!... Passar bem, paisano!... A semente grelou e está a árvore
ramalhuda, que vancê sabe, do contrabando de hoje.
O Jango Jorge foi maioral nesses estropícios. Desde moço. Até a hora
da morte. Eu vi.
Como disse, na madrugada véspera do casamento o Jango Jorge saiu
para ir buscar o enxoval da filha.
Passou o dia; passou a noite.
No outro dia, que era o do casamento, até de tarde, nada.
Havia na casa uma gentama convidada; da vila, vizinhos, os padrinhos, autoridades, moçada. Havia de se dançar três dias!... Corria o amargo e
copinhos de licor de butiá.
Roncavam cordeonas no fogão, violas na ramada, uma caixa de música
na sala.
Quase ao entrar do sol a mesa estava posta, vergando ao peso dos pratos
enfeitados.
A dona da casa, por certo traquejada nessas bolandinas do marido,
estava sossegada, ao menos ao parecer.
As vezes mandava um dos filhos ver se o pai aparecia, na volta da estrada,
encoberta por uma restinga fechada de arvoredo.
Surgiu dum quarto o noivo, todo no trinque, de colarinho duro e casaco
de rabo. Houve caçoadas, ditérios, elogios.
Só faltava a noiva; mas essa não podia aparecer, por falta do seu vestido
branco, dos seus sapatos brancos, do seu véu branco, das suas flores de
laranjeira, que o pai fora buscar e ainda não trouxera.
As moças riam-se; as senhoras velhas cochichavam.
Entardeceu.
Nisto correu voz que a noiva estava chorando: fizemos uma algazarra
e ela - tão boazinha! - veio à porta do quarto, bem penteada, ainda num
vestidinho de chita de andar em casa, e pôs-se a rir pra nós, pra mostrar que
estava contente.
A rir, sim, rindo na boca, mas também a chorar lágrimas grandes, que
rolavam devagar nos olhos pestanudos...
E rindo e chorando estava, sem saber por quê... sem saber por que,
rindo e chorando, quando alguém gritou do terreiro:
- Aí vem o Jango Jorge, com mais gente!...
Foi um vozerio geral; a moça porém ficou, como estava, no quadro da
porta, rindo e chorando, cada vez menos sem saber por quê... pois o pai
estava chegando e o seu vestido branco, o seu véu, as suas flores de noiva...
Era já fusco-fusco. Pegaram a acender as luzes.
E nesse mesmo tempo parava no terreiro a comitiva; mas num silêncio,
tudo.
E o mesmo silêncio foi fechando todas as bocas e abrindo todos os
olhos.
Então vimos os da comitiva descerem de um cavalo o corpo entregue
de um homem, ainda de pala enfiado...
Ninguém perguntou nada, ninguém informou de nada; todos entenderam tudo...;
que a festa estava acabada e a tristeza começada...
Levou-se o corpo pra sala da mesa, para o sofá enfeitado, que ia ser o
trono dos noivos. Então um dos chegados disse:
- A guarda nos deu em cima... tomou os cargueiros... E mataram o
capitão, porque ele avançou sozinho pra mula ponteira e suspendeu um
pacote que vinha solto.., e ainda o amarrou no corpo... Aí foi que o crivaram
de balas... parado... Os ordinários!... Tivemos que brigar, pra tomar
o corpo!
A sia-dona mãe da noiva levantou o balandrau do Jango Jorge e
desamarrou o embrulho; abriu-o.
Era o vestido branco da filha, os sapatos brancos, o véu branco, as flores
de laranjeira...
Tudo numa plastada de sangue... tudo manchado de vermelho, toda
a alvura daquelas cousas bonitas como que bordada de cobrado, num padrão
esquisito, de feitios estrambólicos... como flores de cardo solferim esmagadas
a casco de bagual!...
 Então rompeu o choro na casa toda.
 

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Pílades e Orestes Machado de Assis



Quintanilha engendrou Gonçalves. Tal era a impressão que davam os
dois juntos, não que se parecessem. Ao contrário, Quintanilha tinha o
rosto redondo, Gonçalves comprido, o primeiro era baixo e moreno, o
segundo alto e claro, e a expressão total divergia inteiramente. Acresce que eram quase da mesma idade. A idéia da paternidade nascia das maneiras com
que o primeiro tratava o segundo; um pai não se desfaria mais em carinhos,
cautelas e pensamentos.
