Durante mais de trinta anos, o bondezinho das dez e
quinze, que descia do Silvestre, parava como um burro ensinado em frente à
casinha de José Maria, e ali encontrava, almoçado e pontual, o velho
funcionário.
Um dia, porém, José Maria faltou. O motorneiro batia a
sirene. Os passageiros
se impacientavam. Floripes correu aflita a avisar o
patrão. Achou-o
de pijama, estirado na poltrona, querendo rir. - Seu José
Maria, o senhor hoje perdeu a hora! Há muito tempo o
motorneiro está a dar sinal.
- Diga-lhe que não preciso mais.
A velha portuguesa não compreendeu.
- Vá, diga que não vou... Que de hoje em diante não irei mais.
A criada chegou à janela, gritou o recado. E o bondezinho
desceu sem
o seu mais antigo passageiro.
Floripes voltou ao patrão. Interroga-o com o olhar.
- Não sabes que estou aposentado?
-Uê!...
- Sim, Floripes. Aposentado.
- E que vai fazer agora, patrão?
- Sei lá, Floripes... Sei lá!
- Mas o almoço será sempre servido à mesma hora, pois não?
- Tanto faz. Pode ser às nove e meia,
onze, meio-dia ou quando você quiser. Minha vida de hoje em diante vai ser um
domingão sem fim... Debruçado à janela,
José Maria olhava para a cidade embaixo e achava a vida triste. Saíra na
véspera o decreto de aposentadoria. Trinta e seis anos de Repartição.
Interrompera da noite para o dia o hábito de esperar o
bondezinho, comprar o jornal da manhã, bebericar o café na Avenida, e
instalar-se à mesa do Ministério, sisudo e calado, até as dezessete horas. Que fazer agora?
Não mais informar processos, não mais preocupar-se com o
nome e a cara do futuro Ministro.
Pela primeira vez fartava a vista no cenário de águas e
montanhas que a bruma fundia.
Inúmeras vezes o fizera, mas sem perceber o Pão de Açúcar
e a baía, as ilhas e os navios, o Corcovado e as praias do Atlântico, sempre se
interpondo entre seus olhos e a paisagem uma reminiscência molesta, lembrança
de antigo aborrecimento ou de contrariedades na Repartição. Se algum navio transpunha
a barra e vinha crescendo para o porto no ritmo calmo da marcha, seu coração
amargava-se contra o sobrinho Beto que embarcara como radiotelegrafista de um
navio do Lóide, e nunca mais dera notícias; se o Cristo do Corcovado se erguia
de um pedestal de nuvens, vinha-lhe à memória aquele triste fim de tarde, lá em
cima, em que pela primeira vez na vida se conduziu de maneira vergonhosa,
embriagado que estava, a dizer impropérios contra a República e contra um ato
injusto do “Sr. Ministro”, até ser detido por um guarda. Aposentado agora,
continuava a ligar os diferentes aspectos da natureza a acontecimentos que a
deformavam. Com os trinta e seis anos
perdidos na Repartição, teria perdido também o dom de viver?
Muito próximo se achava ainda desse passado para não lhe receber
a
influência. A manifestação de despedida fora ontem mesmo.
Cobriram-lhe
a mesa de flores; saudou-o em nome dos chefes de serviço o
diretor mais
antigo, seu ex-adversário; falou depois um dos subordinados,
estudante de
Medicina; por último uma funcionária, a Adélia, que usava
decote largo, se
“ ‘
referiu a competência e exemplar austeridade do querido
chefe de quem todos se lembrarão com saudade”. Uma menina, filha do arquivista,
fez-lhe entrega de uma bengala de castão de ouro, com a data e o nome. E o
Ministro mandou um telegrama.
Foi só, estava encerrada a etapa principal e maior de sua
vida.
Os decênios de trabalho monótono, de “austeridade exemplar”
como
dizia Adélia, forjaram-lhe uma máscara fria. Atrás dela se
escondeu e de si
mesmo se perdera. Como fazer desaparecer-lhe os vestígios?
Como se reencontrar? Adélia não podia imaginar o que para ele representava a “exemplar
austeridade”. Adélia jamais saberá o que ocorria na alma do antigo chefe quando
os olhos deste passavam como um relâmpago pelo colo branco de sua subordinada;
talvez nem ela pressentisse. Austero coisa nenhuma:
desajeitado apenas, tímido: gostaria de poder fazer o que
censurava nos outros.
Floripes admirava a bengala procurando decifrar os dizeres do
castão
de ouro.
- E o que me resta, Floripes, dos trinta e seis anos. Isso e
um telegrama
do Ministro!
- O que me está a dizer, patrão?
- Nada, Floripes.
“Ora veja! Estou livre agora, livre!... Mas livre para
quê?” Ao clarear do dia seguinte escancarou a janela para a baía. Procurava sentir
a manhã de sol como a deviam estar sentindo àquela hora os moradores da bela
colina. Mas nada lhe diziam os barcos a vela flutuando longe, nem os castelos
de nuvens que se armavam no céu. Ia
experimentar a cidade, andar sem destino. E sem chapéu. A ausência do chapéu
seria a primeira mudança exterior em seus hábitos, um começo de libertação. Até
então, a moda lhe parecera ridícula, além de fonte de resfriados. E se
envergasse uma camisa esporte? Poderiam rir-se dele: a pele do pescoço perdera
consistência; e a marca circular do colarinho duro lá estava, firme como uma
tatuagem.
