quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Tangerine-Girl Rachel de Queiroz



De princípio a interessou o nome da aeronave: não “zepelim” nem
dirigível, ou qualquer outra coisa antiquada; o grande fuso de metal
brilhante chamava-se modernissimamente blimp. Pequeno como um brinquedo,
independente, amável. A algumas centenas de metros da sua casa
ficava a base aérea dos soldados americanos e o poste de amarração dos
dirigíveis. E de vez em quando eles deixavam o poste e davam uma volta,
como pássaros mansos que abandonassem o poleiro num ensaio de vôo.
Assim, de começo, aos olhos da menina, o blimp existia como uma coisa em
si - como um animal de vida própria; fascinava-a como prodígio mecânico que era, e principalmente ela o achava lindo, todo feito de prata, igual a uma
jóia, librando-se majestosamente pouco abaixo das nuvens. Tinha coisas de
ídolo, evocava-lhe um pouco o gênio escravo de Aladim. Não pensara nunca
em entrar nele; não pensara sequer que pudesse alguém andar dentro dele.
Ninguém pensa em cavalgar uma águia, nadar nas costas de um golfinho; e,
no entanto, o olhar fascinado acompanha tanto quanto pode águia e
golfinho, numa admiração gratuita - pois parece que é mesmo uma das
virtudes da beleza essa renúncia de nós próprios que nos impõe, em troca de
sua contemplação pura e simples.
Os olhos da menina prendiam-se, portanto, ao blimp sem nenhum
desejo particular, sem a sombra de uma reivindicação. Verdade que via lá
dentro umas cabecinhas espiando, mas tão minúsculas que não davam
impressão de realidade - faziam parte da pintura, eram elemento
decorativo,
obrigatório como as grandes letras negras U S. Navy gravadas no bojo
de prata. Ou talvez lembrassem aqueles perfis recortados em folha que fazem
de chofer nos automóveis de brinquedo.
O seu primeiro contato com a tripulação do dirigível começou de maneira
puramente ocasional. Acabara o café da manhã; a menina tirara a mesa e fora
à porta que dá para o laranjal, sacudir da toalha as migalhas de pão. Lá de cima
um tripulante avistou aquele pano branco tremulando entre as árvores espalhadas
e a areia, e o seu coração solitário comoveu-se. Vivia naquela base como um frade
no seu convento - sozinho entre soldados e exortações patrióticas. E ali
estava, juntinho ao oitão da casa de telhado vermelho, sacudindo um pano entre a
mancha verde das laranjeiras, uma mocinha de cabelo ruivo. O marinheiro
agitou-se todo com aquele adeus. Várias vezes já sobrevoara aquela casa, vira
gente embaixo entrando e saindo; e pensara quão distantes uns dos outros vivem os
homens, quão indiferentes passam entre si, cada um trancado na sua vida. Ele
estava voando por cima das pessoas, vendo-as, espiando-as, e, se algumas
erguiam os olhos, nenhuma pensava no navegador que ia dentro; queriam só ver a beleza
prateada vagando pelo céu.
Mas agora aquela menina tinha para ele um pensamento, agitava no ar um pano, como uma bandeira; decerto era bonita - o sol lhe tirava fulgurações de fogo do cabelo, e a silhueta esguia se recortava claramente no fundo verde-e-areia. Seu coração atirou-se para a menina num grande
impulso agradecido; debruçou-se à janela, agitou os braços, gritou: “Amigo!, amigo!”- embora soubesse que o vento, a distância, o ruído do motor não deixariam ouvir-se nada. Ficou incerto se ela lhe vira os gestos e quis lhe corresponder de modo mais tangível. Gostaria de lhe atirar uma flor, uma
oferenda. Mas que podia haver dentro de um dirigível da Marinha que servisse para ser oferecido a uma pequena? O objeto mais delicado que encontrou foi uma grande caneca de louça branca, pesada como uma bala de canhão, na qual em breve lhe iriam servir o café. E foi aquela caneca que o navegante atirou; atirou, não: deixou cair a uma distância prudente da figurinha iluminada, lá embaixo; deixou-a cair num gesto delicado, procurando abrandar a força da gravidade, a fim de que o objeto não chegasse sibilante como um projétil, mas suavemente, como uma dádiva.
A menina que sacudia a toalha erguera realmente os olhos ao ouvir o motor do blimp. Viu os braços do rapaz se agitarem lá em cima. Depois viu aquela coisa branca fender o ar e cair na areia; teve um susto, pensou numa brincadeira de mau gosto - uma pilhéria rude de soldado estrangeiro. Mas quando viu a caneca branca pousada no chão, intacta, teve uma confusa intuição do impulso que a mandara; apanhou-a, leu gravadas no fundo as mesmas letras que havia no corpo do dirigível: U S. Navy. Enquanto isso,
o blimp, em lugar de ir para longe, dava mais uma volta lenta sobre a casa e o pomar. Então a mocinha tornou a erguer os olhos e, deliberadamente dessa vez, acenou com a toalha, sorrindo e agitando a cabeça. O blimp fez mais duas voltas e lentamente se afastou - e a menina teve a impressão de que
ele levava saudades. Lá de cima, o tripulante pensava também - não em saudades, que ele não sabia português, mas em qualquer coisa pungente e doce, porque, apesar de não falar nossa língua, soldado americano também tem coração.
Foi assim que se estabeleceu aquele rito matinal. Diariamente passava o blimp e diariamente a menina o esperava; não mais levou a toalha branca, e às vezes nem sequer agitava os braços: deixava-se estar imóvel, mancha clara na terra banhada de sol. Era uma espécie de namoro de gavião com gazela: ele, fero soldado cortando os ares; ela, pequena, medrosa, lá embaixo, vendo-o passar com os olhos fascinados. Já agora, os presentes, trazidos de propósito da base, não eram mais a grosseira caneca improvisada; caíam do
céu números da Life e da Time, um gorro de marinheiro e, certo dia, o tripulante tirou do bolso o seu lenço de seda vegetal perfumado com essência sintética de violetas. O lenço abriu-se no ar e veio voando como um papagaio de papel; ficou preso afinal nos ramos de um cajueiro, e muito trabalho
custou à pequena arrancá-lo de lá com a vara de apanhar cajus; assim mesmo
ainda o rasgou um pouco, bem no meio.
Mas de todos os presentes o que mais lhe agradava era ainda o primeiro: a
pesada caneca de pó de pedra. Pusera-a no seu quarto, em cima da banca de
escrever. A princípio cuidara em usá-la na mesa, às refeições, mas se arreceou da
zombaria dos irmãos. Ficou guardando nela os lápis e canetas. Um dia teve idéia
melhor e a caneca de louça passou a servir de vaso de flores. Um galho de manacá,
um bogari, um jasmim-do-cabo, uma rosa-menina, pois no jardim rústico da
casa de campo não havia rosas importantes nem flores caras.
Pôs-se a estudar com mais afinco o seu livro de conversação inglesa;
quando ia ao cinema, prestava uma atenção intensa aos diálogos, a fim de
lhes apanhar não só o sentido, mas a pronúncia. Emprestava ao seu marinheiro
as figuras de todos os galãs que via na tela, e sucessivamente ele era
Clark Gable, Robert Taylotõu Cary Grant. Ou era louro feito um mocinho
que morria numa batalha naval do Pacífico, cujo nome a fita não dava;
chegava até a ser, às vezes, careteiro e risonho como Red Skelton. Porque ela
era um pouco míope, mal o vislumbrava, olhando-o do chão: via um recorte
de cabeça, uns braços se agitando; e, conforme a direção dos raios do sol,
parecia-lhe que ele tinha o cabelo louro ou escuro.
Não lhe ocorria que não pudesse ser sempre o mesmo marinheiro. E, na
verdade, os tripulantes se revezariam diariamente: uns ficavam de folga e iam
passear na cidade com as pequenas que por lá arranjavam; outros iam embora
de vez para a África, para a Itália. No posto de dirigíveis criava-se aquela
tradição da menina do laranjal. Os marinheiros puseram-lhe o apelido de
“Tangerine-Girl”. Talvez por causa do filme de Dorothy Lamour, pois
Dorothy Lamour é, para todas as forças armadas norte-americanas, o modelo
do que devem ser as moças morenas da América do Sul e das ilhas do Pacífico.
Talvez porque ela os esperava sempre entre as laranjeiras. E talvez porque o
cabelo ruivo da pequena, quando brilhava à luz da manhã, tinha um brilho
acobreado de tangerina madura. Um a um, sucessivamente, como um bem de todos, partilhavam eles o namoro com a garota Tangerine. O piloto da aeronave dava voltas, obediente, voando o mais baixo que lhe permitiam os regulamentos, enquanto o outro, da janelinha, olhava e dava adeus.
Não sei por que custou tanto a ocorrer aos rapazes a idéia de atirar um
bilhete. Talvez pensassem que ela não os entenderia. Já fazia mais de um mês
que sobrevoavam a casa, quando afinal o primeiro bilhete caiu; fora escrito
sobre uma cara rosada de rapariga na capa de uma revista: laboriosamente,
em letras de imprensa, com os rudimentos de português que haviam
aprendido da boca das pequenas, na cidade: “Dear Tangerine-Girl. Please
você vem hoje (today) base X. Dancing, show. Oito horas P.M.” E no outro
ângulo da revista, em enormes letras, o “Amigo”, que é a palavra de passe
dos americanos entre nós.
A pequena não atinou bem com aquele “Tangerine-Girl”. Seria ela?
Sim, decerto... e aceitou o apelido, como uma lisonja. Depois pensou que
as duas letras, do fim: “P.M.”, seriam uma assinatura. Peter, Paul, ou Patsy,
como o ajudante de Nick Carter? Mas uma lembrança de estudo lhe ocorreu:
consultou as páginas finais do dicionário, que tratam de abreviaturas, e
verificou, levemente decepcionada, que aquelas letras queriam dizer “a hora
depois do meio-dia”.