Tinham estudado juntos, morado juntos, e eram bacharéis do mesmo
ano. Quintanilha não seguiu advocacia nem magistratura, meteu-se na
política; mas, eleito deputado provincial em 187..., cumpriu o prazo da
legislatura e abandonou a carreira. Herdara os bens de um tio, que lhe davam
de renda cerca de trinta contos de réis. Veio para o seu Gonçalves, que
advogava no Rio de Janeiro.
Posto que abastado, moço, amigo do seu único amigo, não se pode
dizer que Quintanilha fosse inteiramente feliz, como vais ver. Ponho de lado
o desgosto que lhe trouxe a herança com o ódio dos parentes; tal ódio foi
que ele esteve prestes a abrir mão dela, e não o fez porque o amigo Gonçalves,
que lhe dava idéias e conselhos, o convenceu de que semelhante ato seria
rematada loucura.
- Que culpa tem você que merecesse mais a seu tio que os outros
parentes? Não foi você que fez o testamento nem andou a bajular o defunto,
como os outros. Se ele deixou tudo a você, é que o achou melhor que eles;
fique-se com a fortuna, que é a vontade do morto, e não seja tolo.
Quintanilha acabou concordando. Dos parentes alguns buscaram reconciliar-se
com ele, mas o amigo mostrou-lhe a intenção recôndita dos tais,
e Quintanilha não lhes abriu a porta. Um desses, ao vê-lo ligado com o antigo
companheiro de estudos, bradava por toda a parte:
- Aí está, deixa os parentes para se meter com estranhos; há de ver o
fim que leva.
Ao saber disto, Quintanilha correu a contá-lo a Gonçalves, indignado.
Gonçalves sorriu, chamou-lhe tolo e aquietou-lhe o ânimo; não valia a pena
irritar-se por ditinhos.
- Uma só coisa desejo, continuou, é que nos separemos, para que se
não diga...
- Que se não diga o quê? Ë boa! Tinha que ver, se eu passava a escolher
as minhas amizades conforme o capricho de alguns peraltas sem-vergonha!
- Não fale assim, Quintanilha. Você é grosseiro com seus parentes.
- Parentes do diabo que os leve! Pois eu hei de viver com as pessoas
que me forem designadas por meia dúzia de velhacos que o que querem é
comer-me o dinheiro? Não, Gonçalves; tudo o que você quiser, menos isso.
Quem escolhe os meus amigos sou eu, é o meu coração. Ou você está... está
aborrecido de mim?
- Eu? Tinha graça.
- Pois então?
- Mas é...
- Não é tal!
A vida que viviam os dois, era a mais unida do mundo. Quintanilha
acordava, pensava no outro, almoçava e ia ter com ele. Jantavam juntos,
faziam alguma visita, passeavam ou acabavam a noite no teatro. Se Gonçalves
tinha algum trabalho que fazer à noite, Quintanilha ia ajudá-lo como
obrigação; dava busca aos textos de lei, marcava-os, copiava-os, carregava
os
livros. Gonçalves esquecia com facilidade, ora um recado, ora uma carta,
sapatos, charutos, papéis. Quintanilha supria-lhe a memória. As vezes, na
rua do Ouvidor, vendo passar as moças, Gonçalves lembrava-se de uns autos
que deixara no escritório. Quintanilha voava a buscá-los e tornava com eles,
tão contente que não se podia saber se eram autos, se a sorte grande;
procurava-o ansiosamente com os olhos, corria, sorria, morria de fadiga.
- São estes?
- São; deixa ver, são estes mesmos. Dá cá.
- Deixa, eu levo. A princípio, Gonçalves suspirava:
- Que maçada que dei a você!
Quintanilha ria do suspiro com tão bom humor que o outro, para não
o molestar, não se acusou de mais nada; concordou em receber os obséquios.
Com o tempo, os obséquios ficaram sendo puro ofício. Gonçalves dizia ao
outro: “Você hoje há de lembrar-me isto e aquilo.” E o outro decorava as
recomendações, ou escrevia-as, se eram muitas. Algumas dependiam de
horas; era de ver como o bom Quintanilha suspirava aflito, à espera que
chegasse tal ou tal hora para ter o gosto de lembrar os negócios ao amigo.
