domingo, 1 de julho de 2012

Menina Ivan Ângelo



“Oh, ela sabia cada vez mais.”
Sentar-se, concentrada, contar até um número, por exemplo dez, ou doze,
e esperar agudamente um acontecimento importante, era seu exercício
mais impreciso, mais despido de maldade, porque ela não escolhia o que ia
acontecer, só fazia acontecer.
Havia outros, menos intensos: gritar “aaaa” de olhos fechados e,
abrindo-os, esperar que tudo houvesse desaparecido; colocar a mão molhada
na testa e acompanhar aquele sangue mais frio passeando no seu corpo;
imóvel e muda, obrigar a fruteira de cristal brilhante a estilhaçar-se no chão
com a força do pensamento; passar sem comer um dia inteiro para preocupar
a mãe e ouvir deliciada: “Ana Lúcia, você me mata!”
Entretanto, era o esperar que algo importante acontecesse quando
contasse até doze ou dez que lhe dava aquele segundo de vida intenso do qual
ela saía sempre um pouco mais velha, e apressava a sua respiração, como um
cansaço ou um beijo de Guilherme em Nilsa. Horas depois, ou nos dias
seguintes, quando ouvia as pessoas grandes conversarem segredos ou comentarem
graves um fato recente, dizia-se, plena de poder, ela mesma perplexa
ante suas possibilidades: “Fui eu. Fui eu que fiz.”
Achava péssimo ir à escola, a professora era horrível. As coisas de que
mais gostava: pensar sem ninguém perto porque aí podia ir avançando até
se perder, brincar de santa, dormir, comer doce. Bom mesmo era fazer nada,
nem pensar, mas isso só às vezes conseguia, e era impossível gozar o
momento, sempre passado. Pois quando o sentia, ele já acabara: ela começara
a pensar. Ter aquilo na mesma hora seria morrer? - perturbava-se ela com
o pensamento, cada vez sabendo mais.
Sim, cada vez sabendo mais. Sempre sentira esse mistério: não ter pai.
Ela, que podia tanta coisa, afinava-se embaraçada de não conseguir dizer
“papai” do modo de Tita ou Nina. Era a única coisa que faziam melhor do
que ela, dizer “papai”. A diferença talvez só ela percebesse, sutil. Sentia
que
pai era uma coisa que se tem sempre, como mãe, ou roupas. Tita e Nina sabiam que aquela era uma vantagem:
- Quede seu pai, Ana Lúcia?
- Está viajando.
Disseram-lhe isso, já tinha escutado ou inventara? Ah, cada vez sabia
mais, sempre mais.
Guilherme e Nilsa não se beijavam perto da mãe. Se ela chegava, as
mãos ficavam quietas nas mãos, a respiração ficava mansinha e não havia
mais nada interessante para olhar da janela do quarto. Beijar devia ser
proibido. Ou pecado. (Sabia mais, sempre mais.)
- Ana Lúcia, seu pai ainda está viajando?
- Está.
- Mentirosa! Sua mãe é desquitada.
Ficou impotente diante da palavra desconhecida. Uma coisa nova,
ainda não se podia saber de que lado olhar para possuí-la toda. Desquitada.
Desquitada. Jamais perguntaria a Tita, era uma alegria que não lhe daria.
Ficou uns instantes sem saber como sair ilesa dessa armadilha. Tita corada
e
brilhante de prazer na sua frente.
- E o que é que tem isso?
Tita desmontou como um quebra-cabeça, Ana Lúcia balançara o
tabuleiro. Jamais teria medo de Tita, ela sempre dependia demais das coisas
fora dela, de um gesto, de uma palavra como desquitada ou parto.
Desquitada. Passou dias tentando solucionar sozinha. Seria uma coisa
como burra, feia? Não, não parecia. Flor? Flor parecia, mas não explicava
nada: orquídeas, rosas, sempre-vivas, desquitadas... Parecia. “Mentirosa! Sua
mãe é desquitada.” Tita dissera como quem diz o quê? o quê? o quê?
sem-vergonha. Sim!, como quem diz sem-vergonha: olhando de frente e
esperando um tapa.
Nesses dias amou a mãe com muita força, amou-a até sentir lágrimas,
defendendo-a contra a palavra que poderia feri-la: desquitada, sem-vergonha.
Pensava a palavra de leve, com receio de ferir a mãe. Experimentava,
baixinho, torná-la mais suave, molhando-a de lágrimas e amor: desquitadinha,
sem-vergonhinha. Mas a palavra sempre agredia, sempre feria.