Não pudera acenar uma resposta porque só vira o bilhete ao abrir a
revista, depois que o blimp se afastou. E estimou que assim o fosse: sentia-se
tremendamente assustada e tímida ante aquela primeira aproximação com o
seu aeronauta. Hoje veria se ele era alto e belo, louro ou moreno. Pensou em
se esconder por trás das colunas do portão, para o ver chegar - e não lhe
falar nada. Ou talvez tivesse coragem maior e desse a ele a sua mão; juntos
caminhariam até a base, depois dançariam um fox langoroso, ele lhe faria ao
ouvido declarações de amor em inglês, encostando a face queimada de sol
ao seu cabelo. Não pensou se o pessoal de casa lhe deixaria aceitar o convite.
Tudo se ia passando como num sonho - e como num sonho se resolveria,
sem lutas nem empecilhos.
Muito antes do escurecer, já estava penteada, vestida. Seu coração batia,
batia inseguro, a cabeça doía um pouco, o rosto estava em brasas. Resolveu
não mostrar o convite a ninguém; não iria ao show; não dançaria, conversaria
um pouco com ele no portão. Ensaiava frases em inglês e preparava o ouvido
para as doces palavras na língua estranha. às sete horas ligou o rádio e ficou
escutando languidamente o programa de swings. Um irmão passou, fez troça
do vestido bonito, naquela hora, e ela nem o ouviu. Às sete e meia já estava
na varanda, com o olho no portão e na estrada. Às dez para as oito, noite
fechada já há muito, acendeu a pequena lâmpada que alumiava o portão e
saiu para o jardim. E às oito em ponto ouviu risadas e tropel de passos na
estrada, aproximando-se.
Com um recuo assustado verificou que não vinha apenas o seu marinheiro
enamorado, mas um bando ruidoso deles. Viu-os aproximarem-se,
trêmula. Eles a avistaram, cercaram o portão - até parecia manobra militar
-‘ tiraram os gorros e foram se apresentando numa algazarra jovial.
E, de repente, mal lhes foi ouvindo os nomes, correndo os olhos pelas
caras imberbes, pelo sorriso esportivo e juvenil dos rapazes, fitando-os de um
em um, procurando entre eles o seu príncipe sonhado - ela compreendeu
tudo. Não existia o seu marinheiro apaixonado - nunca fora ele mais do
que um mito do seu coração. Jamais houvera um único, jamais “ele” fora o
mesmo. Talvez nem sequer o próprio blimp fosse o mesmo...
Que vergonha, meu Deus! Dera adeus a tanta gente; traída por uma
aparência enganosa, mandara diariamente a tantos rapazes diversos as mais
doces mensagens do seu coração, e no sorriso deles, nas palavras cordiais que
dirigiam à namorada coletiva, à pequena Tangerine-Girl, que já era uma
instituição da base - só viu escárnio, familiaridade insolente... Decerto pensavam que ela era também uma dessas pequenas que namoram os marinheiros de passagem, quem quer que seja... decerto pensavam... MeuDeus do Céu!
Os moços, por causa da meia-escuridão, ou porque não cuidavam
naquelas nuanças psicológicas, não atentaram na expressão de mágoa e susto
que confrangia o rostinho redondo da amiguinha. E, quando um deles,
curvando-se, lhe ofereceu o braço, viu-a com surpresa recuar, balbuciando
timidamente:
- Desculpem... houve engano... um engano...
E os rapazes compreenderam ainda menos quando a viram fugir, a
princípio lentamente, depois numa carreira cega. Nem desconfiaram que ela
fugira a trancar-se no quarto e, mordendo o travesseiro, chorou as lágrimas
mais amargas e mais quentes que tinha nos olhos.
Nunca mais a viram no laranjal; embora insistissem em atirar presentes,
viam que eles ficavam no chão, esquecidos - ou às vezes eram apanhados
pelos moleques do sítio.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá Bernardo Elis






- Fio, fais um zóio de boi lá fora pra nóis.
O menino saiu do rancho com um baixeiro na cabeça, e no terreiro, debaixo da chuva miúda e continuada, enfincou o calcanhar na lama, rodou sobre ele o pé, riscando com o dedão uma circunferência no chão mole - outra e mais outra. Três círculos entrelaçados, cujos centros formavam um triângulo equilátero.
Isto era simpatia para fazer estiar. E o menino voltou:
- Pronto, vó.
- O rio já encheu mais? - perguntou ela.
Chi, tá um mar d’água! Qué vê, espia, - e apontou com o dedo para fora do rancho. A velha foi até a porta e lançou a vista. Para todo lado havia água. Somente para o sul, para a várzea, é que estava mais enxuto, pois o braço do rio aí era pequeno. A velha voltou para dentro, arrastando-se pelo chão, feito um cachorro, cadela, aliás: era entrevada. Havia vinte anos apanhara um “ar de estupor” e desde então nunca mais se valera das pernas, que murcharam e se estorceram.
Começou a escurecer nevroticamente. Uma noite que vinha vagarosamente, irremediavelmente, como o progresso de uma doença fatal.  O Quelemente, filho da velha, entrou. Estava ensopadinho da silva.  Dependurou numa forquilha a caroça, - que é a maneira mais analfabeta de se esconder da chuva, - tirou a camisa molhada do corpo e se agachou na beira da fornalha.
- Mãe, o vau tá que tá sumino a gente. Este ano mesmo, se Deus ajudá, nóis se muda.
Onde ele se agachou, estava agora uma lagoa, da água escorrida da calça de algodão grosso.
A velha trouxe-lhe um prato de folha e ele começou a tirar, com a colher de pau, o feijão quente da panela de barro. Era um feijão brancacento, cascudo, cozido sem gordura. Derrubou farinha de mandioca em cima, mexeu e pôs-se a fazer grandes capitães com a mão, com que entrouxava a bocarra.
Agora a gente só ouvia o ronco do rio lá embaixo - ronco confuso, rouco, ora mais forte, ora mais fraco, como se fosse um zunzum subterrâneo.
A calça de algodão cru do roceiro fumegava ante o calor da fornalha,
como se pegasse fogo. Já tinha pra mais de oitenta anos que os dos Anjos moravam ali na foz do
Capivari no Corumbá. O rancho se erguia num morrote a cavaleiro de terrenos
baixos e paludosos. A casa ficava num triângulo, de que dois lados eram formados
por rios, e o terceiro, por uma vargem de buritis. Nos tempos de cheias os
habitantes ficavam ilhados, mas a passagem da várzea era rasa e podia-se vadear
perfeitamente.
No tempo da guerra do Lopes, ou antes ainda, o avô de Quelemente veio de Minas e montou ali sua fazenda de gado, pois a formação geográfica construíra um excelente apartador. O gado, porém, quando o velho morreu, já estava quase extinto pelas ervas daninhas. Daí para cá foi a decadência.  No lugar da casa de telhas, que ruiu, ergueram um rancho de palhas. A erva se incumbiu de arrasar o resto do gado e as febres as pessoas.  “- Este ano, se Deus ajudá, nóis se muda.” Há quarenta anos a velha Nhola vinha ouvindo aquela conversa fiada. A princípio fora seu marido:
“- Nóis precisa de mudá, pruquê senão a água leva nóis”. Ele morreu de maleita e os outros continuaram no lugar. Depois era o filho que falava assim, mas nunca se mudara. Casara-se ali: tivera um filho; a mulher dele, nora de Nhola, morreu de maleita. E ainda continuaram no mesmo lugar: a velha Nhola, o filho Quelemente e o neto, um biruzinho sempre perrengado.  A chuva caía meticulosamente, sem pressa de cessar. A palha do rancho porejava água, fedia a podre, derrubando dentro da casa uma infinidade de bichos que a sua podridão gerava. Ratos, sapos, baratas, grilos, aranhas, - o diabo refugiava-se ali dentro, fugindo à inundação, que aos poucos ia galgando a perambeira do morrote.
Quelemente saiu ao terreiro e olhou a noite. Não havia céu, não havia horizonte - era aquela coisa confusa, translúcida e pegajosa. Clareava as trevas o branco leitoso das águas que cercavam o rancho. Ali pras bandas da vargem é que ainda se divisava o vulto negro e mal recortado do mato. Nem uma estrela. Nem um pirilampo. Nem um relâmpago. A noite era feito um grande cadáver, de olhos abertos e embaciados. Os gritos friorentos das marrecas povoavam de terror o ronco medonho da cheia.  No canto escuro do quarto, o pito da velha Nhola acendia-se e apagava-se sinistramente, alumiando seu rosto macilento e fuxicado.  - Ocê bota a gente hoje em riba do jirau, viu? - pediu ela ao filho.  - Com essa chuveira de dilúvio, tudo quanto é mundice entra pro rancho e eu num quero drumi no chão não.
Ela receava a baita cascavel que inda agorinha atravessara a cozinha numa intimidade pachorrenta.
Quelemente sentiu um frio ruim no lombo. Ele dormia com a roupa ensopada, mas aquele frio que estava sentindo era diferente. Foi puxar o baixeiro e nisto esbarrou com água. Pulou do jirau no chão e a água subiu-lhe ao umbigo. Sentiu um aperto no coração e uma tonteira enjoada. O rancho estava viscosamente iluminado pelo reflexo do líquido. Uma luz cansada e incômoda, que não permitia divisar os contornos das coisas. Dirigiu-se ao jirau da velha. Ela estava agachada sobre ele, com um brilho aziago no olhar.
Lá fora o barulhão confuso, subterrâneo, sublinhado pelo uivo de um
cachorro.
- Adonde será que tá o chulinho?
Foi quando uma parede do rancho começou a desmoronar. Os torrões
de barro do pau-a-pique se desprendiam dos amarrilhos de embiras e caíam
nágua com um barulhinho brincalhão - tchibungue - tibungue. De
repente, foi-se todo o pano de parede. As águas agitadas vieram banhar as
pernas inúteis de mãe Nhola:
- Nossa Senhora d’Abadia do Muquém!
- Meu Divino Padre Eterno!
O menino chorava aos berros, tratando de subir pelos ombros da estuporada e alcançar o teto. Dentro da casa, boiavam pedaços de madeira,
cujas, coités, trapos e a superfície do líquido tinha umas contorsões diabólicas de espasmos epiléticos, entre as espumas alvas.