E levava-lhe as cartas e papéis, ia buscar as respostas, procurar as pessoas,
esperá-las na estrada de ferro, fazia viagens ao interior. De si mesmo
descobria-lhe bons charutos, bons jantares, bons espetáculos. Gonçalves já
não tinha liberdade de falar de um livro novo, ou somente caro, que não
achasse um exemplar em casa.
- Você é um perdulário, dizia-lhe em tom repreensivo.
- Então gastar com letras e ciências é botar fora? - boa! concluía o
outro.
No fim do ano quis obrigá-lo a passar fora as férias. Gonçalves acabou
aceitando, e o prazer que lhe deu com isto foi enorme. Subiram a Petrópolis.
Na volta, serra abaixo, como falassem de pintura, Quintanilha advertiu que
não tinham ainda uma tela com o retrato dos dois, e mandou fazê-la. Quando
a levou ao amigo, este não pôde deixar de lhe dizer que não prestava para
nada. Quintanilha ficou sem voz.
- É uma porcaria, insistiu Gonçalves.
- Pois o pintor disse-me...
- Você não entende de pintura, Quintanilha, e o pintor aproveitou a
ocasião para meter a espiga. Pois isto é cara decente? Eu tenho este braço
torto?
- Que ladrão!
- Não, ele não tem culpa, fez o seu negócio; você é que não tem o
sentimento da arte, nem prática, e espichou-se redondamente. A intenção
foi boa, creio...
- Sim, a intenção foi boa.
- E aposto que já pagou?
- Já.
Gonçalves abanou a cabeça, chamou-lhe ignorante e acabou rindo.
Quintanilha, vexado e aborrecido, olhava para a tela, até que sacou de um
canivete e rasgou-a de alto a baixo. Como se não bastasse esse gesto de
vingança, devolveu a pintura ao artista com um bilhete em que lhe transmitiu
alguns dos nomes recebidos e mais o de asno. A vida tem muitas de tais pagas.
Demais, uma letra de Gonçalves que se venceu dali a dias e que este não pôde
pagar, veio trazer ao espírito de Quintanilha uma diversão. Quase brigaram;
a idéia de Gonçalves era reformar a letra; Quintanilha, que era o endossante,
entendia não valer a pena pedir o favor por tão escassa quantia (um conto e
quinhentos), ele emprestaria o valor da letra, e o outro que lhe pagasse,
quando pudesse. Gonçalves não consentiu e fez-se a reforma. Quando, ao
fim dela, a situação se repetiu, o mais que este admitiu foi aceitar uma letra
de Quintanilha, com o mesmo juro.
- Você não vê que me envergonha, Gonçalves? Pois eu hei de receber
juro de você...?
- Ou recebe, ou não fazemos nada.
- Mas, meu querido...
Teve que concordar. A união dos dois era tal que uma senhora
chamava-lhes os “casadinhos de fresco”, e um letrado, Pílades e Orestes. Eles
riam, naturalmente, mas o riso de Quintanilha trazia alguma coisa parecida
com lágrimas: era, nos olhos, uma ternura úmida. Outra diferença é que o
sentimento de Quintanilha tinha uma nota de entusiasmo, que absolutamente faltava ao de Gonçalves; mas, entusiasmo não se inventa. É claro que
o segundo era mais capaz de inspirá-lo ao primeiro do que este a ele. Em
verdade, Quintanilha era mui sensível a qualquer distinção; uma palavra, um
olhar bastava a acender-lhe o cérebro. Uma pancadinha no ombro ou no
ventre, com o fim de aprová-lo ou só acentuar a intimidade, era para
derretê-lo de prazer. Contava o gesto e as circunstâncias durante dois e três
dias.
Não era raro vê-lo irritar-se, teimar, descompor os outros. Também era
comum vê-lo rir-se; alguma vez o riso era universal, entornava-se-lhe da boca,
dos olhos, da testa, dos braços, das pernas, todo ele era um riso único. Sem
ter paixões, estava longe de ser apático.
A letra sacada contra Gonçalves tinha o prazo de seis meses. No dia do
vencimento, não só não pensou em cobrá-la, mas resolveu ir jantar a algum
arrabalde para não ver o amigo, se fosse convidado à reforma. Gonçalves
destruiu todo esse plano; logo cedo, foi levar-lhe o dinheiro. O primeiro
gesto de Quintanilha foi recusá-lo, dizendo-lhe que o guardasse, podia
precisar dele; o devedor teimou em pagar e pagou.
