quarta-feira, 6 de junho de 2012
BALEIA – Graciliano Ramos
A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as
costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de
moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.
Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no
pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se
nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as
orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de roscas, semelhante a
uma cauda de cascavel.
Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o
sacatrapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito.
Sinhá Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que adivinhavam desgraça
e não se cansavam de repetir a mesma pergunta:
- Vão bulir com a Baleia?
Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano afligiam-nos, davam-lhes a suspeita
de que Baleia corria perigo.
Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se
diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o
chiqueiro das cabras.
Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas Sinhá Vitória levou-os para a cama de varas,
deitou-os e esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos: prendeu a cabeça do mais velho entre as coxas
e espalmou as mãos nas orelhas do segundo. Como os pequenos resistissem, aperreou-se e tratou de
subjugá-los, resmungando com energia.
Fia também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de Fabiano era
necessária e justa. Pobre da Baleia.
Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as pancadas surdas da vareta
na bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia.
Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como Sinhá Vitória tinha relaxado os músculos,
deixou escapar o mais taludo e soltou uma praga:
- Capeta excomungado.
Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou
um cocorote ao crânio enrolado na coberta vermelha e na saia de ramagens.
Pouco a pouco a cólera diminuiu, e Sinhá Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da cadela
achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão. Inconveniência deixar cachorro
doido solto em casa. Mas compreendia que estava sendo severa demais, achava difícil Baleia
endoidecer e lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a
execução era indispensável.
Nesse momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com os dedos. Sinhá Vitória encolheu
o pescoço e tentou encostar os ombros às orelhas. Como isso era impossível, levantou os braços
e, sem largar o filho, conseguiu ocultar um pedaço da cabeça.
Fabiano percorreu o alpendre, olhando a baraúna e as porteiras, açulando um cão invisível contra
animais invisíveis:
- Ecô! ecô!
Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da cozinha. Examinou o
terreiro, viu Baleia coçando-se a esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao
rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar
no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com
esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no
mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não
apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a
pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de
Baleia, que se pôs a latir desesperadamente.
Ouvindo o tiro e os latidos, Sinhá Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na cama,
chorando alto. Fabiano recolheu-se.
E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente
aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo
em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das
cabras.
Demorou-se aí um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.
Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como
gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e
esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.
Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de
espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava,
tinha folhas secas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros.
Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as
pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-se
a custo, ralando as patas, cravando as unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal
esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas.
Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um
nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latia:
uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tornavam-se quase imperceptíveis.
Como o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e escondeu-se numa nesga de
sombra que ladeava a pedra.
Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava-se.
Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e havia nele
partículas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito. Arregaçou o
focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a ladeira e perseguir os preás, que
pulavam e corriam em liberdade.
Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não
experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava: certamente os preás tinham
fugido.
Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos
meio vidrados, com um objeto esquisito na mão.
Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas
desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras
pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto
dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para
juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.
O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os dentes, espiou o
inimigo por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois sossegou. Fabiano e a
coisa perigosa tinham-se sumido.
Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera.
Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela
vizinhança.
Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-
se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a
ausência deles.
Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a
impotência em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades. Uma angústia
apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana
deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na
esteira, por baixo do caritó onde Sinhá Vitória guardava o cachimbo.
Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal
de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de
varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava,
emanações familiares revelavam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha
despovoado.
Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e
insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto, e a
viagem difícil do barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu espírito.
Provavelmente estava na cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar,
Sinhá Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha o chão
queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a
terra se amaciava. E, findos os cochilos, numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro de
preás invadia a cozinha.
A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para trás era tudo
insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru
penetravam na carne meio comida pela doença.
Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente Sinhá Vitória
tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.
Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano,
um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num
chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes. FONTE:http://mscamp.wordpress.com/2009/02/17/baleia-graciliano-ramos/
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