- Cá, nego, cá, nego - Nhola chamou o chulinho que vinha nadando pelo quarto, soprando a água. O animal subiu ao jirau e sacudiu o pêlo molhado, trêmulo, e começou a lamber a cara do menino.  O teto agora começava a desabar, estralando, arriando as pathas no rio, com um vagar irritante, com uma calma perversa de suplício. Pelo vão da parede desconjuntada podia-se ver o lençol branco, - que se diluía na cortina diáfana, leitosa do espaço repleto de chuva, - e que arrastava as palhas, as taquaras da parede, os detritos da habitação. Tudo isso descia em longa fila, aos mansos boléus das ondas, ora valsando em torvelinhos, ora parando nos remansos enganadores. A porta do rancho também ia descendo.  Era feita de paus de buritis amarrados por embiras.  Quelemente nadou, apanhou-a, colocou em cima a mãe e o filho, tirou do teto uma ripa mais comprida para servir de varejão, e lá se foram derivando, nessa jangada improvisada.
- E o chulinho? - perguntou o menino, mas a única resposta foi mesmo o uivo do cachorro.
Quelemente tentava atirar a jangada para a vargem, a fim de alcançar
as árvores. A embarcação mantinha-se a coisa de dois dedos acima da
superfície das águas, mas sustinha satisfatoriamente a carga. O que era preciso
era alcançar a vargem, agarrar-se aos galhos das árvores, sair por esse único ponto mais próximo e mais seguro. Daí em diante o rio pegava a estreitar-se entre barrancos atacados, até cair na cachoeira. Era preciso evitar essa passagem, fugir dela. Ainda se se tivesse certeza de que a enchente houvesse passado acima do barranco e extravasado pela campina adjacente a ele, podia-se salvar por ali. Do contrário, depois de cair no canal, o jeito era mesmo espatifar-se na cachoeira.
- É o mato? - perguntou engasgadamente Nhola, cujos olhos de pua furavam o breu da noite.
Sim. O mato se aproximava, discerniam-se sobre o líquido grandes manchas, sonambulicamente pesadas, emergindo do insondável - deviam ser as copas das árvores. De súbito, porém, a sirga não alcançou mais o fundo.
A correnteza pegou a jangada de chofre, fê-la tornear rapidamente e arrebatou-a
no lombo espumarento. As três pessoas agarraram-se freneticamente aos buritis,
mas um tronco de árvore que derivava chocou-se com a embarcação, que agora corria na garupa da correnteza.  Quelemente viu a velha cair nágua, com o choque, mas não pôde nem mover-se: procurava, por milhares de cálculos, escapar à cachoeira, cujo rugido se aproximava de uma maneira desesperadora. Investigava a treva, tentando enxergar os barrancos altos daquele ponto do curso. Esforçava-se para identificar o local e atinar com um meio capaz de os salvar daquele estrugir encapetado da cachoeira.
A velha debatia-se, presa ainda à jangada por uma mão, despendendo esforços impossíveis por subir novamente para os buritis. Nisso Quelemente notou que a jangada já não suportava três pessoas. O choque com o tronco de árvore havia arrebentado os atilhos e metade dos buritis havia-se desligado e rodado. A velha não podia subir, sob pena de irem todos para o fundo. Ali já não cabia ninguém. Era o rio que reclamava uma vítima.
As águas roncavam e cambalhotavam espumejantes na noite escura que
cegava os olhos, varrida de um vento frio e sibilante. A nado, não havia força
capaz de romper a correnteza nesse ponto. Mas a velha tentava energicamente
trepar novamente para os buritis, arrastando as pernas mortas que as águas
metiam por baixo da jangada. Quelemente notou que aquele esforço da velha
estava fazendo a embarcação perder a estabilidade. Ela já estava quase abaixo das águas. A velha não podia subir. Não podia. Era a morte que chegava,
abraçando Quelemente com o manto líquido das águas sem fim. Tapando a sua respiração, tapando seus ouvidos, seus olhos, enchendo sua boca de água, sufocando-o, sufocando-o, apertando sua garganta. Matando seu filho, que era perrengue e estava grudado nele.
Quelemente segurou-se bem aos buritis e atirou um coice valente na
cara aflissurada da velha Nhola. Ela afundou-se para tornar a aparecer, presa
ainda à borda da jangada, os olhos fuzilando numa expressão de incompreensão
e terror espantado. Novo coice melhor aplicado e um tufo d’água espirrou
no escuro. Aquele último coice, entretanto, desequilibrou a jangada, que
fugiu das mãos de Quelemente, desamparando-o no meio do rio.
Ao cair, porém, sem querer, ele sentiu sob seus pés o chão seguro. Ali
era um lugar raso. Devia ser a campina adjacente ao barranco. Era raso. O
diabo da correnteza, porém, o arrastava, de tão forte. A mãe, se tivesse pernas
vivas, certamente teria tomado pé, estaria salva. Suas pernas, entretanto, eram uns molambos sem governo, um estorvo.
Ah! se ele soubesse que aquilo era raso, não teria dado dois coices na
cara da velha, não teria matado uma entrevada que queria subir para a jangada
num lugar raso, onde ninguém se afogaria se a jangada afundasse...
Mas quem sabe ela estava ali, com as unhas metidas no chão, as pernas
escorrendo ao longo do rio?
Quem sabe ela não tinha rodado? Não tinha caído na cachoeira, cujo
ronco escurecia mais ainda a treva?
- Mãe, ô, mãe!
- Mãe, a senhora tá aí?
E as águas escachoantes, rugindo, espumejando, refletindo cinicamente
a treva do céu parado, do céu defunto, do céu entrevado, estuporado.
- Mãe, ô, mãe! Eu num sabia que era raso.
- Espera aí, mãe!
O barulho do rio ora crescia, ora morria e Quelemente foi-se metendo
por ele a dentro. A água barrenta e furiosa tinha vozes de pesadelo, resmungo
de fantasmas, timbres de mãe ninando filhos doentes, uivos ásperos de cães
danados. Abriam-se estranhas gargantas resfolegantes nos torvelinhos malucos
e as espumas de noivado ficavam boiando por cima, como flores sobre túmulos.
- Mãe! - lá se foi Quelemente, gritando dentro da noite, até que a água lhe encheu a boca aberta, lhe tapou o nariz, lhe encheu os olhos arregalados, lhe entupiu os ouvidos abertos à voz da mãe que não respondia, e foi deixá-lo, empazinado, nalgum perau distante, abaixo da cachoeira

Dentro da noite João do Rio



— Então causou sensação?
— Tanto mais quanto era inexplicável. Tu amavas a Clotilde, não? Ela coitadita! parecia louca por ti e os pais estavam radiantes de alegria. De repente, súbita transformação. Tu desapareces, a família fecha os salões como se estivesse de luto pesado. Clotilde chora… Evidentemente havia um mistério, uma dessas coisas capazes de fazer os espíritos imaginosos arquitetarem dramas horrendos. Por felicidade, o juízo geral é contra o teu procedimento.
— Contra mim?
Podia ser contra a pureza da Clotilde.
Graças aos deuses, porém, é contra ti. Eu mesmo concordaria com o Prates que te chama velhaco, se não viesse encontrar o nosso Rodolfo, agora, às onze da noite, por tamanha intempérie metido num trem de subúrbio com o ar desvairado…
— Eu tenho o ar desvairado?
— Absolutamente desvairado.
— Vê-se?
— É claro. Pobre amigo! Então, sofreste muito? Conta lá. Estás pálido, suando apesar da temperatura fria, e com um olhar tão estranho, tão esquisito. Parece que bebeste e que choraste. Conta lá. Nunca pensei encontrar o Rodolfo Queirós, o mais elegante artista desta terra, num trem de subúrbio, às onze de uma noite de temporal. É curioso. Ocultas os pesares nas matas suburbanas? Estás a fazer passeios de vício perigoso?
O trem rasgara a treva num silvo alanhante, e de novo cavalava sobre os trilhos. Um sino enorme ia com ele badalando, e pelas portinholas do vagão viam-se, a marginar a estrada, as luzes das casas ainda abertas, os silvedos
empapados d’água e a chuva lastimável a tecer o seu infindável véu de lágrimas. Percebi então que o sujeito gordo da banqueta próxima – o que falava mais – dizia para o outro:
— Mas como tremes, criatura de Deus! Estás doente?
O outro sorriu desanimado.
— Não; estou nervoso, estou com a maldita crise.
E como o gordo esperasse:
— Oh! meu caro, o Prates tem razão! E teve razão a família de Clotilde e tens razão tu cujo olhar é de assustada piedade. Sou um miserável desvairado, sou um infame desgraçado.
— Mas que é isto, Rodolfo?
— Que é isto! É o fim, meu bom amigo, é o meu fim. Não há quem não tenha o seu vício, a sua tara, a sua brecha. Eu tenho um vício que é positivamente a loucura. Luto, resisto, grito, debato-me, não quero, não quero, mas o vício vem vindo a rir, toma-me a mão, faz-me inconsciente, apodera-se de mim. Estou com a crise. Lembras-te da Jeanne Dambreuil quando se picava com morfina? Lembras-te do João Guedes quando nos convidava para as fumeries de ópio? Sabiam ambos que acabavam a vida e não podiam resistir. Eu quero resistir e não posso. Estás a conversar com um homem que se sente doido.
— Tomas morfina, agora? Foi o desgosto decerto…
O rapaz que tinha o olhar desvairado perscrutou o vagão. Não havia ninguém mais – a não ser eu, e eu dormia profundamente… Ele então aproximou-se do sujeito gordo, numa ânsia de explicações.
— Foi de repente, Justino. Nunca pensei! Eu era um homem regular, de bons instintos, com uma família honesta. Ia casar com a Clotilde, ser de bondade a que amava perdidamente. E uma noite estávamos no baile das Praxedes, quando a Clotilde apareceu decotada, com os braços nus. Que braços! Eram delicadíssimos, de uma beleza ingênua e comovedora, meio infantil, meio mulher – a beleza dos braços das Oreadas pintadas por Botticelli, misto de castidade mística e de alegria pagã. Tive um estremecimento. Ciúmes? Não. Era um estado que nunca se apossara de mim: a vontade de tê-los só para os meus olhos, de beijá-los, de acariciá-los, mas principalmente de fazê-los sofrer. Fui ao encontro da pobre rapariga fazendo um enorme esforço, porque o meu desejo era agarrar-lhe os braços, sacudi-los, apertá-los com toda a força, fazer-lhes manchas negras, bem negras, feri-los… Por quê? Não sei, nem eu mesmo sei – uma nevrose! Essa noite passei-a numa agitação incrível. Mas contive-me. Contive-me dias, meses, um longo tempo, com pavor do que poderia acontecer O desejo, porém, ficou, cresceu, brotou, enraizou-se na minha pobre alma. No primeiro instante, a minha vontade era bater-lhe com pesos, brutalmente. Agora a grande vontade era de espetá-los, de enterrar-lhes longos alfinetes, de cosê-los devagarinho, a picadas. E junto de Clotilde, por mais compridas que trouxesse as mangas, eu via esses braços nus como na primeira noite, via a sua forma grácil e suave, sentia a finura da pele e imaginava o súbito estremeção quando pudesse enterrar o primeiro alfinete, escolhia posições, compunha o prazer diante daquele susto de carne que havia de sentir.