Na rua, um colega veio dizer-lhe que os jornais deram a
notícia; alguns até com elogios ao velho servidor. O amigo abraçou-o. E logo
recuou com certo espanto: - O seu chapéu, Zé Maria?
- Ah, não uso mais!...
- Felizardo! Vai começar a gozar a vida, hein? Já até
parece outro homem, disse, interpretando a ausência do chapéu como o primeiro
passo para um programa de rejuvenescimento.
O aposentado livrou-se do importuno. “Livre! Estou livre!”
Namorou vitrinas, tomou café, repetiu café, tomou chope, foi, voltou, viu,
tomou café outra vez, cumprimentou... O tempo não passava. Mais lento ainda do
que na Repartição.
A título de despedir-se de alguns companheiros e de
apanhar uma caneta-tinteiro, lembrou-se de chegar até lá. Na verdade, sentia-se
impelido por um desejo ambíguo, como o general reformado que vai à paisana em visita
a seu antigo regimento. Era tarde, porém; o rush se avolumara. Achou melhor
voltar para casa, postar-se na fila do bonde. “Livre! Estou livre!” Durante a
subida, a brisa fresca fê-lo sentir a falta do chapéu. Via-se como que despido.
Floripes serviu-lhe o jantar, deixou tudo arrumado, e
retirou-se para dormir no barraco da filha.
Mais do que nunca, sentiu José Maria naquela noite a
solidão da casa.
Não tinha amigos, não tinha mulher nem amante. E já lera
todos os jornais. Havia o telefone, é
verdade. Mas ninguém chamava. Lembrava-se que certa vez, há uns quinze anos,
aquela fria coisa, pendurada e morta, se aquecera à voz de uma mulher
desconhecida. A máquina que apenas servia para recados ao armazém e informações
do Ministério transformara-se então em instrumento de música: adquirira alma,
cantava quase. De repente, sem motivo, a voz emudecera. E o aparelho voltou a
ser na parede do corredor a aranha de metal, sempre calada. O sussurro da vida,
o sangue de suas paixões passavam longe do telefone de Zé Maria...
Como vencer a noite que mal começava? Fechou o rádio com
desespero, virou dois tragos de vinho do Porto,
deitou-se. A espaços ouvia o barulho do bondezinho rilhando
nas curvas da
colina, a explosão de um e outro foguete que subiam da
vertente de Aguas
Férreas, seguida de latidos de cães e gritos indistintos.
Ingeriu outra dose de vinho. E adormeceu.
O telefone toca. Quem será? Quem se lembraria dele? Algum
convite?
Trote?
- Alô, meu bem!
- Alô! aqui fala José Maria.
- É engano, proferiu secamente a interlocutora. Era engano! Antes não o fosse. A quem estaria
destinada aquela voz carregada de ternura? Preferia que dissesse desaforos, que
o xingasse. A boca feminina já devia
estar dizendo frases de amor na linha procurada.
Era um triste aparelho telefônico!
Atirou-se de bruços na cama. E sonhou. Sonhou que
conversava ao telefone e era a voz da mulher de há quinze anos... Foi andando
para o passado... Abriu-se-lhe uma cidade de montanha, pontilhada de igrejas. E sempre para trás - tinha então dezesseis
anos -‘ ressurgiu-lhe a cidadezinha onde encontrara Duília. Aí parou. E Duília
lhe repetiu calmamente aquele gesto, o mais louco e gratuito, com que uma moça
pode iluminar para sempre a vida de um homem tímido.
Acordou com raiva de ter acordado, fechou os olhos para
dormir de novo e reatar o fio de sonho que trouxe Duília. Mas a imagem esquiva
lhe escapou, Duília desapareceu no tempo.
Á medida que os meses passavam, foi tomando horror à
expressão “funcionário público aposentado”, que lhe cheirava a atestado de
óbito. Jurou nunca mais freqüentar a “Mão
do Salvador”, instituição de caridade, cuja sede, com seus móveis severos e
gente sem graça, lembrava o ambiente atroz da Repartição.
Chamava Floripes a todo momento, queria saber minúcias do
passado dela.
Ia dar início a profundas modificações em sua pessoa.
Começaria pelos trajes: roupa clara, moderna, não mais aqueles ternos escuros
cobrindo a eventual austeridade. Seu físico de homem empinado e enxuto não
parecia de todo desagradável. Entraria de sócio para algum clube; e se
encontrasse um professor discreto, talvez aprendesse a dançar. Essas providências seriam a sua toilette
exterior para a nova fase da vida. Semanas
depois, aliviado do colarinho duro, era visto pelas ruas em trajes mais leves,
sorrindo forçado para os conhecidos. Tornou-se
sócio de um clube da Lagoa. Sozinho porém nunca punha os pés lá, até que um dia
se fez acompanhar pelo Lulu, bom atleta e péssimo funcionário, que o
apresentara como “velho servidor do Estado” às principais beldades do bairro. Como
dialogar com elas? Não conhecia futebol nem equitação, não sabia jogar baralho,
não guardava nomes de artistas de cinema, ignorava os escândalos da sociedade.
Tentou manter conversa, não conseguiu. Parecia-lhe que
zombavam dele. Se algumas moças lhe dirigiam a palavra era como se lhe
atirassem esmola. Acabou a noite só e triste, agarrado ao seu copo de uísque.
Quase nunca provava essa bebida; achava-a até ruim. Como fazia parte do rito
social, não custava virar o copo. Deixou o Lulu com as moças, e saiu fazendo
uma careta. “Velho servidor do Estado...”