Quintanilha acompanhava os atos de Gonçalves; via a constância do
seu trabalho, o zelo que ele punha na defesa das demandas, e vivia cheio de
admiração. Realmente, não era grande advogado, mas na medida das suas
habilitações, era distinto.
- Você por que não se casa? perguntou-lhe um dia; um advogado
precisa casar.
Gonçalves respondia rindo. Tinha uma tia, única parenta, a quem ele
queria muito, e que lhe morreu, quando eles iam em trinta anos. Dias depois,
dizia ao amigo:
- Agora só me resta você.
Quintanilha sentiu os olhos molhados, e não achou que lhe respondesse. Quando
se lembrou de dizer que “iria até à morte” era tarde. Redobrou
então de carinhos, e um dia acordou com a idéia de fazer testamento. Sem
revelar nada ao outro, nomeou-o testamenteiro e herdeiro universal.
- Guarde-me este papel, Gonçalves, disse-lhe entregando o testamento. Sinto-me
forte, mas a morte é fácil, e não quero confiar a qualquer
pessoa as minhas últimas vontades.
Foi por esse tempo que sucedeu um caso que vou contar.
Quintanilha tinha uma prima-segunda, Camila, moça de vinte e dois
anos, modesta, educada e bonita. Não era rica; o pai, João Bastos, era
guarda-livros de uma casa de café. Haviam brigado por ocasião da herança;
mas, Quintanilha foi ao enterro da mulher de João Bastos, e este ato de
piedade novamente os ligou. João Bastos esqueceu facilmente alguns nomes
crus que dissera do primo, chamou-lhe outros nomes doces, e pediu-lhe que
fosse jantar com ele. Quintanilha foi e tornou a ir. Ouviu ao primo o elogio
da finada mulher; numa ocasião em que Camila os deixou sós, João Bastos
louvou as raras prendas da filha, que afirmava haver recebido integralmente
a herança moral da mãe.
- Não direi isto nunca à pequena, nem você lhe diga nada. É modesta,
e, se começarmos a elogiá-la, pode perder-se. Assim, por exemplo, nunca lhe
direi que é tão bonita como foi a mãe, quando tinha a idade dela; pode ficar
vaidosa. Mas a verdade é que é mais, não lhe parece? Tem ainda o talento
de tocar piano, que a mãe não possuía.
Quando Camila voltou à sala de jantar, Quintanilha sentiu vontade de
lhe descobrir tudo, conteve-se e piscou o olho ao primo. Quis ouvi-la ao
piano; ela respondeu, cheia de melancolia:
-Ainda não, há apenas um mês que mamãe faleceu, deixe passar mais
tempo. Demais, eu toco mal.
- Mal?
- Muito mal. Quintanilha tornou a piscar o olho ao primo, e ponderou à moça que
a prova de tocar bem ou mal só se dava ao piano. Quanto ao prazo, era certo
que apenas passara um mês; todavia era também certo que a música era uma
distração natural e elevada. Além disso, bastava tocar um pedaço triste. João
Bastos aprovou este modo de ver e lembrou uma composição elegíaca.
Camila abanou a cabeça.
- Não, não, sempre é tocar piano; os vizinhos são capazes de inventar
que eu toquei uma polca.
Quintanilha achou graça e riu. Depois concordou e esperou que os três
meses fossem passados. Até lá, viu a prima algumas vezes, sendo as três
últimas visitas mais próximas e longas. Enfim, pôde ouvi-la tocar piano, e
gostou. O pai confessou que, ao princípio, não gostava muito daquelas
músicas alemãs; com o tempo e o costume achou-lhes sabor. Chamava à filha
“a minha alemãzinha”, apelido que foi adotado por Quintanilha, apenas
modificado para o plural: “a nossa alemãzinha”. Pronomes possessivos dão
intimidade; dentro em pouco, ela existia entre os três, - ou quatro, se
contarmos Gonçalves, que ali foi apresentado pelo amigo; - mas fiquemos
nos três.