— Que horror!
— Afinal, uma outra vez, encontrei-a na sauterie da viscondessa de Lajes, com um vestido em que as mangas eram de gaze. Os seus braços – oh! que braços, Justino, que braços! – estavam quase nus. Quando Clotilde erguia-os, parecia uma ninfa que fosse se metamorfoseando em anjo. No canto da varanda, entre as roseiras, ela disse-me: “Rodolfo, que olhar o seu. Está zangado?” Não foi possível reter o desejo que me punha a tremer, rangendo os dentes. – “Oh! não! fiz. Estou apenas com vontade de espetar este alfinete no seu braço.” Sabes como é pura a Clotilde. A pobrezita olhou-me assustada, pensou, sorriu com tristeza: – “Se não quer que eu mostre os braços por que não me disse há mais tempo, Rodolfo? Diga, é isso que o faz zangado?” – “É , é isso, Clotilde.” E rindo – como esse riso devia parecer idiota! – continuei: “É preciso pagar ao meu ciúme a sua dívida de sangue. Deixe espetar o alfinete.” — “Está louco, Rodolfo?” — “Que tem?” — “Vai fazer-me doer” — “Não dói.” — “E o sangue?” — “Beberei essa gota de sangue como a ambrosia do esquecimento.” E dei por mim, quase de joelhos, implorando, suplicando, inventando frases, com um gosto de sangue na boca e as fontes a bater, a bater… Clotilde por fim estava atordoada, vencida, não compreendendo bem se devia ou não resistir Ah! meu caro, as mulheres! Que estranho fundo de bondade, de submissão, de desejo, de dedicação inconsciente tem uma pobre menina! Ao cabo de um certo tempo, ela curvou a cabeça, murmurou num suspiro: “Bem. Rodolfo, faça… mas devagar, Rodolfo! Há de doer tanto!”. E os seus dois braços tremiam.
Tirei da botoeira da casaca um alfinete, e nervoso, nervoso como se fosse amar pela primeira vez, escolhi o lugar, passei a mão, senti a pele macia e enterrei-o. Foi como se fisgasse uma pétala de camélia, mas deu-me um gozo complexo de que participavam todos os meus sentidos. Ela teve um ah! de dor, levou o lenço ao sítio picado, e disse, magoadamente: “Mau!”
— Ah! Justino, não dormi. Deitado, a delícia daquela carne que sofrera por meu desejo, a sensação do aço afundando devagar no braço da minha noiva, dava-me espasmos de horror! Que prazer tremendo! E apertando os varões da cama, mordendo a travesseira, eu tinha a certeza de que dentro de mim rebentara a moléstia incurável. Ao mesmo tempo em que forçava o pensamento a dizer: nunca mais farei essa infâmia! todos os meus nervos latejavam: voltas amanhã; tens que gozar de novo o supremo prazer! Era o delírio, era a moléstia, era o meu horror..
Houve um silêncio. O trem corria em plena treva, acordando os campos com o desesperado badalar da máquina. O sujeito gordo tirou a carteira e acendeu uma cigarreta.
— Caso muito interessante, Rodolfo. Não há dúvida de que é uma degeneração sexual, mas o altruísmo de S. Francisco de Assis também é degeneração e o amor de Santa Tereza não foi outra coisa. Sabes que Rousseau tinha pouco mais ou menos esse mal? É mais um tipo a enriquecer a série enorme dos discípulos do marquês de Sade. Um homem de espírito já definiu o sadismo: a depravação intelectual do assassinato. É um Jack hipercivilizado, contenta-se com enterrar alfinetes nos braços. Não te assustes.
O outro resfolegava, com a cabeça entre as mãos.
— Não rias, Justino. Estás a tecer paradoxos diante de uma criatura já do outro lado da vida normal. E lúgubre.
— Então continuaste?
— Sim, continuei, voltei, imediatamente. No dia seguinte, à noitinha, estava em casa de Clotilde, e com um desejo louco, desvairado. Nós conversávamos na sala de visitas. Os velhos ficavam por ali a montar guarda. Eu e a Clotilde íamos para o fundo, para o sofá. Logo ao entrar tive o instinto de que podia praticar a minha infâmia na penumbra da sala, enquanto o pai conversasse. Estava tão agitado que o velho exclamou: — “Parece, Rodolfo, que vieste a correr para não perder a festa.”
Eu estava louco, apenas. Não poderás nunca imaginar o caos da minha alma naqueles momentos em que estive a seu lado no sofá, o maelstrom de angústias, de esforços, de desejos, a luta da razão e do mal, o mal que eu senti saltar-me à garganta, tomar-me a mão, ir agir, ir agir… Quando ao cabo de alguns minutos acariciei-lhe na sombra o braço, por cima da manga, numa carícia lenta que subia das mãos para os ombros, entre os dedos senti que já tinha o alfinete, o alfinete pavoroso. Então fechei os olhos, encolhi-me, encolhi-me, e finquei. Ela estremeceu, suspirou. Eu tive logo um relaxamento de nervos, uma doce acalmia. Passara a crise com a satisfação, mas sobre os meus olhos os olhos de Clotilde se fixaram enormes e eu vi que ela compreendia vagamente tudo, que ela descobria o seu infortúnio e a minha infâmia. Como era nobre, porém! Não disse uma palavra. Era a desgraça. Que se havia de fazer?…
Então depois, Justino, sabes? foi todo o dia. Não lhe via a carne mas sentia-a marcada, ferida. Cosi-lhe os braços! Por último perguntava: – “Fez sangue, ontem?” E ela pálida e triste, num suspiro de rola: “Fez”… Pobre Clotilde! A que ponto eu chegara, na necessidade de saber se doera bem, se ferira bem, se estragara bem! E no quarto, à noite, vinham-me grandes pavores súbitos ao pensar no casamento porque sabia que se a tivesse toda havia de picar-lhe a carne virginal nos braços, no dorso, nos seios… Justino, que tristeza!…
De novo a voz calou-se. O trem continuava aos solavancos na tempestade, e pareceu-me ouvir o rapaz soluçar. O outro porém estava interessado e indagou:
— Mas então como te saíste?
— Em um mês ela emagreceu, perdeu as cores. Os seus dois olhos negros ardiam aumentados pelas olheiras roxas. Já não tinha risos. Quando eu chegava, fechava-se no quarto, no desejo de espaçar a hora do tormento. Era a mãe que a ia buscar. “Minha filha, o Rodolfo chegou. Avia-te.” E ela de dentro: “Já vou, mãe”. Que dor eu tinha quando a via aparecer sem uma palavra! Sentava-se à janela, consertava as flores da jarra, hesitava, até que sem forças vinha tombar a meu lado, no sofá, como esses pobres pássaros que as serpentes fascinam. Afinal, há dois meses, uma criada viu-lhe os braços, deu o alarme. Clotilde foi interrogada, confessou tudo numa onda de soluços. Nessa mesma tarde recebi uma carta seca do velho desfazendo o compromisso e falando em crimes que estão com penas no código.
— E fugiste?
— Não fugi; rolei, perdi-me. Nada mais resta do antigo Rodolfo. Sou outro homem, tenho outra alma, outra voz, outras idéias. Assisto-me endoidecer Perder a Clotilde foi para mim o soçobramento total. Para esquecê-la percorri os lugares de má fama, aluguei por muito dinheiro a dor das mulheres infames, freqüentei alcouces. Até aí o meu perfil foi dentro em pouco o terror As mulheres apontavam-me a sorrir, mas um sorriso de medo, de horror.
A pedir, a rogar um instante de calma eu corria às vezes ruas inteiras da Suburra, numa enxurrada de apodos. Esses entes querem apanhar do amante, sofrem lanhos na fúria do amor, mas tremem de nojo assustado diante do ser que pausadamente e sem cólera lhes enterra alfinetes. Eu era ridículo e pavoroso. Dei então para agir livremente, ao acaso, sem dar satisfações, nas desconhecidas. Gozo agora nos tramways, nos music-halls, nos comboios dos caminhos de ferro, nas ruas. E muito mais simples. Aproximo-me, tomo posição, enterro sem dó o alfinete. Elas gritam, às vezes. Eu peço desculpa. Uma já me esbofeteou. Mas ninguém descobre se foi proposital. Gosto mais das magras, as que parecem doentes.
A voz do desvairado tomara-se metálica, outra.
De novo porém a envolveu um tremor assustado.
— Quando te encontrei, Justino, vinha a acompanhar uma rapariga magrinha. Estou com a crise, estou… O teu pobre amigo está perdido, o teu pobre amigo vai ficar louco…
De repente, num entrechocar de todos os vagões o comboio parou. Estávamos numa estação suja, iluminada vagamente. Dois ou três empregados apareceram com lanternas rubras e verdes. Apitos trilaram. Nesse momento, uma menina loira com um guarda-chuva a pingar, apareceu, espiou o vagão, caminhou para outro, entrou. O rapaz pôs-se de pé logo.
— Adeus.
— Saltas aqui?
— Salto.
— Mas que vais fazer?
— Não posso, deixa-me! Adeus!
Saiu, hesitou um instante. De novo os apitos trilaram. O trem teve um arranco. O rapaz apertou a cabeça com as duas mãos como se quisesse reter um irresistível impulso. Houve um silvo. A enorme massa resfolegando rangeu por sobre os trilhos. O rapaz olhou para os lados, consultou a botoeira, correu para o vagão onde desaparecera a menina loira. Logo o comboio partiu. O homem gordo recolheu a sua curiosidade, mais pálido, fazendo subir a vidraça da janela. Depois estendeu-se na banqueta. Eu estava incapaz de erguer-me, imaginando ouvir a cada instante um grito doloroso no outro vagão, no que estava a menina loira. Mas o comboio rasgara a treva com o outro silvo, cavalgando os trilhos vertiginosamente. Através das vidraças molhadas viam-se numa correria fantástica as luzes das casas ainda abertas, as sebes empapadas d’água sob a chuva torrencial. E à frente, no alto da locomotiva, como o rebate do desespero, o enorme sino reboava, acordando a noite, enchendo a treva de um clamor de desgraça e de delírio.