O farol dos automóveis apagava nas águas da Lagoa o
reflexo das últimas estrelas. Um casal abraçava-se debaixo de uma amendoeira.
Sentiu-se mais só. A vida era para os outros. Antes tivesse ainda algum
processo a informar;
estaria ocupado em alguma cousa. Não! Um começo de soluço
contraiu-lhe a garganta. Chamou um taxi.
No dia seguinte postou-se, como outros de sua idade, numa
das
esquinas da Rua Gonçalves Dias, local preferido pelos
militares da reserva
e
aposentados de luxo, gente saudosa do passado. Notou que
eles se compraziam
em adejar perto dos doces da confeitaria, e ver passar as
damas elegantes de outrora.
Ali se perfilava, de terno branco, um velho Almirante de
suas relações:
- Olhe, faça como eu: nunca se convença de que é
aposentado. Adquira algum vício, se já
não o tem. Evite os velhos. Um pouco de exercício pela manhã. Hormônios às
refeições, não é mau. Quanto a conviver, só com gente moça.
Ele aprendera na véspera o que era conviver com gente
moça... Para rematar, e como índice de otimismo, contou-lhe o Almirante uma
anedota pornográfica.
O funcionário riu com esforço, e despediu-se enojado.
Entrou numa livraria. Buscaria a solução na leitura dos romances. Pediu um, à escolha do caixeiro. Tentou ler.
Impossível passar das primeiras páginas. Não compreendia como tanta gente perde
horas lendo mentiras. Ao atravessar, dias depois, o Viaduto, deixou o livro
cair lá embaixo, sentiu-se livre daquilo.
O melhor mesmo era ficar debruçado à janela. E todas as
manhãs,
enquanto a criada abria a meio as venezianas para deixar
sair a poeira da
arrumação, José Maria as escancarava para fazer entrar a
paisagem. Dali
devassava recantos desconhecidos. Ilhas que jamais
suspeitara. Acompanhava
a evolução das nuvens, começava a distinguir as mutações
da luz no céu e
sobre as águas. Notava que tinha progredido alguma coisa
na percepção dos
fenômenos naturais. Começava a sentir realmente a
paisagem. E se considerava
quase livre da uréia burocrática.
Esse noivado tardio com a natureza fê-lo voltar às
impressões da adolescência.
Duília!
Toda vez que pensava nela, o longo e inexpressivo
interregno do Ministério, que chegava a confundir-se com a duração definitiva
de sua própria vida, apagava-se-lhe de repente da memória. O tempo contraía-se.
Duília!
Reviu-se na cidade natal com apenas dezesseis anos de
idade, a acompanhar a
procissão que ela seguia cantando. Foi nessa festa da
igreja, num fim de tarde, que tivera a grande revelação.
Passou a praticar com mais assiduidade a janela. Quanto
mais o fazia, mais as colinas da outra margem lhe recordavam a presença
corporal da moça. Às vezes chegava a
dormir com a sensação de ter deixado a cabeça pousada no colo dela. As colinas
se transformavam em seios de Duília. Espantava-se da metamorfose, mas se
comprazia na evocação.
Não ignorava o que havia de alucinatório nisso. Chegava a
envergonhar-se. Como
evitá-lo? E por que, se isso lhe fazia bem?
Era o aforamento súbito da namorada, seus seios reluzindo
na memória como duas gemas no fundo d’água. Só agora se dava conta de que, sem querer,
transferira para Adélia a imagem remota. Mas Adélia não podia perceber que era
apenas a projeção da outra. Mesmo porque, temendo o ridículo, José Maria jamais
se deixara trair.
Disponível, sem jeito de viver no presente, compreendeu
que despertara com muitos anos de atraso nos dias de hoje. Não encontraria mais
os caminhos do futuro, nem havia mais futuro nenhum. Chegara ao fim da pista.
De Beto, não havia mais notícias.
Da velha cidade que restava? Onde o Rio de outrora? As
casas rentes ao solo, os pregões, o peixeiro à porta? A cada arranha-céu que
subia - eles sobem
a todo momento - a cidade calma de José Maria ia-se
desmanchando.
Sentiu que sobrava. Impossível reatar relações com uma
cidade irreconhecível. Pediu que o
cancelassem do clube da Lagoa; desistiu da aula de dança.
Só lhe fazia bem desentranhar o passado. Dias e noites o
evocava com a cumplicidade da paisagem. E no fundo da contemplação, insistiam
os dois focos luminosos. Ora se acendendo, ora se apagando. Odiava recordar-se da Repartição. Nem sabia
explicar como, nas tardes de movimento, mais de uma vez suas pernas o largaram
nas imediações do Ministério.
Começava a sentir-se livre. Para outra direção o chamava o
que havia de mais excitante em sua vida. Ao apelo póstumo, nem tudo de seu
passado parecia perdido. Sabia agora o que ia fazer. Trauteando uma canção,
tomou o bondezinho. Entrou em casa com o coração palpitando. Reviu-se mais jovem
ao espelho.
Quando Floripes chegou de manhã cedo, encontrou-o de pé.
Lamentava não ter
tempo de encomendar um terno novo para apresentar-se melhor
ao seu passado...
- Floripes, tu tomas conta do apartamento. Eu vou viajar. Meu
procurador te dará dinheiro para as despesas. Se Beto
aparecer, dirás que eu
parti... Dirás também que... Não, não precisas dizer mais
nada. Se quiseres,
traze para cá tua filha e o netinho.
Floripes parou espantada.
- Será que o patrão vai-se embora?
- Vou, Floripes.
- Para não voltar mais?
- Não sei, Floripes.
