sábado, 30 de junho de 2012

Passeio noturno Rubem Fonseca


- Parte 1

Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos,
pesquisas, propostas, contratos. Minha mulher, jogando paciência na
cama, um copo de uísque na mesa de cabeceira, disse, sem tirar os olhos das
cartas, você está com um ar cansado. Os sons da casa: minha filha no quarto
dela treinando impostação de voz, a música quadrifônica do quarto do meu
filho. Você não vai largar essa mala?, perguntou minha mulher, tira essa
roupa, bebe um uisquinho, você precisa aprender a relaxar.
Fui para a biblioteca, o lugar da casa onde gostava de ficar isolado e como
sempre não fiz nada. Abri o volume de pesquisas sobre a mesa, não via as letras
e nÚmeros, eu esperava apenas. Você não pára de trabalhar, aposto que os teus
sócioS não trabalham nem a metade e ganham a mesma coisa, entrou a minha
mulher na sala com o copo na mão, já posso mandar servir o jantar?
A copeira servia à francesa, meus filhos tinham crescido, eu e a minha
mulher estávamos gordos. É aquele vinho que você gosta, ela estalou a língua
com prazer. Meu filho me pediu dinheiro quando estávamos no cafezinho,
minha filha me pediu dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada pediu, nós tínhamos conta bancária conjunta.
Vamos dar uma volta de carro?, convidei. Eu sabia que ela não ia, era
hora da novela. Não sei que graça você acha em passear de carro todas as
noites, também aquele carro custou uma fortuna, tem que ser usado, eu é
que cada vez me apego menos aos bens materiais, minha mulher respondeu.
Os carros dos meninos bloqueavam a porta da garagem, impedindo
que eu tirasse o meu. Tirei os carros dos dois, botei na rua, tirei o meu,
botei
na rua, coloquei os dois carros novamente na garagem, fechei a porta, essas
manobras todas me deixaram levemente irritado, mas ao ver os pára-choques
salientes do meu carro, o reforço especial duplo de aço cromado, senti o
coração bater apressado de euforia. Enfiei a chave na ignição, era um motor
poderoso que gerava a sua força em silêncio, escondido no capô aerodinâmico.
Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta,
nesta cidade que tem mais gente do que moscas. Na avenida Brasil, ali não
podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal iluminada, cheia de
árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente não fazia
grande diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar
tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi
mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser
mais fácil. Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de
papel ordinário, coisas de padaria ou de quitanda, estava de saia e blusa,
andava depressa, havia árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um
interessante problema a exigir uma grande dose de perícia. Apaguei as luzes
do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu
o som da borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima
dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda,
um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões, dei
uma guinada rápida para a esquerda, passei como um foguete rente a uma
das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor
bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos. Ainda deu
para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido
de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio.
Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de leve
pelos pára-lamas, os pára-choques sem marca. Poucas pessoas, no mundo
inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas.
A família estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora está mais
calmo?, perguntou minha mulher, deitada no sofá, olhando fixamente o
vídeo. Vou dormir, boa noite para todos, respondi, amanhã vou ter um dia
terrível na companhia.
Passeio noturno - Parte II 
 Eu ia para casa quando um carro encostou no meu, buzinando insistentemente.  Uma mulher dirigia, abaixei os vidros do carro para entender o que ela dizia.
Uma lufada de ar quente entrou com o som da voz dela:
Não está mais conhecendo os outros?
Eu nunca tinha visto aquela mulher. Sorri polidamente. Outros carros
buzinaram atrás dos nossos. A avenida Atlântica, às sete horas da noite, é
muito movimentada.
A mulher, movendo-se no banco do seu carro, colocou o braço direito
para fora e disse, olha um presentinho para você.
Estiquei meu braço e ela colocou um papel na minha mão. Depois
arrancou com o carro, dando uma gargalhada. Guardei o papel no bolso. Chegando em casa, fui ver o que estava
escrito. Ângela, 287-3594.
À noite, saí, como sempre faço.