    sábado, 22 de setembro de 2012

    Versos Íntimos Augusto dos Anjos



    Vês! Ninguém assistiu ao formidável
    Enterro de tua última quimera.
    Somente a Ingratidão - esta pantera -
    Foi tua companheira inseparável!
    Acostuma-te à lama que te espera!
    O Homem, que, nesta terra miserável,
    Mora, entre feras, sente inevitável
    Necessidade de também ser fera.
    Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
    O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
    A mão que afaga é a mesma que apedreja.
    Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
    Apedreja essa mão vil que te afaga,
    Escarra nessa boca que te beija!

    sexta-feira, 21 de setembro de 2012

    Gestalt Hilda Hilst



    Absorto, centrado no nó das trigonometrias, meditando múltiplos
    quadriláteros, centrado ele mesmo no quadrado do quarto, as superfícies de
    cal, os triângulos de acrílico, suspensos no espaço por uns fios finos os polígonos, Isaiah o matemático, sobrolho peluginoso, inquietou-se quando descobriu o porco. Escuro, mole, seu liso, nas coxas diminutos enrugados, existindo aos roncos, e em curtas corridas gordas, desajeitadas, o ser do porco estava ali. E porque o porco efetivamente estava ali, pensá-lo parecia lógico a Isaiah, e começou pensando spinosismos: “de coisas que nada tenham em comum entre si, uma não pode ser causa da outra.” Mas aos poucos, reolhando com apetência pensante, focinhez e escuros do porco, considerou inadequado para o seu próprio instante o Spinoza citado aí de cima, acercou-se, e de cócoras, de olho-agudez, ensaiou pequenas frases tortas, memorioso: se é que estás aqui, dentro da minha evidência, neste quarto, atuando na minha própria circunstância, e efetivamente estás e atuas, dize-me por quê. Nas quatro patas um esticado muito teso, nos moles da garganta pequeninos ruídos gorgulhantes, o porco de Isaiah absteve-se de responder tais rigorismos, mas focinhou de Isaiah os sapatos, encostou nádegas e ancas com alguma timidez e quando o homem tentou alisá-lo como se faz aos gatos, aos cachorros, disparou outra vez num corre gordo, desajeitado, e de lá do outro canto novamente um esticado muito teso e pequeninos ruídos gorgulhantes. Bem, está aí. Milho, batatas, uma lata de água, e sinto muito o não haver terra para o teu mergulho mais fundo, de focinhez.  Retomou algarismos, figuras, hipóteses, progressões, anotava seus cálculos com tinta roxa, cerimoniosa, canônica, limpo bispal. Isaiah limpou dejetos do porco, muito sóbrio, humildoso, sóbrio agora também o porco um pouco triste esfregando-se nos cantos, um aguado-ternura nos dois olhos, e por isso Isaiah lembrou-se de si mesmo, menino, e do lamento do pai olhando-o: immer krank parece, immer krank, sempre doente parece, sempre doente, é o que pai dizia na sua língua. E doença não é Hilde? Hilde sua mãe, sorria, Ach nem, é pequeno, é criança, e quando ainda somos assim, sempre de alguma coisa temos medo, não é doença Karl, é medo. Isaiah foi adoçando a voz, vou te dar um nome, vem aqui, não te farei mais perguntas, vem, e ele veio, o porco, a anca tremulosa roçou as canelas de Isaiah, Isaiah agachou-se, redondo de afago foi amornando a lisura do couro, e mimos e falas, e então descobriu que era uma porca o porco. Devo dizer-lhes que em contentamento conviveu com Hilde a vida inteira. Deu-lhe o nome da mãe em homenagem àquela frase remota: sempre de alguma coisa temos medo.
    E na manhã de um domingo celebrou esponsais. Um parênteses devo me permitir antes de terminar: Isaiah foi plena, visceral, lindamente feliz.
    Hilde
    também. 

    domingo, 16 de setembro de 2012

    Um discurso sobre o método Sérgio Sant’Anna


    Ele se encontrava sobre a estreita marquise do 18º andar. Tinha pulado ali a fim de limpar pelo lado externo as vidraças das salas vazias do conjunto 180 1/5, a serem ocupadas em breve por uma firma de engenharia.  Ele era um empregado recém-contratado da Panamericana - Serviços Gerais. O fato de haver se sentado à beira da marquise, com as pernas balançando no espaço, se devera simplesmente a uma pausa para fumar a metade de cigarro que trouxera no bolso. Ele não queria dispersar este prazer misturando-o com o trabalho.
    Quando viu o ajuntamento de pessoas lá embaixo, apontando mais ou
    menos em sua direção, não lhe passou pela cabeça que pudesse ser ele o centro
    das atenções. Não estava habituado a ser este centro e olhou para baixo e para
    cima e até para trás, a janela às suas costas. Talvez pudesse haver um princípio
    de incêndio ou algum andaime em perigo ou alguém prestes a pular.  Não havia nada identificável à vista e ele, através de operações bastante lógicas, chegou à conclusão de que o único suicida em potencial era ele próprio. Não que já houvesse se cristalizado em sua mente, algum dia, tal desejo, embora como todo mundo, de vez em quando... E digamos que a pouca importância que dava a si próprio não permitia que aflorasse seriamente em seu campo de decisões a possibilidade de um gesto tão grandiloqüente.  E que o instinto cego de sobrevivência levava uma vantagem de uns quarenta por cento sobre o seu instinto de morte, tanto é que ele viera levando a vida até aquele preciso momento sob as mais adversas condições.
    No seu bolso, por exemplo, depois que se fora o cigarro, só restavam a
    carteira profissional e algumas poucas moedas, insuficientes para tomar o
    ônibus lá na Central do Brasil, numa hora em que os trens já teriam parado. Até a Central, ainda dava para ir a pé, quando ele costumava andar de cabeça
    baixa, não por um sentimento de humilhação, em particular, mas como uma forma de achar moedas, o que não era tão raro assim, uma vez que, com a depreciação crescente do valor dessas moedas, muitas pessoas não se davam mais ao trabalho de curvar-se para pegá-las, quando as deixavam cair.
    Antes de pegar o serviço, hoje, no turno das quatro horas da tarde, que se
    estenderia até a meia-noite, ele hesitara bastante em gastar o dinheiro da
    passagem. Mas o vazio no estômago falara mais alto e ele usara parte dessa
    grana
    com um cafezinho, enchendo três quartos da xícara com açúcar, o que lhe
    proporcionava umas tantas calorias, embora ele não pensasse assim, em termos
    de calorias, mas da diminuição da vontade de comer e, como requinte, que um cigarro, mesmo pela metade, era bem mais saboroso depois de um café.  Ele meditara também sobre as condições meteorológicas, olhando para o céu e concluindo que o tempo continuaria firme, o que significava que ele poderia passar a noite num dos bancos ou gramados do centro da cidade.  Costumavam causar-lhe tédio, quando dormia na rua, as manhãs sem destino até a hora de pegar o serviço, procurando distrair-se olhando o mar e os aviões na ponta do Aterro, perto do aeroporto, ou frangos giratórios nos fornos envidraçados ou, nos cartazes de cinema, mulheres nuas e homens de ação. Mas este era um problema para amanhã e depois de amanhã, no máximo, porque no terceiro dia sairia o pagamento. Ele era um homem que vivia nas imediações do presente, pois o passado não lhe trazia nenhuma recordação agradável, em especial, e o futuro era melhor não prevê-lo, de tão previsível. A data de pagamento, porém, era um marco cronológico ao qual ele se apegava.
    O sujeito que o recrutara por um salário mínimo lhe dissera que ele
    ainda tinha sorte, pois o desemprego grassava no país. Era um sujeito que
    gostava de usar verbos desse tipo, de dicionário, que lhe pareciam conceder
    dignidade e pompa às suas palavras, embora ele não chegasse a materializar
    em sua mente tais substantivos abstratos. Autoridade e importância, sim,
    eram prerrogativas das quais ele se revestia em seu cargo, ele ali sentado
    com
    a gravata e a palavra, enquanto que os homens que desfilavam à sua frente
    permaneciam de pé e mudos, a não ser por certas respostas quase monossilábicas
    como “sim senhor”, ou “não senhor” quando se tratava de vícios como a cachaça. Se audiência fosse um pouco mais qualificada, ele discorreria também um pouco mais sobre os problemas do país, que provinham do atraso do povo, a desonestidade e incompetência dos políticos, agravadas pelo gigantismo do Estado. Na intimidade do lar, ele apontava ainda causas como as condições climáticas, uma colonização de degredados e a mistura de raças. Ele era um homem da iniciativa privada numa posição de comando intermediário, embora achasse que ganhava pouco, o que era amenizado pela perspectiva de subir alguns degraus, desde que fosse perseverante e duro até o ponto da inflexibilidade. E o nome Panamericana se revestia para ele de uma aura multinacional, apesar de não ser mais do que isso, uma aura esperta que, a bem da verdade, contaminava mesmo o homem lá na marquise, em seu uniforme com aquelas letras gravadas significando para ele alguma coisa que não entendia bem e por isso respeitava, algo ligado a competições esportivas que o Brasil disputava. Alguma coisa imponente, sem dúvida, tanto é que eles eram proibidos, em tese, de vestir os uniformes fora do horário do trabalho, justamente para evitar que os empregados manchassem aquele nome envergando-o em botequins ou bancos de praça e gramados.