- E se chegar alguma carta, patrão, para onde devo mandar?
- Não haverá cartas para mim. Ninguém me escreve...
- E se alguém telefonar?
- Oh, Floripes, por favor...
O que transpirava de solidão e amargura nessas palavras,
compreendeu-o a velha
Floripes, que se absteve de novas perguntas.
Descendo à cidade, José Maria comprou malas, preveniu
passagens. Outro homem agora, alegre
quase. Não precisaria mais fazer esforço para ser o que não era. Difícil coisa
querer forçar a alma e o corpo a uma vida a que não se adaptam. Agora, sim, ia
ser feliz. E se alvoroçava como o imigrante que se repatria.
Fazia uma tarde bonita. Pela primeira vez Zé Maria achara
agradável estar na rua. Mulheres sorrindo, vitrinas iluminadas. Parecia que a
cidade, à última hora, caprichava em exibir-lhe alguns de seus encantos. Assim
procede a mulher indiferente, ao ver partir o homem a quem fez sofrer. Comprou um mapa do país. Só com apertá-lo ao
peito sentiu-se livre e já fora do Rio. Voltou para casa. Abriu-o em cima da
cama, seguindo com a ponta do lápis os meandros do coração montanhoso do
Brasil. - Aqui! marcou.
Era perto de uma cordilheira no centro-sul. A cidadezinha
enchia-lhe o coração, embora insignificante demais para constar na carta. Estranhou o apito fanhoso da Diesel à hora da
partida. Voz sem autoridade, mais mugido que apito. Tão diferente do grito
lírico da locomotiva que há mais de quarenta anos o trouxera do interior.
Entristeceu. Muita coisa haveria que encontrar pela frente, modificada pelo
progresso: a locomotiva por exemplo; o trem de luxo em que viajava.
Seu desejo era refazer de volta, pelos meios de
antigamente, o mesmo roteiro de outrora. Impossível. Estradas novas vieram
substituir-se aos
caminhos que levam ao passado. Com o coração inundado de
reminiscências, preferia evitar Belo Horizonte. Receava que a visão da cidade
nova viesse aumentar-lhe a sensação do envelhecimento pessoal. Pela madrugada, o trem parou horas entre duas
estações. O viajante despertou com o silêncio. Só ouvia o sussurro do
ventilador. Toda a composição de um cargueiro tinha tombado mais adiante,
entornando manganês pelo vale. Preparava-se a baldeação. José Maria aproveitou para descer, e sentir o
cheiro de Minas. O sol vinha esgarçando devagar o véu de bruma que cobria as
serras tranqüilas. Anoitecia já em Belo
Horizonte, quando chegou com atraso. Disseram-lhe que era preciso tomar, no dia
seguinte, a “jardineira” para Curvelo. A
nova Capital, mesquinha cidade poeirenta há quarenta anos, era agora um grande
centro onde ninguém se lembraria dele. Para que então sair à rua, ver
arranha-céus, caminhar entre as novas gerações de desconhecidos? Preferível fechar-se no quarto do hotel até
que chegasse a hora da “jardineira Agradável. na manhã seguinte o percurso numa
rodovia que não era de seu tempo. Ônibus e caminhões escureciam as estradas de
poeira. Ao pé de uma serra calcárea, que conhecera intacta, as chaminés de uma
fábrica de cimento emitiam rolos de fumaça escura. Mais adiante, os fornos de
uma siderúrgica.
Cansado, adormeceu. Despertou com um coro longe, de vozes,
coro que subitamente cresceu e passou, lançando-lhe no coração um jacto de poesia.
Era uma “jardineira” repleta de mocinhas, colegiais de uniforme azul e branco
que desciam do sertão para a reabertura do ano letivo na capital. No banco ao lado, um passageiro queimado de
sol parecia esperar que José Maria acordasse para encetar conversa.
- Pois é. Estamos em fins de fevereiro e nada de chuva! Em
toda a parte agora tem Ceará. Se aquilo lá desaba - apontou para uma nuvem escura
- é porque Deus qué me ajudá: tá mesmo em cima de minha roça. Mas não desaba, não!...
Olhou fitamente para José Maria. Teria achado nele um tipo
estranho
à região.
- Vosmecê também vai comprá cristá, não é?
- Não, respondeu José Maria.
- Tá indo pro Rio S. Francisco?
- Não. Estou indo para um lugar chamado Pouso Triste.
- Pra cá de Monjolo? Ah! conheço por demais... Já botei roça
lá perto.
- Ouviu por acaso falar em Duília?
- Duília... Duília... Espera aí... Duília... Ah! o senhor
queria dizer D. Dudu, não é? Conheço muito.
José Maria sentiu um estremecimento. Arrependera-se da
pergunta.
Calou-se. A deformação de um nome tão doce como Duília
horrorizava-o. Devia ser outra pessoa.
Era melhor não prosseguir na conversa. O homem queimado compreendeu, e
calou-se.
Ao entardecer, apitava uma fábrica de tecidos e uma
vitrola esganiçava a todo pano, quando a “jardineira” encostou à porta do hotel
principal de uma cidade. Era Curvelo, boca do sertão mineiro. José Maria já se sentia dentro da área do
passado. Daí em diante a viagem se faria
nas costas de um burro. Tudo como quando tinha dezesseis anos. Tratou um “camarada”
que o gerente do hotel lhe indicara. Na manhã seguinte, cedinho, partiu rumo de
leste. - Se não cai temporá, nóis chega
dereitinho, patrão - disse-lhe o camarada, enquanto Curvelo desaparecia atrás,
numa nuvem de poeira.