Que ele é coisa já farejada por ti, leitor sagaz. Quintanilha acabou
gostando da moça. Como não, se Camila tinha uns longos olhos mortais?
Não é que os pousasse muita vez nele, e, se o fazia, era com tal ou qual
constrangimento, a princípio, como as crianças que obedecem sem vontade
às ordens do mestre ou do pai; mas pousava-os, e eles eram tais que, ainda
sem intenção, feriam de morte. Também sorria com freqüência e falava com
graça. Ao piano, e por mais aborrecida que tocasse, tocava bem. Em suma,
Camila não faria obra de impulso próprio, sem ser por isso menos feiticeira.
Quintanilha descobriu um dia de manhã que sonhara com ela a noite toda,
e à noite que pensara nela todo o dia, e concluiu da descoberta que a amava
e era amado. Tão tonto ficou que esteve prestes a imprimi-lo nas folhas
públicas. Quando menos, quis dizê-lo ao amigo Gonçalves e correu ao
escritório deste. A afeição de Quintanilha complicava-se de respeito e temor.
Quase a abrir a boca, engoliu outra vez o segredo. Não ousou dizê-lo nesse
dia nem no outro.
Antes dissesse; talvez fosse tempo de vencer a campanha. Adiou a
revelação por uma semana. Um dia foi jantar com o amigo, e, depois de
muitas hesitações, disse-lhe tudo; amava a prima e era amado.
- Você aprova, Gonçalves?
Gonçalves empalideceu, - ou, pelo menos, ficou sério; nele a seriedade
confundia-se com a palidez. Mas, não; verdadeiramente ficou pálido.
- Aprova? repetiu Quintanilha.
Após alguns segundos, Gonçalves ia abrir a boca para responder, mas
fechou-a de novo, e fitou os olhos “em ontem , como ele mesmo dizia de si,
quando os estendia ao longe. Em vão Quintanilha teimou em saber o que
era, o que pensava, se aquele amor era asneira. Estava tão acostumado a
ouvir-lhe este vocábulo que já lhe não doía nem afrontava, ainda em matéria
tão melindrosa e pessoal. Gonçalves tornou a si daquela meditação, sacudiu
os ombros, com ar desenganado, e murmurou esta palavra tão surdamente
que o outro mal a pôde ouvir:
- Não me pergunte nada; faça o que quiser.
- Gonçalves, que é isso? perguntou Quintanilha, pegando-lhe nas
mãos, assustado.
Gonçalves soltou um grande suspiro, que, se tinha asas, ainda agora
estará voando. Tal foi, sem esta forma paradoxal, a impressão de Quintanilha.
O relógio da sala de jantar bateu oito horas, Gonçalves alegou que ia visitar
um desembargador, e o outro despediu-se.
Na rua, Quintanilha parou atordoado. Não acabava de entender
aqueles gestos, aquele suspiro, aquela palidez, todo o efeito misterioso da notícia dos seus amores. Entrara e falara, disposto a ouvir do outro um ou
mais daqueles epítetos costumados e amigos, idiota, crédulo, paspalhão, e não
ouviu nenhum. Ao contrário, havia nos gestos de Gonçalves alguma coisa
que pegava com o respeito. Não se lembrava de nada, ao jantar, que pudesse
tê-lo ofendido; foi só depois de lhe confiar o sentimento novo que trazia a
respeito da prima que o amigo ficou acabrunhado.
- Mas, não pode ser, pensava ele; o que é que Camila tem que não
possa ser boa esposa?
Nisto gastou, parado, defronte da casa, mais de meia hora. Advertiu
então que Gonçalves não saíra. Esperou mais meia hora, nada. Quis entrar
outra vez, abraçá-lo, interrogá-lo... Não teve forças; enfiou pela rua fora,
desesperado. Chegou à casa de João Bastos, e não viu Camila; tinha-se
recolhido, constipada. Queria justamente contar-lhe tudo, e aqui é preciso
explicar que ele ainda não se havia declarado à prima. Os olhares da moça
não fugiam dos seus; era tudo, e podia não passar de faceirice. Mas o lance
não podia ser melhor para clarear a situação. Contando o que se passara com
o amigo, tinha o ensejo de lhe fazer saber que a amava e ia pedi-la ao pai.
Era uma consolação no meio daquela agonia, o acaso negou-lha, e Quintanilha
saiu da casa, pior do que entrara. Recolheu-se à sua.