    Mas a perspectiva de passar a noite num desses dois últimos locais trazia
    em seu bojo a vantagem de que, não indo para casa, ele não presenciaria o
    que lá estivesse se passando, com a mulher e os três filhos diante de uma
    despensa - que era como eles chamavam alguns caixotes empilhados totalmente vazia. Não que ele estivera pensando nisso em seu trajeto rumo
    à marquise, muito pelo contrário; ele costumava desligar-se dos problemas
    da casa tão logo punha os pés na rua. Sabia que as mulheres eram capazes de
    verdadeiros milagres, como uma contabilidade não escrita de ovos e farinha tomados emprestados umas das outras na vizinhança, mas se um homem se encontrasse por perto todas as queixas recairiam sobre ele. Pelo menos era o que ele pensava, quando estava pensando nisso.  Tais aflições subsistiam, porém, apenas como uma espécie de latência dentro dele - uma ausência boa - ali na marquise, e não teriam aflorado juntamente com o próprio meio de livrar-se delas, caso ele não identificasse os gritos em coro das pessoas lá embaixo como pedidos para que ele pulasse.  Não que ele se dispusesse a ceder àqueles apelos, bem entendido; apenas descobria, um tanto perplexo e até fascinado, que esta era uma alternativa plausível para um ser humano como ele, em dificuldades, mas de posse de todos os seus movimentos. E isso lhe concedia uma liberdade insuspeitada e uma leveza, uma vez que um fio muito tênue podia separá-lo da meta comum à espécie, que é não sofrer.
    Pode-se indagar a respeito do medo. Se ele não tinha medo de estar ali suspenso? Mas é preciso não esquecer que ele estava habituado a ocupar posições delicadas no espaço.
    Outro, em seu lugar, talvez se magoasse com o pouco caso que a
    assistência dava à sua vida. Mas, como já vimos, ele também se dava pouca
    importância, como um coadjuvante muito secundário, quase imperceptível,
    de um espetáculo polifônico. Por isso, também jamais se cristalizara a
    hipótese de forçar o destino com uma arma na mão, assaltando pessoas físicas
    e jurídicas, embora passasse por sua cabeça, como na de todo mundo, de vez
    em quando... E nesse espetáculo havia os que se colocavam como espectadores
    nos mais baixos degraus da fama e ele mesmo, se fosse numa dessas manhãs em que flanava sem destino, teria se postado na platéia para matar o tempo, mas sem voz ativa, porque era um homem sóbrio em seus atos, modesto. Então não sentiu mágoa e até sabia, sem trazê-lo à consciência que em ajuntamentos semelhantes existiam aqueles, como certas mulheres (às vezes já com uma vela na bolsa), que passavam aflitamente a mão no rosto e diziam falas melodramáticas como “pelo amor de Deus, não”, ou algo do gênero, e também aqueles outros que chamavam a polícia e os bombeiros, sendo que um carro da primeira corporação já chegava neste momento.  Ele era um homem respeitador das leis e dos poderes e, em nome de tal respeito, medo até, levantou-se imediatamente para retornar à limpeza das vidraças, quando um silêncio de expectativa neutralizado por um clamor de incentivo veio lá de baixo, para logo depois se transformar numa vaia, quando perceberam que ele era apenas um homem trabalhando, ainda que em condições precárias que sugeriam risco, ação, emoção, coragem.
    E esta vaia, sim, foi recebida por ele com mágoa, porque os gritos
    anteriores tinham sido algo assim como o entusiasmo da arquibancada diante
    de um atleta e, de repente, era como se ele houvesse executado ajogada errada. Com o escovão e o pano nas mãos, e o balde a seus pés, ele virou-se novamente para a platéia e deu um passo miúdo adiante, para ouvir distintamente os gritos de “pula”, “pula”.
    O fato é que ele jamais estivera num palco, num pedestal, e isso afetara sua modéstia. Não é preciso conhecer a palavra pedestal para saber que as estátuas repousam sobre uma base. Como também não é preciso conhecer a palavra polifônico para ouvir as muitas vozes e o conjunto de sons da cidade.
    E haveria sempre alguém que pudesse narrar isso por ele, até que as condições
    socioeconômico-culturais da classe operária se transformassem no país e ela pudesse falar com a própria voz.
    Quando isso acontecera, por exemplo, na Inglaterra, dera origem a fenômenos inesperados como os Beatles e os angry young men, jovens
    zangados. Já na União Soviética ou em Cuba, o brilho de algumas vozes fora abafado em nome de prioridades econômicas indiscutíveis. Ele vira, na abertura dos Jogos Olímpicos de Moscou, a saúde e a beleza da juventude soviética. Como todo mundo, no Brasil, ele dera o seu jeito de comprar um aparelho de TV. Comprara de um rapaz vizinho, sem exigir nota fiscal ou indagar sobre a marca ou procedência. O rapaz era um jovem zangado brasileiro e assaltava pessoas físicas, preparando-se para encarar as jurídicas, do ramo bancário. Ambos não conheciam os Beatles.  As estátuas, ele conhecia bem, apesar de não ler as placas. Perambulava muito diante delas e intuía que eram erigidas (embora não utilizasse tal verbo, mais do estilo do chefe do Departamento de Pessoal da Panamericana) em homenagem a pessoas que teriam realizado feitos notáveis, tanto é que estavam ali em exibição pública, como exemplo moral.  Não era bem o caso dele, certo, mas ele também estava provando do poder sobre a massa, como alguns daqueles homens ilustres. E isso ampliava, de repente, de maneira literalmente vertiginosa, a sua consciência social.  Aquele pessoal lá embaixo, como ele próprio, a mulher e os filhos, não era gente bonita, bem alimentada e imbuída de elevados propósitos; pelo contrário, era preciso aplacá-los com sangue e circo. Então ele chegou a refletir - se se pode chamar assim o clarão de raiva que o atravessou - sobre métodos violentos de transformação da sociedade. Alguém mais cultivado poderia contrapropor métodos constitucionais de mudança. Mas isso poderia levar décadas ou um século, ou talvez não acontecesse nunca.
    E o caso dele era premente: a situação financeira de carência absoluta,
    agravada pelo fato de ter se destacado tanto nos últimos instantes na
    Panamericana, de forma incompatível com a política de pessoal da Companhia.
    E havia o fato principal de que ele tinha uma só vida para viver, apesar
    de, paradoxalmente, andar ventilando, nesses últimos momentos, como um
    exercício, a hipótese de livrar-se dela. Diante disso, a sociedade como um
    todo era uma abstração. Ele estava se tornando agora, sempre vertiginosamente,
    um individualista. Se tivesse uma arma na mão, talvez houvesse disparado a esmo. Ele não tinha tal arma e só poderia disparar contra si mesmo, em forma de uma tristeza pontiaguda.
    Em compensação isso ampliava sua consciência poética, talvez dando razão àqueles que vêem na arte uma redenção do sofrimento. Aproximava-se a hora do crepúsculo, uma hora bonita, ele também achava. Para realçar tal beleza na melancolia, havia a possibilidade desta tornar-se também a hora do seu crepúsculo, que ele podia fazer belo e significativo. Se pulasse, transformar-se-ia numa personagem de jornal, um mártir da crise econômica, merecendo mais do que um simples registro, porque teria conseguido transformar a avenida Rio Branco lá embaixo, assim batizada por causa de um barão (que ele desconhecia), num pandemônio, com o soar das sirenes e um carro do corpo de bombeiros que ocupara um bom trecho do asfalto, o Estado usufruindo da oportunidade de retribuir o dinheiro arrecadado dos contribuintes.
    Um cordão de isolamento já fora estendido para que ele não caísse em
    cima das pessoas e, sem sabê-lo, ele se avizinhava de um ideal romântico que
    é o de morrer jovem e no auge da fama. Só não era belo. Era um rapaz de
    vinte e cinco anos, embora não parecesse. Aos argumentos de praxe de que
    tudo isso de nada lhe serviria depois de morto, ele poderia contrapropor -
    se além de romântico fosse poeta ou filósofo - que estava gozando com a
    máxima intensidade os lances dramáticos que podiam anteceder a morte,
    como num duelo ao entardecer. A cidade era inquestionavelmente bela, com
    seus picos e montanhas, o oceano, algumas aves marinhas, outras não, um
    avião que pousava naquele instante, com seus passageiros que observavam a paisagem de um ângulo diverso do seu. É claro que não existe a beleza sem
    que a observe. Mas, por outro lado, não haveria tal intensidade na
    contemplação, no caso dele, não fosse certa iminência... Uma iminência que
    tornava
    mais perceptível do que nunca, aos seus ouvidos, a polifonia sinfônica das
    ruas, como se ele fosse um apreciador sofisticado de música aleatória, o que,
    quando nada, demonstrava que não é preciso estar a par de certas definições
    e correntes estéticas para usufruir dos efeitos e dos materiais que as compõem,
    que acabavam por se reunir numa espécie de zumbido cósmico que parecia nascer de dentro dele.
    Havia também qualquer coisa de existencialista nele, com esse negócio de viver intensamente um momento limite e dar-lhe um sentido, como alguma personagem de Jean-Paul Sartre, além de ter sido acometido, há pouco, de uma boa dose de náusea existencial em relação a si próprio e à massa humana. Por outro lado, mesmo em condições socioeconômicas mais favoráveis, haveria o absurdo da existência. Ele era um absurdo. Uma consciência largada no mundo, que podia morrer a qualquer instante e não era feliz.
    É claro que, do ponto de vista de uma abordagem psicanalítica, sua
    ânsia recém-aflorada de pular era passível de ser analisada sob outros ângulos,
    alguns menos, outros mais românticos ainda. O fato de sua força voltar-se contra ele próprio, num momento em que não podia dirigi-la para fora, era somente a parte mais óbvia da questão que, com um mínimo de paciência, poderia ser explicada a ele por algum psiquiatra do INPS, que a seguir o consideraria apto a retornar ao trabalho. Ele não era burro, apenas não crescera num ambiente propício a aprimorar sua educação. Quanto ao narcisismo, refletido no ato de pavonear-se no espelho da massa, ele poderia canalizá-lo para atividades socialmente mais ajustadas, como progredir no seu ramo de vidraças e assoalhos, até deixá-los tão impecavelmente limpos que lhe devolvessem uma imagem sem distorções e fantasias perniciosas. Ou, no caso de suas ambições ultrapassarem o âmbito do emprego para atingir o mundo dos espetáculos - como ocorria agora -, sempre restaria a possibilidade de buscar uma chance num programa de calouros da TV, ou no futebol, mas isso, no segundo caso, se não houvesse se passado em sua infância um acontecimento absolutamente traumático: ter sido expelido, aos empurrões, de um time de garotos, por deficiência técnica possivelmente decorrente de suas deficiências físicas, ainda que ele fosse escalado na ponta-esquerda, posição que no Brasil costuma tornar-se a mais próxima possível da reserva.