O velho funcionário, ao mesmo tempo que sentia a delícia
de montar
um animal e respirar o ar puro, receava lhe voltassem
aquelas pontadas que
o atormentavam na Repartição. Soero, o camarada,
desconfiava estar seguindo um homem importante;
mas não ousava perguntar.
- O Rio das Velhas vem vindo por aí, anunciou depois das
primeiras horas de caminhada.
Pouco depois, o rio fiel aparecia ao viajante. - Oh! velho
Rio das Velhas! exclamou José Maria. Sempre no mesmo lugar! E todo esse tempo me
esperando!
Achou-o tranqüilo, mas um pouco emagrecido.
Soero foi chamar o balseiro, enquanto José Maria, agachado
na areia, deixava que o velho rio lhe ficasse correndo longo tempo entre os
dedos. Embarcaram as alimárias, e foram
deslizando de balsa para a margem oposta.
De pé, o funcionário parecia estar sonhando. A bengala
desamarrou-se da mala e caiu na correnteza. Soero quis mergulhar. - Deixa,
deixa! gritou José Maria.
Preferia não perdê-la. Era afinal uma lembrança dos
ex-colegas. Mas já que foi para o fundo do rio, que lá ficasse.
Almoçaram e retomaram a montaria.
- Agora vem Dumbá. Oito léguas, disse o camarada.
- E o Paraúna? reclamou o viajante, recordando-se.
- Ainda temos que atravessá.
Tudo era deslumbramento para o viajante. À medida que ouvia
esses nomes quase esquecidos, a coisa nomeada aparecia logo adiante, rio ou povoado.
As léguas se estiravam, a noite ia longe. Ou porque a
escuridão fosse
maior com a lua minguante, ou porque a correnteza
engrossasse de repente,
o Paraúna surgiu mudado e agressivo. Nem parecia o rio que
os viajantes
atravessam a vau. Soero explicou que devia ter chovido muito
nas cabeceiras,
daí aquele despropósito de águas; mas baixariam depressa,
esses rios magrinhos
enfezam por qualquer pancada de chuva, depois se aquietam
que nem córrego manso.
- Se vosmecê não quisé chegá até o arraiá, a gente espaia
os burro e arrancha por aqui mesmo.
Apearam-se. Soero desceu os arreios e a cangalha, amarrou
o cincerro ao pescoço do cavalo-madrinha, e deixou os animais pastando perto. Deitado no couro, José Maria escutava o
sussurro das águas. Pouco se lhe dava o corpo moído, a dor nos rins. Nunca se
imaginara deitado ao relento, a cabeça quase encostada a um de “seus rios”.
Ficou a escutá-lo. Era como o primeiro rumor de um passado que vinha se
aproximando. Cobrindo-se com a manta,
adormeceu. Soero fumava e se persignava, a olhar desconfiado para a outra
margem onde um vulto branco parecendo fantasma esperava pelo abaixamento das
águas. De madrugada o Paraúna voltou ao
natural. Soero saudou o vulto de branco com quem cruzou no meio do rio. O homem
respondeu em latim. José Maria se
espantou ao ouvir frases latinas em cima daquelas águas, naquele ermo...
Perguntou o que era aquilo. Soero disse que não sabia, sempre o encontrava
bêbado pelos caminhos.
- Dizem que sabe muito e ficou maluco.
As alimárias seguiam agora em trote mais animado para a
Rancharia do Dumbá, onde, a conselho do “camarada”, devia o viajante descansar
o resto da tarde e passar a noite, antes de encetarem a travessia mais difícil
da Serra do Riacho do Vento, na Cordilheira do Espinhaço. A Rancharia é pouso forçado para quem
atravessou ou vai atravessar a Cordilheira. Reconheceu-a de longe o viajante,
pelo pé de tamarindo. O mesmo de sempre.
O pernoite ali, enquanto os animais recebiam ração mais
forte de sal e
capim, ia permitir ao metódico funcionário a recuperação
das forças exaundas. Viagem violenta demais para um sedentário. Ficara-lhe nos
ouvidos o Paraúna com o barulho de suas águas. Não era o desconforto da cama
nem a pobreza do aposento que lhe tiravam o sono; nem o latido dos cães, nem o
relinchar dos burros; nem uma sanfona triste que parecia exprimir toda a
solidão lá fora: era o fato de se achar mais perto, dentro quase daquilo que
não precisava mais evocar para sentir. Mais
algumas léguas e tocaria o núcleo de seu sonho. O que mais o espantara no gesto de Duília -
recordava-se José Maria durante a insônia, agarrando-se ao travesseiro - foi a
gratuidade inexplicável e a absurda pureza. Ela era moça recatada, ele um
rapazinho tímido; apenas se namoravam de longe. Mal se conheciam. A procissão
subia a ladeira, o canto místico perdia-se no céu de estrelas. De repente, o
séquito parou para que as virgens avançassem, e na penumbra de uma árvore, ela
dá com o olhar dele fixo em seu colo, parece que teve pena e, com simplicidade,
abrindo a blusa, lhe disse: - Quer ver? - Ele quase morre de êxtase. Pálidos
ambos, ela ainda repete: - Quer ver mais? - E mostra-lhe o outro seio branco, branco...
E fechou calmamente a blusa. E prosseguiu cantando... Só isso. Durou alguns segundos, está durando
uma eternidade. Apenas uma vez, depois do acontecimento, avistara Duília. A
moça se esquivara. Mas o que ela havia feito estava feito, e era um
alumbramento. Custava acreditar que
estivesse agora se aproximando dessa fonte de claridade. Sentiu bater mais
depressa o coração. E desejou que o dia raiasse logo.