Sentada no chão, picando retalhinhos de pano com a tesoura, amava a
mãe intensamente, enquanto ela costurava rápida, bonita mesmo, com
aqueles alfinetes na boca. Chegava alguém para provar vestidos, a mãe
mandava-a sair. Era feio ver gente grande mudar de roupa, a mãe dizia. Saía
contrariada por deixá-la exposta à palavra, em perigo. Abria-se a porta, ela
entrava de novo, amando, amando.
Estava cansada dessa obrigação e só por isso duvidou de si, subitamente
um dia ao tomar leite para dormir: desquitada podia não ser como
sem-vergonha! Podia até ser pior, e quem sabe podia ser melhor. Respirando
fundo e observando-se, ela seguia pronta para novas descobertas. Refugiou-se
no sono.
No dia seguinte recomeçou. Mais uma vez preocupava-se com a
palavra, agora não nova, mas mistério, sombra. Não se arriscava a dar um
palpite, havia o perigo de outro engano.
A professora feia! pergunta no fim da manhã, recolhendo os cadernos,
se alguém tem alguma dúvida. Ana Lúcia acende-se emocionada. Por que
não a professora? Talvez ela fosse boa, talvez dissesse logo o que é desquitada,
talvez dissesse na mesma hora, sem muitas perguntas como por que você
quer saber uma coisa dessas. Levanta-se tímida, insegura. Já de pé, desiste,
e
não sabe se senta ou chora.
- O que é, Ana Lúcia?
A voz da professora, mansa, mas não ajudando. Não pergunto, não
pergunto - teima Ana Lúcia, ganhando tempo. - O que é? - a voz insiste.
As meninas riem, insuportáveis. Helenice e seus dentes enormes
impossibilitando tudo. Ana Lúcia sente que vai chorar. Estar perto da mãe é
o que
mais deseja.
- Sente-se - ordena a professora irritada.
A máquina de costura avançava decidida sobre o pano. Que bonita que
a mãe era, com os alfinetes na boca. Gostava de olhá-la calada, estudando
seus gestos, enquanto recortava retalhos de pano com a tesoura.
Interrompia às vezes seu trabalho, era quando a mãe precisava da
tesoura. Admirava o jeito decidido da mãe ao cortar pano, não hesitava
nunca, nem errava. A mãe sabia tanto! Tita chamava-a de ( ) como quem
diz ( ). Tentava não pensar as palavras, mas sabia que na mesma hora da
tentativa tinha-as pensado. Oh, tudo era tão difícil. A mãe saberia o que ela
queria perguntar-lhe intensamente agora quase com fome depressa depressa
antes de morrer, tanto que não se conteve e
- Mamãe, o que é desquitada? - atirou rápida com uma voz sem
timbre.
Tudo ficou suspenso, se alguém gritasse o mundo acabava ou Deus
aparecia - sentia Ana Lúcia. Era muito forte aquele instante, forte demais
para uma menina, a mãe parada com a tesoura no ar, tudo sem solução
podendo desabar a qualquer pensamento, a máquina avançando desgovernada sobre
o vestido de seda brilhante espalhando luz luz luz.
A mãe reconstruiu o mundo com uma voz maravilhosa e um riso:
- Eu precisava mesmo explicar para você a situação. Mas você é tão
pequena!
Olhou a filha com carinho, procurando o jeito mais hábil. Pouco mais
de sete anos, o que poderia entrar naquela cabecinha?
- Desquitada é quando o marido vai embora e a mãe fica cuidando
dos filhos.
Pronto, estou livre - sentiu Ana Lúcia. Desquitada, desquitada,
desquitada - repetia sem medo. Sentia-se completa e nova. Alegrou-se por
não precisar amar a mãe com aquela força de antes. Sendo apenas uma
menina poderia cansar-se e então o que seria da mãe? Bom, que desquitada
não fosse um insulto. Bom mesmo. Deixava-a livre para pensar e não pensar,
coisa tão difícil que
- Marido é o pai? - ela quis confirmar, conquistando áreas que as
outras crianças tinham naturalmente. A mãe sorriu e confirmou.
Tita sabia dizer “papai” porque a mãe não era desquitada - ia Ana
Lúcia aprendendo, descobrindo. Havia muita coisa em que pensar naquela
conversa. Por exemplo: o que ela chama de marido é o que eu chamo de pai.
Essa é uma diferença entre mãe e filha.
Ela sabia cada vez mais

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