Não dormiu antes das duas horas da manhã, e não foi para repouso,
senão para agitação maior e nova. Sonhou que ia a atravessar uma ponte
velha e longa, entre duas montanhas, e a meio caminho viu surgir debaixo
um vulto e fincar os pés defronte dele. Era Gonçalves. “Infame, disse este
com os olhos acesos, por que me vens tirar a noiva de meu coração, a mulher
que eu amo e é minha? Toma, toma logo o meu coração, é mais completo.”
E com um gesto rápido abriu o peito, arrancou o coração e meteu-lho na
boca. Quintanilha tentou pegar da víscera amiga e repô-la no peito de
Gonçalves; foi impossível. Os queixos acabaram por fechá-la. Quis cuspi-la,
e foi pior; os dentes cravaram-se no coração. Quis falar, mas vá alguém falar
com a boca cheia daquela maneira. Afinal o amigo ergueu os braços e
estendeu-lhe as mãos com o gesto de maldição que ele vira nos melodramas,
em dias de rapaz; logo depois, brotaram-lhe dos olhos duas imensas lágrimas,
que encheram o vale de água, atirou-se abaixo e desapareceu. Quintanilha
acordou sufocado.
A ilusão do pesadelo era tal que ele ainda levou as mãos à boca, para
arrancar de lá o coração do amigo. Achou a língua somente, esfregou os olhos
e sentou-se. Onde estava? Que era? E a ponte? E o Gonçalves? Voltou a si
de todo, compreendeu e novamente se deitou, para outra insônia, menor
que a primeira, é certo; veio a dormir às quatro horas.
De dia, rememorando toda a véspera, realidade e sonho, chegou à
conclusão de que o amigo Gonçalves era seu rival, amava a prima dele, era
talvez amado por ela... Sim, sim, podia ser. Quintanilha passou duas horas
cruéis. Afinal pegou em si e foi ao escritório de Gonçalves, para saber tudo
de uma vez; e, se fosse verdade, sim, se fosse verdade...
Gonçalves redigia umas razões de embargo. Interrompeu-as para fitá-lo
um instante, erguer-se, abrir o armário de ferro, onde guardava os papéis
graves, tirar de lá o testamento de Quintanilha, e entregá-lo ao testador.
- Que é isto?
- Você vai mudar de estado, respondeu Gonçalves, sentando-se à
mesa.
Quintanilha sentiu-lhe lágrimas na voz; assim lhe pareceu, ao menos.
Pediu-lhe que guardasse o testamento; era o seu depositário natural. Instou
muito; só lhe respondia o som áspero da pena correndo no papel. Não corria
bem a pena, a letra era tremida, as emendas mais numerosas que de costume,
provavelmente as datas erradas. A consulta dos livros era feita com tal
melancolia que entristecia o outro. As vezes, parava tudo, pena e consulta,
para só ficar o olhar fito “em ontem - Entendo, disse Quintanilha subitamente; ela será tua.
- Ela quem? quis perguntar Gonçalves, mas já o amigo voava, escada
abaixo, como uma flecha, e ele continuou as suas razões de embargo.
Não se adivinha todo o resto; basta saber o final. Nem se adivinha nem
se crê; mas a alma humana é capaz de esforços grandes, no bem como no
mal. Quintanilha fez outro testamento, legando tudo à prima, com a
condição de desposar o amigo. Camila não aceitou o testamento, mas ficou
tão contente, quando o primo lhe falou das lágrimas de Gonçalves, que
aceitou Gonçalves e as lágrimas. Então Quintanilha não achou melhor
remédio que fazer terceiro testamento legando tudo ao amigo.
O final da história foi dito em latim. Quintanilha serviu de testemunha
ao noivo, e de padrinho aos dois primeiros filhos. Um dia em que, levando
doces para os afilhados, atravessava a praça Quinze de Novembro, recebeu
uma bala revoltosa (1893) que o matou quase instantaneamente. Está
enterrado no cemitério de S. João Batista; a sepultura é simples, a pedra tem
um epitáfio que termina com esta pia frase: “Orai por ele!” É também o fecho
da minha história. Orestes vive ainda, sem os remorsos do modelo grego.
Pílades é agora o personagem mudo de Sófocles. Orai por ele!