Puseram-se de novo a caminho. Horas depois, galgavam a
serra. Salvo nos capões onde a quaresma e o pequizeiro se destacavam, a
vegetação ia-se fazendo mais pobre: canela-de-ema, coqueiro-anão, cacto -
enquanto o panorama se ampliava, e a vista abarcava os longes. Por um segundo
essa paisagem cruzou no pensamento de José Maria com o panorama de Santa Teresa.
Um segundo apenas, pois logo apareceu uma boiada que lhe cobriu o rosto num
turbilhão de poeira.
Faltava o trecho maior para se chegar ao Arraial de
Camilinho. Os burros suavam na subida penosa. - Daqui a pouco vem o Chapadão,
avisou Soero.
A essa palavra, José Maria animou-se. Tal como na
antevéspera, ao ouvir o nome Rio das Velhas.
Pela altitude, pelas suas léguas de pedra e vento, pelo
seu silêncio, esse chapadão do Riacho do Vento lhe surgira como entidade
autônoma e orgulhosa, que dava passagem ao homem mas lhe negava abrigo para
morar e pastagem para o gado.
Era o trecho mais imponente e difícil no acesso à região
de Duília. Por ali transitara há mais de quatro decênios, fazia uma noite
escura, só pelos relâmpagos podia suspeitar o panorama irreal que se desdobrava
de dia. Ia então fazer os preparatórios em Ouro Preto, e caminhava cheio de
medo para o Futuro; seu pai e um caixeiro-viajante o acompanharam até a
primeira estação da Estrada de Ferro. Láo puseram no carro. Foi quando começou
a ficar só no mundo, e pela primeira vez chorou o choro da tristeza. O velho funcionário não dava uma palavra.
Contemplava. À esquerda, as extensões lisas das “gerais” do S. Francisco; à
direita, as colinas arranhadas pelas minerações da bacia do alto Jequitinhonha.
Estranhava o ar parado numa serra que trazia o nome de Riacho do Vento. Entre os trilhos quase apagados que confundiam
o viandante, quem dava a direção era o cincerro do cavalo-madrinha. Já o sol deixara de reluzir nos aforamentos de
pedra e mica, e ainda havia léguas pela frente. Como fica longe o lugar do
passado! Abatido, o olhar vago, o
viajante parecia estar seguindo os caminhos do próprio pensamento. O cansaço
aumentava. Onde o fim do Chapadão? Imenso Brasil. Era então por esses ermos sem
fim que corriam ofícios e papéis da administração pública?! Quantos, ele mesmo,
José Maria, fizera despachar sem a mais vaga idéia das distâncias que iam
cobrir! Mergulhava em reflexões. Infinita a distância entre a natureza e o
papelório! De repente, dirigindo-se ao camarada:
- Você conhece Duília?
Soero não ouvira bem, ou não compreendera a pergunta que
vinha perfurar um silêncio de horas. Esperou que o patrão a repetisse, mas o
grito de um pássaro desmanchou o começo do diálogo. E tudo ficou por isso mesmo.
Depois de seis léguas de marcha batida, Soero sentiu que o
homem misterioso não agüentava mais.
- Acho que de uma vezada só até Camilinho, é um bocado de
chão pra vosmecê.
Propôs uma pausa. Pouco adiante, descobriu uma grota para
o pernoite. Num córrego de águas
frescas, os animais desarreados mataram a sede. Os dois homens jantaram o que
traziam nos bornais. Os couros Foram novamente estendidos. José Maria,
amedrontado, perguntou a Soero se havia onças por ali.
O camarada tranqüilizou-o. Enquanto para este era aquela
uma noite de rotina, para o velho funcionário repetia-se, a céu descoberto, a
aventura excitante das margens do Paraúna. Doíam-lhe tanto os membros e era tal
o cansaço, que já não podia contemplar por muito tempo as estrelas que cintilavam
pertinho. Mergulhou no sono pesado. Às
onze horas do dia seguinte, entrava no Arraial do Camilinho. Aí se dispunha a
refazer as energias para a etapa final. Tudo
o que vinha percorrendo já era país de Duília. Agora sim, não precisava ter
pressa. A bem dizer, do alto do Riacho do Vento para cá, a moça parecia ter-lhe
vindo ao encontro. Era como se ela viajasse na garupa do animal.
O resto da tarde e a noite passou-os José Maria na pensão
da Juvência. A velha nem se lembrava de
que ele ali estivera, adolescente, ao deixar Pouso Triste: também ela o supunha
algum emissário norte-americano atrás de minério para a guerra. José Maria
preferiu passar incógnito. Absteve-se de pedir informações.
Mais seis horas e estaria naquela cidadezinha, face a face
com a mulher sonhada. Não imaginava agora fosse tão fácil aproximar-se do que
tão longe lhe parecera no tempo ou no espaço.
Detinha o burro a cada momento; olhava, hesitava. Nem
mesmo se inquietara com a nuvem de chuva que vinha avançando do nordeste. Soero
estranhou a indiferença do patrão. O aguaceiro caiu, molhou a ambos. José Maria tinha medo de chegar.
Passou a chuva, veio o sol, borboletas voejavam sobre a
lama recente. E Pouso Triste se
aproximando... perfil de colinas conhecidas... o riacho cristalino com um
último faiscador... o sítio do Janjão. Agora, o cemitério onde dormem os seus
pais... “Estarei sonhando?” - Pouso Triste!
