Você sempre pergunta pelas novidades daqui deste sertão, e
finalmente
posso lhe contar uma importante. Fique o compadre sabendo
que agora
temos aqui uma máquina imponente, que está entusiasmando
todo o
mundo. Desde que ela chegou - não me lembro quando, não sou
muito
bom em lembrar datas - quase não temos falado em outra
coisa; e da
maneira que o povo aqui se apaixona até pelos assuntos mais
infantis, é de
admirar que ninguém tenha brigado ainda por causa dela, a
não ser os políticos. A máquina chegou uma tarde, quando as famílias estavam
jantando ou acabando de jantar, e foi descarregada na frente da Prefeitura. Com
os gritos dos choferes e seus ajudantes (a máquina veio em dois ou três
caminhões) muita gente cancelou a sobremesa ou o café e foi ver que algazarra
era aquela.
Como geralmente acontece nessas ocasiões, os homens
estavam mal-humorados e
não quiseram dar explicações, esbarravam propositalmente
nos curiosos, pisavam-lhes os pés e não pediam desculpa, jogavam pontas de cordas
sujas de graxa por cima deles, quem não quisesse se sujar ou se machucar que
saísse do caminho.
Descarregadas as várias partes da máquina, foram elas
cobertas com encerados e os homens entraram num botequim do largo para comer e
beber. Muita gente se amontoou na porta
mas ninguém teve coragem de se aproximar dos estranhos porque um deles,
percebendo essa intenção nos curiosos, de vez em quando enchia a boca de
cerveja e esguichava na direção da porta. Atribuímos essa esquiva ao cansaço e
à fome deles e deixamos as tentativas de aproximação para o dia seguinte; mas
quando os procuramos de manhã cedo na pensão, soubemos que eles tinham montado
mais ou menos a máquina durante a noite e viajado de madrugada. A máquina ficou ao relento, sem que ninguém
soubesse quem a encomendou nem para que servia. Ë claro que cada qual dava o
seu palpite, e cada palpite era tão bom quanto outro.
As crianças, que não são de respeitar mistério, como você
sabe, trataram de aproveitar a novidade. Sem pedir licença a ninguém (e a quem
iam pedir?), retiraram a lona e foram subindo em bando pela máquina acima - até
hoje ainda sobem, brincam de esconder entre os cilindros e colunas,
embaraçam-se nos dentes das engrenagens e fazem um berreiro dos diabos até que
apareça alguém para soltá-las; não adiantam ralhos, castigos, pancadas; as
crianças simplesmente se apaixonaram pela tal máquina. Contrariando a opinião de certas pessoas que
não quiseram se entusiasmar, e garantiram que em poucos dias a novidade
passaria e a ferrugem tomaria conta do metal, o interesse do povo ainda não
diminuiu. Ninguém passa pelo largo sem ainda parar diante da máquina, e de cada
vez há um detalhe novo a notar. Até as velhinhas de igreja, que passam de
madrugada e de noitinha, tossindo e rezando, viram o rosto para o lado da
máquina e fazem uma curvatura discreta, só faltam se benzer. Homens
abrutalhados, como aquele Clodoaldo seu conhecido, que se exibe derrubando boi pelos
chifres no pátio do mercado, tratam a máquina com respeito; se um ou outro agarra
uma alavanca e sacode com força, ou larga um pontapé numa das colunas, vê-se
logo que são bravatas feitas por honra da firma, para manter fama de corajoso.
Ninguém sabe mesmo quem encomendou a máquina. O prefeito
jura que não foi ele, e diz que consultou o arquivo e nele não encontrou nenhum
documento autorizando a transação. Mesmo assim não quis lavar as mãos, e de
certa forma encampou a compra quando designou um funcionário para zelar pela
máquina.