    Tanto é que se comentassem com ele que o Brasil, em toda a sua história esportiva, jamais tivera em suas seleções um só ponta-esquerda que fosse o astro do time, ele captaria numa fração de segundo a origem e o espírito da coisa, remetendo-a a seu próprio caso e isso, sem dúvida, seria plenamente um insight, que o faria rir numa descarga nervosa, talvez convencendo-o a aceitar melhor seus próprios limites, pois ele nem mesmo era canhoto e tornava-se extremamente difícil cruzar a bola com o pé trocado. E ainda lhe restaria, uma vez diluída uma prejudicial imagem idealizada, torcer e identificar-se com um time que lhe devolvesse, de vez em quando, a sua dedicação com um campeonato; afinal nem todos podem pisar o palco.
    Mais difícil - e romântico - embora não impossível, desde que se
    encontrassem as expressões adequadas, seria aprofundar com ele a coisa no
    sentido de entendê-la, a sua tentação repentina de pular, como um desejo
    de retorno aos braços e seios maternos e talvez até a uma vida uterina, ao
    indiferenciado que a todos iguala, não houvesse sido esta sobressaltada por
    tentativas de morte contra ele e ainda por cima com a utilização de métodos
    inadequados - talvez sentidos por ele como maremotos no líquido em que boiava -, embora, depois de ele ter vindo insistentemente à luz, fosse
    encarado, por seu raquitismo, como um castigo e uma dádiva, o que já o colocava no mundo desde o início como um paradoxo e diante de um conflito. Pois o mesmo fato que o levava a ser sacudido e surrado quando chorava durante as noites, por sentir um oco inexplicável nas entranhas, era razão para ser embalado e amamentado em plena via pública, sob marquises (!) dos edifícios, porque a mãe complementava o magro orçamento doméstico mendigando no centro da cidade, para onde ele era trazido num trem elétrico (!) vestindo seus piores farrapos, se é que os havia e, nesse ponto, como prova material de penúria para os pedestres, ele bem valia o seu peso em moedas.
    E se depois de um primeiro tratamento de choque, no referido INPS, ele fosse encaminhado a um profissional gabaritado, no ramo da mente, este talvez pudesse anotar em seu bloquinho, não como uma certeza - pois aprendera a desconfiar delas - mas como uma bela hipótese a ser investigada, o fato de ele ter escolhido (ou ter sido escolhido por ela, pouco importa, pois não existem coincidências, mas causalidades necessárias) uma profissão que o levaria sempre para bem próximo das marquises e que agora estivesse na iminência de jogar-se de uma delas para cair dentro do berço, que era a calçada. A fortificar tal dedução, havia o fato indiscutível de que ele trilhara literalmente esta via na vida, onde era sempre obrigado a pegar um trem elétrico para chegar ao local de trabalho que se confundia com o mítico ponto onde seria acalentado e daí, talvez, se pudesse explicar-lhe seu delírio ambulatório e até curá-lo dele, pois num dia chave, como o de hoje, o ter gasto o dinheiro da condução de volta com um café e principalmente açúcar (pois a doçura na boca era um fator que, além das calorias, tinha necessariamente de ser levado em consideração) podia não passar do que provavelmente era: um mero pretexto a acobertar coisas mais reconditamente recalcadas no inconsciente. E o final de todo este encadeamento era que ele gastara o dinheiro do ônibus, o veículo que o levaria de volta ao sofrimento do lar, e não o daquele trem (o seu trenzinho elétrico de infância) que o conduzia ao aconchego do seio materno. E o profissional sorriria de prazer diante de tal insight não do paciente, mas dele próprio - que poderia até ser levado a um congresso e publicado na revista da Sociedade, espicaçando os lacanianos, eis que tais associações não se teriam devido a nenhum troca-letras ou aliterações, mas a imagens semanticamente justas, verdadeiro embrião para uma monografia que poderia ser intitulada A psicanálise da classe operária e, desta vez, sem qualquer ironia, a Europa verdadeiramente se curvaria diante do Brasil.
    É certo que tal profissional, por sua integridade, somada a uma boa
    dose de esperteza, se anteciparia com um post-scriptum às possíveis
    desconfianças
    diante de tal modelo, criticando-o ele mesmo justamente por sua
    perfeição, como a de um círculo, não deixando brechas, mas redimindo-o
    com o argumento de que muito mais do que pela justeza científica de uma
    resposta, um modelo psicanalítico se validava pela maior ou menor
    possibilidade
    de um paciente ajustar-se dentro dele, como num pijama de molde
    adequado, e residiria aí, precisamente, a possibilidade de cura, se se pode
    falar em cura quando se trata de uma coisa volátil como a mente, que, como
    a alma, não ocupa propriamente um espaço. E, de qualquer modo, dentro
    das limitações de uma tentativa de conhecimento que não chega a ser uma
    ciência, mas um método, talvez propiciaria este modelo que o paciente
    pudesse voltar para casa, em vez de dissipar seu dinheiro na rua, e lá beijar
    a
    mulher no rosto como qualquer cidadão de classe média. Para então concluírem
    juntos, paciente e analista, que no princípio e fim de tudo está sempre o amor e, neste ponto, concordariam todos, freudianos, lacanianos e
    junguianos-bio-energéticos, que o que importava, no fundo, na relação analítica, era a cumplicidade afetiva, amorosa mesmo, entre analista e analisando, pena que tal tipo de cliente em potencial, este que estava suspenso por um fio entre vida e morte, na marquise, não pudesse pagar para ver isso de perto.  Então só lhe restava o amor de fato. O amor de uma mulher, por exemplo, que lhe estendesse a mão neste momento crucial. Não a mulher dele, evidentemente, pois a relação que se estabelecera entre ambos nos últimos tempos, depois dos desgastes da vida em comum, era aquela que pode estabelecer-se entre um pedaço de pau e um buraco, mais ou menos ajustados em suas dimensões, porém dissociados de uma configuração gestaltiana que os integrasse dentro de um todo que incluiria um aspecto de sublimação espiritual, aquilo que os seres humanos costumam denominar amor. Ou mesmo um desejo intenso pela carne alheia que fosse mais do que o apaziguar de uma coceira. Mas a natureza não queria nem saber das condições extrabiológicas: no fim de nove meses dava filho e ele já tinha três.  Boa parte daquela massa arfante que circulava pelas ruas lá embaixo era proveniente do encontro de corpos em tais circunstâncias de pobreza material e do espírito, então era natural que, em termos de qualidade, houvesse uma baixa progressiva.
    O amor que o poderia ter salvo seria, por exemplo, o de uma datilógrafa que às vezes ele via fazendo horas extras numa das firmas para as quais ele era designado para a limpeza. Era uma jovem bem proporcionalmente rechonchuda, que provavelmente se tornaria gorda, com o correr do tempo.
    Mas isso era um problema para depois, do qual ele não se ocupava em suas
    fantasias, pois estamos no terreno do presente imediatíssimo. Além de ele
    verdadeiramente admirar-se com suas formas e com o modo velocíssimo da
    moça bater à máquina sem olhar para as teclas, havia um detalhe que fornecia
    a ela uma aparência simultaneamente distinta e distante (porque ele conhecia
    bem o seu lugar no mundo): os óculos. Parecia-lhe incrível que uma mulher
    fosse ao mesmo tempo jovem e desejável e complementada por um par de
    óculos que fazia vir à mente dele professoras meigas que ele não tivera a
    oportunidade de conhecer. Eram os óculos um símbolo de inacessibilidade
    e cultura e as fantasias chegavam a ele primeiramente em forma de preliminares,
    como levá-la ao cinema, à Quinta da Boa Vista, até um dia pegar na mão dela, para só depois, muito aos poucos, ir pegando no resto. O momento em que ele a possuiria seria um acontecimento solene, quando deveria munir-se de toda a delicadeza e a última coisa a retirar do corpo dela, se ele efetivamente retirasse, seriam os óculos. Porque esses óculos, sem que ele o soubesse, eram o seu fetiche.
    Talvez ele se espantasse ao saber que também dentro dela se passavam
    devaneios, nos quais um homem sensível acabaria por descobrir a alma gentil
    que se abrigava naquele corpo curvado sobre a máquina e atrás daqueles
    óculos. Embora ela mantivesse relações esporádicas com um contador casado
    e com um jovem vizinho de bairro, que tinha um automóvel, ainda não se
    desfizera do seu sonho de casar-se com alguém que verdadeiramente precisasse
    dela, como algum jovem estudante de medicina que chegaria ao final do curso com todo o sacrifício, do qual ela compartilharia com alegre resignação.  E se ela conhecesse um homem assim quando ele se encontrasse à beira do desespero, seria capaz de entregar-se ainda mais vitalmente, gozando entre lágrimas da comovente alegria que é poder estender a mão àquele que se afoga, para trazê-lo não só à tona, mas aos píncaros do sublime.
    O problema é que para se ter direito ao amor, no desespero, é preciso
    carregar algum tipo reconhecível de beleza, nem que seja através de obras, como um Toulouse-Lautrec. Embora Van Gogh, apesar de tudo... Quanto
    a ele, o homem na marquise, fora destinado a essa solidão radical que é a
    feiúra na pobreza. Mas ele seria até capaz de reconhecer, modestamente, se
    tivesse tido a tal educação mais aprimorada, que Toulouse-Lautrec sofrera
    mais do que ele, porque provara daquele mundo onde as mulheres eram
    belas, e os homens, artistas tão sequiosos dessa beleza, que às vezes um deles,
    por carência dela, se mandava daquele mundo para outro melhor.  Então só lhe restava, de fato, o amor de Deus ou a Deus que, através de uma das suas personae cristãs, o Filho, podia ser visto concretamente de braços abertos dominando a cidade. Podia ser visto privilegiadamente dali de onde ele estava, o homem da marquise. Iluminava-se o Cristo durante as noites e apagava-se ao amanhecer; encobria-se de nuvens negras em dias de tormenta e era visto a brilhar novamente quando voltava a bonança. Mas nunca, desde a inauguração da estátua, em 1931 - incluindo a visita do Papa, em 1980 -, fora visto mexendo um só dos braços para apaziguar uma dessas tormentas, individuais ou coletivas, nem quando eram as águas das chuvas que, descendo do morro que sustentava a sua imagem, iam provocar a catástrofe lá embaixo, levando na enxurrada casas, animais e pessoas e induzindo estas pessoas a pensar em algum castigo que certamente teriam merecido. Não era então previsível que movesse o Cristo um dos dedos que fosse, pelo homem na marquise, ainda mais que, se se encontrava este em posição tão periclitante, era de posse de um livre-arbítrio muito mais acentuado do que normalmente dispunham as pessoas na sua posição, tomando-se esta no sentido mais amplo possível. Pois não só ele dominava as alturas, como fora parar ali por dever de ofício e não pelo desespero - a não ser o inerente ao próprio ofício - e podia descer no momento em que quisesse, inclusive pelo lado de dentro do prédio. E, se não o fazia, era pelo pecado do orgulho.
