terça-feira, 5 de junho de 2012
DOIS CORPOS QUE CAEM – João Silvério Trevisan
Por simples acaso, dois desconhecidos encontraram-se despencando juntos do alto do Edifício
Itália, no centro de São Paulo.
- Oi – disse o primeiro, no alvoroçado início da queda. – Eu me chamo João. E você?
- Antônio – gritou o segundo, perfurando furiosamente o espaço.
E, só pra matar o tempo do mergulho, começaram a conversar.
- O que você faz aqui? – perguntou Antônio.
- Estou me matando – respondeu João. – E você?
- Que coincidência! Eu também. Espero que desta vez dê certo, porque é minha décima tentativa.
anos venho tentando. Mas tem sempre um amigo, um desconhecido e até bombeiro que impede. Você
afinal está se matando por quê?
- Por amor – respondeu João, sentindo o vento frio no rosto. – Eu, que amava tanto, fui trocado
por um homem de olhos azuis. Infelizmente só tenho estes corriqueiros olhos castanhos…
- E não lhe parece insensato destruir a vida por algo tão efêmero como o amor? – ponderou
Antônio, sentindo a zoada que o acompanhava à morte.
- Justamente. Trata-se de uma vingança da insensatez contra a lógica
- gritou João num tom quase triunfante. – Em geral é a vida que destrói o amor. Desta vez,
decidi que o amor acertaria contas com a vida!
- Poxa – exclamou Antônio – você fez do amor uma panacéia!
- Antes fosse – replicou João, com um suspiro. – Duvidoso como é, o amor me provocou dores
horríveis. Nunca se sabe se o que chamamos amor é desamparo, solidão doentia ou desejo
incontrolável de dominação. O que na verdade me seduz é que o amor destrói certezas com a mesma
incomparável transparência com que o caos significante enfrenta a insignificância
da ordem. Não, o amor não é solução para a vida. Mas é culminância. Morrer por ele me trouxe
paz.
Ante o vertiginoso discurso, ambos tentaram sorrir contra a gravidade.
- E você, como se sente? – perguntou João a Antônio.
- Oh, agora estou plenamente satisfeito.
- Então por que busca a morte?
- Bom – respondeu Antônio – me assustou descobrir um fiasco primordial: que a razão tem demônios
que a própria razão desconhece. Daí, preferi mergulhar de vez no mistério.
- Sim, da razão conheço demasiados horrores. Mas que mistério é esse tão importante a ponto de
merecer sua vida?
- Não sei – respondeu Antônio. – Mistério é mistério.
- Mas morto você não desvendará o mistério! – protestou João.
- Por isso mesmo. O fundamental no mistério é aguçar contradições, e não desvendar. Matar-me,
por exemplo, é bom na medida que me torna parte do enigma e, de certo modo, o agudiza. Tem a ver
com a fé, que gera energias para a vida. Ou para a história, quem sabe…
- Taí um negócio que perdi: a fé. Deus para mim… – e João engasgou.
- Ora – revidou Antônio vivamente. – A fé nada tem a ver com Deus, que se reduziu a uma pobre
estrela anã de energias tão concentradas que já nem sai do lugar. Deus desistiu de entender os
homems, e virou também indagador. Sem Deus nem Razão, a única fé possível é mergulhar neste
abismo do mistério total.
- Mas para isso é preciso ao menos saber onde está o mistério – insistiu João com os cabelos
drapejando ao vento.
- Ué, o mistério está em mim, por exemplo, que me mato para coincidir comigo mesmo. Mas há
mistério também em você: seu morrer de amor é o mais impossível ato de fé. Graças a ele, você
participa do mistério. Porque se apaixonou pelos abismos. João olhou com olhos estatelados, ao
compreender. E Antônio, que já faiscava na semi-realidade da vertigem, gritou com todas as
forças:
- Há sobretudo este mistério maior de estarmos, na mesma hora e local, cometendo o mesmo gesto
absurdo e despencando para a mesma incerteza, por puro acaso. Além de cúmplices, a intensidade
deste mergulho nos tornou visionários. Você não vê diante de si o desconhecido? É que já estamos
perfurando a treva.
E como tudo de fato reluzia, João também ergueu a voz:
- Sim, sim. É espantoso o brilho do absurdo.
- E agora – disse Antônio bem diante do rosto de João – falemos um pouco da permanência. Você
gosta dos meus olhos azuis?
Foi quando os dois corpos se estatelaram na Avenida São Luiz. FONTE:http://mscamp.wordpress.com/2008/11/27/dois-corpos-que-caem-joao-silverio-trevisan/
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