No dia seguinte telefonei. Uma mulher atendeu. Perguntei se Ângela
estava. Não estava. Havia ido à aula. Pela voz, via-se que devia ser a
empregada. Perguntei se Ângela era estudante. Ela é artista, respondeu a
mulher.
Liguei mais tarde. Ângela atendeu.
Sou aquele cara do Jaguar preto, eu disse.
Você sabe que eu não consegui identificar o seu carro?
Apanho você às nove horas para jantarmos, eu disse.
Espera aí, calma. O que foi que você pensou de mim?
Nada.
Eu laço você na rua e você não pensou nada?
Não. Qual é o seu endereço?
Ela morava na Lagoa, na curva do Cantagalo. Um bom lugar.
Estava na porta me esperando.
Perguntei onde queria jantar. Ângela respondeu que em qualquer
restaurante, desde que fosse fino. Ela estava muito diferente. Usava uma
maquiagem pesada, que tornava o seu rosto mais experiente, menos humano.
Quando telefonei da primeira vez disseram que você tinha ido à aula.
Aula de quê?, eu disse.
Impostação de voz.
Tenho uma filha que também estuda impostação de voz. Você é atriz,
não é?
Sou. De cinema.
Eu gosto muito de cinema. Quais foram os filmes que você fez?
Só fiz um, que está agora em fase de montagem. O nome é meio bobo,
As virgens desvairadas, não é um filme muito bom, mas estou começando,
posso esperar, tenho só vinte anos. Na semi-escuridão do carro ela parecia
ter vinte e cinco.
Parei o carro na Bartolomeu Mitre e fomos andando a pé na direção
do restaurante Mário, na rua Ataulfo de Paiva.
Fica muito cheio em frente ao restaurante, eu disse.
O porteiro guarda o carro, você não sabia?, ela disse.
Sei até demais. Uma vez ele amassou o meu.
Quando entramos, Ângela lançou um olhar desdenhoso sobre as
pessoas que estavam no restaurante. Eu nunca havia ido àquele lugar.
Procurei ver algum conhecido. Era cedo e havia poucas pessoas. Numa mesa
um homem de meia-idade com um rapaz e uma moça. Apenas três outras
mesas estavam ocupadas, com casais entretidos em suas conversas. Ninguém
me conhecia.
Ângela pediu um martíni.
Você não bebe?, Ângela perguntou.
As vezes.
Agora diga, falando sério, você não pensou nada mesmo, quando eu te
passei o bilhete?
Não. Mas se você quer, eu penso agora, eu disse.
Pensa, Ângela disse.
Existem duas hipóteses. A primeira é que você me viu no carro e se
interessou pelo meu perfil. Você é uma mulher agressiva, impulsiva e decidiu
me conhecer. Uma coisa instintiva. Apanhou um pedaço de papel arrancado
de um caderno e escreveu rapidamente o nome e o telefone. Aliás quase não
deu para eu decifrar o nome que você escreveu.
E a segunda hipótese?
Que você é uma puta e sai com uma bolsa cheia de pedaços de papel
escritos com o seu nome e o telefone. Cada vez que você encontra um sujeito num carro grande, com cara de rico e idiota, você dá o número para ele. Para
cada vinte papelinhos distribuídos, uns dez telefonam para você.
E qual a hipótese que você escolhe?, Ângela disse.
A segunda. Que você é uma puta, eu disse.
Ângela ficou bebendo o martíni como se não tivesse ouvido o que eu
havia dito. Bebi minha água mineral. Ela olhou para mim, querendo
demonstrar sua superioridade, levantando a sobrancelha - era má atriz,
via-se que estava perturbada - e disse: você mesmo reconheceu que era um
bilhete escrito às pressas dentro do carro, quase ilegível.
Uma puta inteligente prepararia todos os bilhetinhos em casa, dessa
maneira, antes de sair, para enganar os seus fregueses, eu disse.
E se eu jurasse a você que a primeira hipótese é a verdadeira. Você
acreditaria?
