para Zêlia e Ariano Suassuna
A primeira coisa que dele teve foi a ameaça de sua
morte. Uma ameaça
através de seus guinchos, gaitadas, pios, rugidos, uivos,
assobios, risadas, toda a algaravia por ele usada para a sedução. Era possível
um ser tão vital com esta obsessão pela morte?
Ela acha que o amou desde esse primeiro momento, embora
não aceitando esse amor, esse seu sim à vida ao saber-lhe a ex-futura morte, e esse
se dar tanto, o se dar todo, até demais. Era possível, tão exclusivista, amar um
ser se dando assim, tão selvagem, tão espontâneo, se dando a todos: um ciúme a
crucificar. Imaginou ser ele o mar para não sofrer. Por ser o mar de todos e,
assim, que outro jeito teria senão aceitar um tal requintado primitivo.
Um amor sem quase nada de particular, forte e violento mas
quase
impessoal, algo de amplo, sem espaço ou tempo, como por um
mito ou coisa
arquetípica. Amor seria isso? Então era isso amar? Amor
não era. Era é paixão. A paixão não lhe era estranha, antes velha companheira.
Mas a paixão com tal violência a assustava um pouco, como antes o medo da vida,
ainda que não mais agora. E a paixão era um tanto trágica. Assim a aceitava:
com esforço, com dor, mas também com gozo.
Caça ou caçador, quem era? Aparentemente era ele o
caçador, com tantos meneios mais a sedução, a estranha tensão de não poder
passar tempo sem tocá-la. Era uma impossibilidade não tocá-la - dizia ele -,
saber-lhe levemente a pele, a quentura e o morno da carne pressionada para mais
tarde conhecer coisas mais rudes e tensas. Era ele o caçador. Mas quem lançou senão
ela o que deflagrou tudo, uma distraída provocação sensual sobre as coxas de
Pelé? Nem ela soube se teria sido intencional, mas falou assim, de como eram
belas as coxas de Pelé, o que o intrigou. Como tão grande timidez deixava
escapar tal insolência?
Não se teria sabido o esplêndido animal que era à falta
deste esplêndido
animal que via agora e que, à primeira vista, a ameaçava e
se ameaçava para
ela com a proximidade passada de sua morte. E essa morte não
vista, apenas
entrevista, já passada, era a grande ameaça para que ela
conhecesse sua real vida e quem ela realmente era a partir do conhecimento
dessa fera. King Kong - ela pensou -, vou chamá-lo assim, assim vou chamar a
fera que me dará vida, como uma nova mãe-terra, a força animal até então desconhecida,
a força primeira que, tomada nos dentes como o seu bocado primevo, a faria
florescer e aceitar a vida com seus jogos, seus acertos e armadilhas. O perigo?
É, era o perigo. Mas também a vida, a vida com suas espadas, seu cheiro acre e
álacre, seu bafo feroz e comovente. De
uma vez que lhe dissera o nome que secretamente lhe dava, houve o espanto: mas
não combina com você, que é minha Mona Lisa. Ela sorriu sem dizer nada,
pensando: mas é de você que falo. Como fazê-lo entender? E era preciso? Uma fera é uma fera - e pronto.
Nada de fazê-lo entender o que ele é. King Kong. Claro que era uma insolência.
Só que agora fazia parte do jogo. Era tão fácil perceber. Não tinha ele só a
maciez da polpa, também possuía as unhas. Mais que isso: as garras. A boca não
era só um fruto do mato, toda polpa, úmida e abrangente, toda língua. Era
também dentes, as presas afiadas, esplêndidas mandíbulas.
Um ser amorável essa fera, mas também de aguda crueldade e
um tanto sádico, seu corpo marcado a fogo (o da paixão) como as reses que têm
dono: dois K ardiam-lhe na anca. Poderia ela amar uma tal mistura de prazer e
de perigo? Mas era já impossível retroceder. Seduzida pela fera, já não podia se
reconquistar a si mesma. Agora que sabia seu corpo através do outro, seu espelho.
Era a guerra, a paz dos abismos e da beira do desfiladeiro dos que nascem do
furor da paixão, do lamber de sua língua rubra. King Kong: o êxtase e o horror.
Rodeado de mandacarus, de cactos.
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