Devemos reconhecer - aliás todos reconhecem - que esse
funcionário tem dado
boa conta do recado. A qualquer hora do dia, e às vezes
também
de noite, podemos vê-lo trepado lá por cima espanando cada
vão, cada
engrenagem, desaparecendo aqui para reaparecer ali,
assoviando ou cantando,
ativo e incansável. Duas vezes por semana ele aplica caol
nas partes de metal dourado, esfrega, sua, descansa, esfrega de novo - e a
máquina fica faiscando como jóia.
Estamos tão habituados com a presença da máquina ali no
largo, que
se um dia ela desabasse, ou se alguém de outra cidade viesse
buscá-la,
provando com documentos que tinha direito, eu nem sei o que
aconteceria,
nem quero pensar. Ela é o nosso orgulho, e não pense que
exagero. Ainda não sabemos para que ela serve, mas isso já não tem maior
importância. Fique sabendo que temos recebido delegações de outras cidades,
do estado e de fora, que vêm aqui para ver se conseguem comprá-la. Chegam como
quem não quer nada, visitam o prefeito, elogiam a cidade, rodeiam, negaceiam, abrem
o jogo: por quanto cederíamos a máquina. Felizmente o prefeito é de confiança e
é esperto, não cai na conversa macia. Em
todas as datas cívicas a máquina é agora uma parte importante das festividades.
Você se lembra que antigamente os feriados eram comemorados no coreto ou no
campo de futebol, mas hoje tudo se passa ao pé da máquina. Em tempo de eleição todos os candidatos querem
fazer seus comícios à sombra dela, e como isso não é possível, alguém tem de
sobrar, nem todos se conformam e sempre surgem conflitos. Felizmente a máquina
ainda não foi danificada nesses esparramos, e espero que não seja. A única pessoa que ainda não rendeu homenagem
à máquina é o vigário, mas você sabe como ele é ranzinza, e hoje mais ainda,
com a idade. Em todo caso, ainda não
tentou nada contra ela, e ai dele. Enquanto ficar nas censuras veladas, vamos
tolerando; é um direito que ele tem. Sei que ele andou falando em castigo, mas
ninguém se impressionou.
Até agora o único acidente de certa gravidade que tivemos
foi quando
um caixeiro da loja do velho Adudes (aquele velhinho
espigado que passa
brilhantina no bigode, se lembra?) prendeu a perna numa
engrenagem da
máquina, isso por culpa dele mesmo. O rapaz andou bebendo em
uma
serenata, e em vez de ir para casa achou de dormir em cima
da máquina. Não
se sabe como, ele subiu à plataforma mais alta, de madrugada
rolou de lá,
caiu em cima de uma engrenagem e com o peso acionou as
rodas. Os gritos
acordaram a cidade, correu gente para verificar a causa, foi
preciso arranjar
uns barrotes e labancas para desandar as rodas que estavam
mordendo a perna
do rapaz. Também dessa vez a máquina nada sofreu,
felizmente. Sem a perna e sem o emprego, o imprudente rapaz ajuda na
conservação da máquina, cuidando das partes mais baixas.
Já existe aqui um movimento para declarar a máquina
monumento municipal - por enquanto. O vigário, como sempre, está contra; quer
saber a que seria dedicado o monumento. Você já viu que homem mais azedo? Dizem que a máquina já tem feito até milagre,
mas isso - aqui para nós - eu acho que é exagero de gente supersticiosa, e
prefiro não ficar falando no assunto. Eu - e creio que também a grande maioria
dos munícipes - não espero dela nada em particular; para mim basta que ela fique
onde está, nos alegrando, nos inspirando, nos consolando.
O meu receio é que, quando menos esperarmos, desembarque
aqui um
moço de fora, desses despachados, que entendem de tudo,
olhe a máquina por
fora, por dentro, pense um pouco e comece a explicar a
finalidade dela, e para
mostrar que é habilidoso (eles são sempre muito habilidosos)
peça na garagem
um jogo de ferramentas, e sem ligar a nossos protestos se
meta por baixo da
máquina e desande a apertar, martelar, engatar, e a
máquina comece a trabalhar.
Se isso acontecer, estará quebrado o encanto e não
existirá mais máquina.
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