Olhou confrangido. Era então aquilo!... E a cidade?
Trazia na memória a visão de uma cidade: surgiu-lhe um
arraial!...
Pobre e inaceitável burgo, todo triste e molhado de
chuva!...
Foi descendo devagar. Passou em frente à igreja, entrou na
praça vazia.
Fantasmas desdentados conversavam à porta da venda.
A brisa agitava as folhas da única árvore gotejante.
Tinha sido ali...
A pensão. Parou e entrou. Pediu um banho, mudou de roupa.
Sórdido chuveiro. Foi para a janela. Povoado lúgubre! Como compará-lo à cidade
luminosa que erguera em pensamento para santuário de
Duília? Teve raiva de si mesmo. Nenhum parente, ninguém para reconhecê-lo.
Melhor assim.
Fixou a árvore. Era a mesma... Pelo menos aquilo
sobrevivera. Saiu para vê-la
de perto; deixou-se ficar debaixo de seus galhos. Reviveu
a cena
inesquecível... Mas não encontrou o mesmo sabor. A árvore
parecia indiferente. Não se conformava com a falta de claridade. Nem a da luz
exterior, nem a outra, subjetiva, que iluminava a cidade ideal onde se dera a
aparição da moça.
Pertinho, bem perto devia estar ela. Tão perto que
assustava. Dentro de poucos instantes - o seu rosto, a sua voz, os seios!...
Mas aquele marasmo, o torpor das coisas - o envelhecimento da árvore e da
paisagem, tudo prenunciava a impossibilidade de Duília.
Timidamente, pediu notícias à dona da pensão. A velha fez
um esforço de memória. E tal como o passageiro da “jardineira”, respondeu: -
Duília?... Dona Dudu, não é? Uma viúva?
Ah! sumiu daqui já faz tempo. Ouvi dizer que está de professora no Monjolo.
Ainda que mal lhe pergunte, vosmecê é parente dela? - Não, disse José Maria. E
para desarmar a curiosidade da velha:
- Trago-lhe umas encomendas.
Deixou passar alguns instantes. Perguntou por perguntar:
- Sabe dizer se tem filhos?
- Filhos? Um horror de netos!... Que Deus me perdoe, o
marido era uma peste.
Não quis saber do resto.
Despediu-se de Soero, o bom camarada; pagou-lhe bem o
serviço.
Seguiria sozinho até Monjolo. Conhecia a estrada. Pouco mais
de três léguas. Léguas que se tornaram
difíceis, pois a lama era muita, e o burro mal ferrado patinhava.
A viagem se arrastava sem o encantamento da que terminara
na véspera. Não desejava que a decepção
de Pouso Triste influísse na sua chegada a Duília.
Tudo agora parecia pior, o caminho mais estreito, mais
aflitiva a ausência de claridade. Sentiu o deserto no coração. Sua alma deixou
de viajar. Fazia-lhe falta a presença
muda de Soero. Fez parar o animal.
- Será que Duília...
Novamente lhe viera o terrível pressentimento. Como
aceitar outra imagem dela senão a que guardara consigo: a namorada eterna,
fixa? A imaginação delirante não cedia à evidência da razão. A poucas horas da amada, José Maria tremia de
medo. O burro começou a andar por conta
própria. Os últimos quilômetros o viajante os fez como um autômato.
Monjolo se anunciava por um som de sanfona que parecia o
gemido constante do fundo do Brasil.
Foi surgindo pela frente um arraial ainda menor e mais
pobre que Pouso Triste. Os urubus não freqüentavam o céu, quase se deixavam
pisar pelas patas da alimária. José Maria engoliu um soluço. Tomados de espanto, os poucos moradores
espiavam o estrangeiro. O letreiro “Escola
Rural” aparecia em tinta esmaecida. Uma casinha modesta, com chiqueiro no
porão. A sala de espera limpa, com gravuras de santos enfeitados de flores de
papel, e que tanto servia à Escola como à residência, nos fundos. As carteiras
escolares estavam quebradas. O viajante
apeou-se, bateu à porta. Uma senhora, muito pálida, veio atendê-lo em chinelos.
- Eu queria falar com Duília... Dona Duília... corrigiu.
A senhora fê-lo entrar e sentar-se. Pediu licença, deixou
a sala.
Momentos depois, voltou mais arrumada. Seus cabelos eram
grisalhos, a voz meio rouca, o sorriso agradável, apesar dos dentes cariados.
Ainda não tinha
sessenta anos, e aparentava mais.
- A senhora também é professora?
Duas crianças gritaram da porta: - Dona Dudu! Dona Dudu!
Ela respondeu: - Vão brincar lá fora. E virando-se para o
estranho:
- Não se pode ficar sossegada um minuto. Esses meninos acabam
com a
gente.
José Maria sentiu como que uma pancada na nuca. Baixou as
pálpebras,
confuso. A professora ficou esperando que ele se
identificasse. Notou-lhe a
fisionomia alterada, um começo de vertigem.
- Está-se sentindo mal?
Saiu e voltou com um copo d’água.
- Não foi nada. O cansaço da viagem. Já passou.
Olhava para ela estarrecido.
A mulher, aflita por que o desconhecido desse o nome.
- Veio a passeio, não é?
- Não. Não vim propriamente a passeio...
- Um lugar tão distante... Ultimamente as jazidas têm
atraído muitos estrangeiros para cá.
- Eu não sou estrangeiro - respondeu o visitante. Sou
brasileiro...