Não. Ou melhor, não me interessa, eu disse.
Como que não interessa?
Ela estava intrigada e não sabia o que fazer. Queria que eu dissesse algo
que a ajudasse a tomar uma decisão.
Simplesmente não interessa. Vamos jantar, eu disse.
Com um gesto chamei o maitre. Escolhemos a comida.
Ângela tomou mais dois martínis.
Nunca fui tão humilhada em minha vida. A voz de Ângela soava
ligeiramente pastosa.
Eu se fosse você não bebia mais, para poder ficar em condições de fugir
de mim, na hora em que for preciso, eu disse.
Eu não quero fugir de você, disse Ângela esvaziando de um gole o que
restava na taça. Quero outro.
Aquela situação, eu e ela dentro do restaurante, me aborrecia. Depois
ia ser bom. Mas conversar com Ângela não significava mais nada para mim,
naquele momento interlocutório.
O que é que você faz?
Controlo a distribuição de tóxicos na zona sul, eu disse.
Isso é verdade?
Você não viu o meu carro?
Você pode ser um industrial.
Escolhe a sua hipótese. Eu escolhi a minha, eu disse.
Industrial.
Errou. Traficante. E não estou gostando desse facho de luz sobre a
minha cabeça. Me lembra as vezes em que fui preso.
Não acredito numa só palavra do que você diz.
Foi a minha vez de fazer uma pausa.
Você tem razão. É tudo mentira. Olha bem para o meu rosto. Vê se
você consegue descobrir alguma coisa, eu disse.
Ângela tocou de leve no meu queixo, puxando meu rosto para o raio
de luz que descia do teto e me olhou intensamente.
Não vejo nada. Teu rosto parece o retrato de alguém fazendo uma pose,
um retrato antigo, de um desconhecido, disse Ângela.
Ela também parecia o retrato antigo de um desconhecido.
Olhei o relógio.
Vamos embora?, eu disse.
Entramos no carro.
Às vezes a gente pensa que uma coisa vai dar certo e dá errado, disse
Ângela.
O azar de um é a sorte do outro, eu disse.
A lua punha na lagoa uma esteira prateada que acompanhava o carro.
Quando eu era menino e viajava de noite a lua sempre me acompanhava,
varando as nuvens, por mais que o carro corresse.
Vou deixar você um pouco antes da sua casa, eu disse. Por quê?
Sou casado. O irmão da minha mulher mora no teu edifício.
Não é aquele que fica na curva? Não gostaria que ele me visse. Ele
conhece o meu carro. Não há outro igual no Rio.
A gente não vai se ver mais?, Ângela perguntou.
Acho difícil.
Todos os homens se apaixonam por mim.
Acredito.
E você não é lá essas grandes coisas. O teu carro é melhor do que você,
disse Ângela.
Um completa o outro, eu disse.
Ela saltou. Foi andando pela calçada, lentamente, fácil demais, e ainda
por cima mulher, mas eu tinha que ir logo para casa, já estava ficando tarde.
Apaguei as luzes e acelerei o carro. Tinha que bater e passar por cima.
Não podia correr o risco de deixá-la viva. Ela sabia muita coisa a meu respeito,
era a única pessoa que havia visto o meu rosto, entre todas as outras. E
conhecia também o meu carro. Mas qual era o problema? Ninguém havia
escapado.
Bati em Ângela com o lado esquerdo do pára-lama, jogando o seu corpo
um pouco adiante, e passei, primeiro com a roda da frente - e senti o som
surdo da frágil estrutura do corpo se esmigalhando - e logo atropelei com
a roda traseira, um golpe de misericórdia, pois ela já estava liquidada, apenas
talvez ainda sentisse um distante resto de dor e perplexidade.
Quando cheguei em casa minha mulher estava vendo televisão, um
filme colorido, dublado.
Hoje você demorou mais. Estava muito nervoso?, ela disse.
Estava. Mas já passou. Agora vou dormir. Amanhã vou ter um dia
terrível na companhia. 

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