    Embora por várias vezes houvesse abandonado o Cristo por ídolos de periferia como orixás e exus, já ouvira falar, este homem, durante as catequeses de infância, em sua paróquia - depois das quais era servido um lanche-, que os pobres mereceriam um lugar de destaque no reino dos céus e que, por outro lado, os suicidas não teriam perdão. Para encontrar-se então com Deus, no seu caso particular, era preciso sobretudo ter paciência.  E o que o homem fez foi abrir os braços para o Cristo, movido um pouco por uma súplica vaga, porque ele não sabia como sair honrosamente daquela armadilha, e um pouco por exibicionismo ou espírito de imitação, que não raro são a gênese da loucura, quando um ser humano percebe que, se não podem certas realidades ser transformadas, pode-se simplesmente mudar a si mesmo, trocando-se um papel modesto por outro melhor, como o de Napoleão ou outro general, em casos extremos, ou de um simples guarda de trânsito, nos menos graves. Imitação que, naquele caso específico, fez sucesso, pois a massa vibrou lá embaixo, talvez pela popularidade do modelo, talvez por acreditar que a personagem que o encarnava finalmente iria voar.  Foi neste momento que se fez ouvir a voz. A voz trovejou não das alturas, mas da sala da firma de engenharia:
    - O senhor desça já daí porque está preso - disse um policial, empunhando seu revólver. Logo percebeu que incorrera numa impropriedade semântica que podia trazer graves conseqüências, se o homem descesse e, por isso, estendeu um dos braços dali do peitoril da janela para agarrá-lo.  Pela primeira vez, na vida, este outro homem era tratado de senhor; tratamento, porém, que adivinhava seria imediatamente abandonado uma vez nos braços truculentos da Lei. Então recuou na marquise até um limite tão preciso e precário que, fatalmente, o colocava sob a jurisdição do corpo de bombeiros.
    O representante mais categorizado desta corporação, que ali estava, fora submetido a um treinamento durante o qual se levara em conta, entre outras
    disciplinas, as humanidades. Fez um sinal para que o membro da outra corporação se recolhesse a um canto discreto e assumiu o comando das operações com um discurso para o qual se preparara desde o dia em que, assistindo a um filme pela TV, descobrira que a sua verdadeira vocação era ser bombeiro. Um discurso onde o formalismo era substituído, juntamente com as armas, pelo tratamento mais brasileiro-homem-cordial do “você .  - Rapaz - ele disse. - Pra tudo na vida há remédio e você ainda vai rir dos problemas que te levaram até aí em cima, seja lá o que for. Por que não chega mais perto pra gente conversar? Ou se quiser fala daí mesmo, que nós estamos aqui é pra te ajudar.
    Apesar das misturas de concordância e de uma certa armação na fala, sua voz alcançara justamente aquele tom de cumplicidade afetiva, amorosa mesmo, precioso para se estabelecer uma relação. E é preciso não esquecer que o homem não se instalara ali com a intenção de pular; apenas fora tentado, inadvertidamente, pela vertigem e poder das alturas. Virou-se então para o bombeiro, que já saltara para a marquise, sob aplausos do público volúvel, e sorriu encabuladamente, como que pedindo desculpas.  Poderia ter explicado, simplesmente, que estava limpando vidraças e que tudo não passava de um mal-entendido, era só ver o balde etc., e checar na Panamericana - Serviços Gerais.
    Mas a verdade é que haviam ocorrido em sua mente alguns fenômenos bastante complexos, que modificaram a sua visão de mundo e que ele gostaria de expor, inclusive a si mesmo, mas para os quais não encontrava palavras.
    - É como se fosse um outro, compreende? - ele disse ao bombeiro, que
    o abraçava sem encontrar resistência, para conduzi-lo à sala. - Alguém possível
    dentro de mim, que estivesse soprando pensamentos na minha cabeça.  Neste momento, ele deu um largo sorriso, porque essas eram justamente as tais palavras. Porém o treinamento do bombeiro não chegara a considerar certos aspectos mais recônditos, sutis e contraditórios da mente e, como um profissional objetivo dentro das limitações dos seus deveres, não teve dúvida em seu veredicto.
    - É louco - avisou lá para dentro, ao mesmo tempo que empurrava o homem para o interior da sala, onde foi imobilizado.  Ele fora traído, mas, por outro lado, o seu salvador - se podia chamá-lo assim - aplicara-lhe um rótulo novo que lhe oferecia também uma nova identidade, talvez explicando suas novas sensações, que agora ele preferia guardar para si mesmo.
    “É como se tudo não passasse de um sonho, inclusive eu e o bombeiro.” Um sentimento, aliás, sumamente agradável, porque o libertava de certas cadeias.
    Ele estava enganado, mas não muito longe da verdade, embora o estivesse da originalidade: ele não era um sonho, mas uma alegoria social.  Social, política, psicológica e o que mais se quiser. Aos que condenam tal procedimento metafórico, é preciso relembrar que a classe trabalhadora, principalmente o seu segmento a que chamam de lúmpen, ainda está longe do dia em que poderá falar, literariamente, com a própria voz. Então se pode escrever a respeito dela tanto isso quanto aquilo.
    Mas nesse ínterim chegava suado, gordo e ofegante ao recinto uma
    personagem bastante próxima da realidade: o chefe de pessoal da Panamericana
    - Serviços Gerais. Vinha imbuído de formalismo, dignidade e prerrogativas do seu cargo, além de premido pelo medo de perdê-lo, diante de uma publicidade que não era bem o que o departamento de Relações Públicas da firma tinha em mente. Com os pés bem fincados no chão, disse:
    - Você desonrou o uniforme. Pode trocar de roupa e me entregá-lo
    pessoalmente. O ato que acaba de cometer é falta grave, passível de justa
    causa. E portanto está demitido. Suas palavras judiciosas visavam, desta vez, muito mais do que impressionar
    estilisticamente a audiência, assegurar a todos que estava fazendo o melhor possível nas circunstâncias, uma vez que o seu olhar clínico para bêbados, vagabundos, ladrões e malucos falhara lamentavelmente naquele caso. Inadvertidamente, estava cometendo mais um erro: suas palavras foram registradas pela imprensa, um tanto frustrada até então com a negativa do homem da marquise em dar qualquer depoimento em que as suas motivações se mostrassem claras. E louco era uma palavra que os editores, a não ser os dos jornais populares, consideravam um tanto vaga.  E o executivo não apareceu bem na história, onde, ao contrário do que pensava, também não era sujeito, mas uma reles peça, primeiro passo numa derrocada que se iniciaria com a sua demissão e terminaria com o seu suicídio, quando, por um sentimento inato de justiça, viesse a aplicar em si próprio o mesmo código severo que costumava destinar aos subordinados. Mas isso já é outra história.
    Nesta, apenas os policiais ficaram impressionados. Embora também
    não encontrassem as palavras justas para dizê-lo, viram ali uma manifestação
    do poder temporal e também daquele outro, maior, que fora ofendido numa
    de suas principais personae. E, como punição exemplar aos desesperados, mais
    desespero.  o veterano de tantos incêndios e escombros de enchentes -, e disse que o rapaz só ia trocar de roupa no hospital psiquiátrico, para onde seria levado.  Suas palavras também foram registradas e, mais uma vez, com toda a justiça, a corporação apareceu bem diante da opinião pública, como um lampejo de esperança de que nem tudo estaria perdido.
    Quanto à personagem principal da história, o homem da marquise, ao saber do seu destino, em outras circunstâncias talvez se sentisse ferido em seu ponto mais vulnerável, o que o teria feito, quem sabe, aproveitando a vigilância afrouxada, pular enfim para a morte. Não por causa da perda do salário, propriamente, pois já se encontrava há muito a um pequeno passo do vazio econômico absoluto. Mas porque perceberia, com clareza, que a Panamericana tinha sido até então para ele não apenas um emprego, uma firma na qual trabalhava, mas um invólucro, materializado pelo uniforme, dentro do qual se enfiava - ele que se sentira, desde o berço, como uma espécie de coisa oca - e que, se não lhe fornecia uma identidade marcante, o tornava parte de uma equipe, como no futebol, permitindo que - contrariando o regulamento - passeasse entre os mendigos do Aterro sem sentir-se um deles, ainda que também não tivesse nem um puto no bolso.  O sujeito do corpo de bombeiros - que indiscutivelmente surgia diante dos seus olhos como a pessoa de maior autoridade moral, dentre todos, ali - falara numa troca de uniformes no hospital psiquiátrico, do mesmo modo que fizera, a propósito dele, sem titubear, um diagnóstico preciso: louco. Não havia então por que desconfiar e ele caminhava com uma satisfação até ansiosa para trocar de papel e de equipe.
    Na verdade, ele já se encontrava sob outra jurisdição. Não a dos dois
    homens de branco que chegaram para levá-lo numa ambulância, ele envergando
    o uniforme da Panamericana e tudo. A jurisdição sob a qual ele se
    encontrava era a do “outro”, aquele alguém possível que soprara pensamentos
    em sua cabeça, sobre a marquise. E ele previa, intuitivamente, que lá no
    hospital deveria haver um pátio onde, flanando à vontade debaixo das árvores
    ou sentado num banco, ele teria todo o tempo do mundo para encontrar e
    conhecer o tal “outro”, até que os dois se tornassem a mesma pessoa e falassem
    com a mesma voz.