E daqui... de bem perto daqui. Sou também de Pouso Triste...
Uma expressão de surpresa e simpatia clareou o rosto da
professora.
José Maria encarou-a com dolorosa intensidade. Subitamente
empalideceu. Chegara o momento
culminante. Fechou os olhos como se não quisesse ver o efeito das próprias
palavras. A professora pressentiu que algo de grave trouxera até ali o sombrio
visitante. Atordoada, esperou. José Maria principiou a falar:
- Lembra-se de um rapazinho, há muitos anos, que a viu
numa procissão?
A mulher abriu os olhos.
- Nós tínhanos parado debaixo de uma árvore... lembra-se?
Ela ainda está lá... não morreu. Eu olhava como um louco para você, Duília... Ao ouvir pronunciar seu nome com intimidade
cúmplice, a professora teve um arrepio. O homem não sabia como continuar.
Hesitou um momento. - Depois... depois
eu larguei Pouso Triste. Nunca mais me esqueci.
E só agora...
Parou no meio da frase. Tremia-lhe o queixo. A mulher, assustada, reconhecera nele o
rapazinho de outrora. Fitou-o longamente. Passou-lhe pelo rosto um lampejo de
mocidade. Volvendo a cabeça para o chão,
enrubesceu com quarenta anos de atraso...
Quedaram-se por alguns momentos. O vazio do mundo pesava sobre
o sossego do povoado. Grunhiam os porcos embaixo. Um cheiro de lavagem e de
goiaba madura entrava pela janela, e parecia a exalação do passado. José Maria suspirou fundo. Aquela mulher, flor
de poesia, era agora aquilo! Fantasma da outra, ruína de Duília... Dona
Duília... Dudu!
A mulher interrompeu a longa pausa:
- Tudo aqui envelheceu tanto! disse, erguendo a cabeça.
Que veio fazer nesse fim de mundo, seu José Maria?
Ouvindo-a por sua vez pronunciar-lhe o nome, sentiu-se
José Maria menos distante dela. Parecia que davam juntos o mesmo salto no
tempo. - Vim à procura de meu passado,
respondeu.
- Viajar tão longe para se encontrar com uma sombra! E
volvendo-se para si mesma: - Veja a que fiquei reduzida.
José Maria pousou o olhar no colo murcho, local do
memorável acontecimento.
Aquilo que ali estava poderia ser a mãe de Duília, da
Duília que ele trazia na memória, jamais a própria.
- Não devia ter feito isso, advertiu a mulher, como que
despertando
da profunda cisma.
- O quê?
- Voltar ao lugar das primeiras ilusões.
“Sim, é verdade, pensou o homem, não devia ter vindo. O
melhor de seu passado não estava ali, estava dentro dele. A distância alimenta
o sonho. Enganara-se. Tal como Fernão
Dias com as esmeraldas...” Ergueu-se, chegou à janela. A tarde caía depressa.
Os casebres se fundiam na cinza suja. Uma preta entrou e acendeu o lampião de
querosene. Não tinha mais tempo para
criar novas ilusões. Nada mais a esperar. Ficaria por ali mesmo... Floripes fizesse o
que entendesse da casinha de Santa Teresa. Felizes os que ainda desejam alguma
coisa, os que lutam e morrem por alguma coisa. Felizes aquelas meninas que
desceram cantando para Belo Horizonte. A ele, José Maria, só lhe restava
encalhar naquele buraco, dissolver-se por ali mesmo, agarrado aos últimos
destroços do passado. Sentiu falta de
ar. Bem a seu lado se achava alguém que se dizia Duília, espectro da outra.
Espectro também, Pouso Triste; e aquele mesquinho arraial lá fora... e tudo o
mais que a noite vinha cobrindo! Súbita
raiva transfigurou-lhe as feições. Voltou a ser o estranho, o que invadira a
mansão de miséria e paz da velha professora. Teve ímpeto de espancá-la,
destruir aquele corpo que ousara ter sido o de Duília. Desse corpo de que só
vira um trecho, num relâmpago de esplendor... Ante o silêncio sombrio do visitante, a
professora teve medo. Procurou aliviar-lhe o desespero contido.
- Vai voltar para o Rio?
Ao ouvir a voz mansa, José Maria enterneceu-se. Sentia-lhe
no timbre a ressonância musical da antiga. Sentou-se de novo; e fechando o
rosto com as mãos, caiu no pranto. Achou-se ridículo, pediu desculpas. Duília, compassiva,
tomou-lhe a mão, procurou consolá-lo. Um sentimento comum aproximava-os.
Espantou-se a professora ao se dar conta do que estava
fazendo: dar a mão ao quase desconhecido de há pouco.
Por longo tempo, as duas mãos enrugadas se aqueceram uma
na outra. Mudos, transidos de emoção,
ambos cerraram os olhos. Duas sombras dentro da sala triste...
O homem não se conteve. Ergueu-se, saiu precipitadamente.
A professora correu
atrás:
- José Maria! Senhor José Maria!...
A voz rouca mais parecia soluço do que apelo.
- José Maria!
Os moradores se alvoroçaram:
- O que terá havido com a professora?
- Foi depois que chegou aquele estrangeiro alto!
- Quem será esse indivíduo?
E já se preparavam para perseguir o intruso, munindo-se de
pedras e pedaços de pau. Mas o desconhecido desapareceu na escuridão. Parada no meio do largo, Duília arquejava.
Ninguém lhe ouvia mais a voz nem lhe distinguia o vulto.
Alguns soluços cortaram a treva.
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