quarta-feira, 18 de julho de 2012

Olho Myriam Campello



Quando ela acorda, põe imediatamente o seio esquerdo em minha boca.
Sei muito bem que não é assim que se começa uma história. Mas a
língua portuguesa nada mais é para mim que um instrumento de compreensão,
de clareza científica. Por meio dela transmito minhas aulas de Botânica,
leio as separatas, teses e livros que me informam das novidades do ramo por
esse Brasil afora. Não sou escritor, isso vê-se. Pouco entendo de sintaxes
ou estilos e sim de vegetais, florações. Um reino mais modesto. Devo confessar
no entanto que a beleza perfeita de uma Phalaenotsis Winter Dawn var.
Mauna Kea, por exemplo, me entusiasma bem mais que a frase cintilante do autor renomado. Se deito ao papel notícias do vendaval que no último mês desmantelou minha vida é por justamente sentir-me em pedaços.
Português de nascença e ex-seminarista de hábitos metódicos, não que
a solidão eu não possa suportá-la. Mas na de minha irmã e eu que vivemos
sós nesta casa há uma tal qualidade de exílio e afastamento dos homens que
por vezes nos sufoca ao impossível. Não há a quem falar. Do que acontece,
não se pode dizer por proibido. Vivemos arredios, sem sociedade com outros
além de um boa-tarde seco, um bom-dia reservado que marca limites. Não
serviria conversar com aqueles a nossa volta. Esbarrando em um vizinho, falo
sobre plantas orquídeas, minha especialidade. Isto é, perguntam-me e respondo,
nada mais. E entro em casa.
Minha irmã sei que sente-se como eu, embora minta: não quer aumentar
a angústia que lê em meus silêncios. Ou por outra, sente-se como eu
embora feita de material diverso. É mais forte, talvez. Talvez mais livre.
Onde hesitei sequer pestanejou, radiosa como a Epidendrumfragrans. a mesma
nitidez alba, a mesma elegância. Sua paixão tem a firmeza imaculada de certas
sépalas, de certas pétalas. Mas tanto a ela quanto a mim se alguém nos
oferecesse voltar no tempo faríamos tudo igual, privilégio dos atos perfeitos.
O que não anula a noção de catástrofe que nos ronda, um perigo de partir-se
o cristal a todo instante. É o tormento que se cola às minhas insônias.
Pois o inferno mesmo é amar o proibido. Para todo o resto se encontra
um jeito, se arma uma saída. Cirrose, lepra, enfarte, até mesmo certos tipos
de câncer os médicos acham de curar. Mas experimente querer por um
segundo impensável a própria irmã, querer como um homem quer uma
mulher, eu digo tê-la. Pesadas comportas descerão sobre você em cadafalsos,
isolando-o do mundo. Jaula sim. E o desterro brutal, o deserto. Terá que
agüentar o silêncio como se fosse este o veículo natural entre os homens, já
que a palavra denuncia a verdade e esta é arma de suicídio. E dar-se a uma
existência surda, contida, de onde a espontaneidade será expulsa como um
mal. Será um mal, trocada pela vigilância de si. Cárcere do desejo. Mentiras.
Que nem assim adiantam. A primeira carta anônima meteu-se à minha
correspondência mês atrás, caída do azul. Repelente como papéis desse tipo,
dizia apenas “eu sei tudo” em letra forçada, velando-se. Estupor e medo
subiram por mim. Como podiam ter visto algo e o que se minha irmã e eu
só em casa nos tocamos? Se só entre nós permitimos que a espuma do amor
flua e se derrame? Junto aos outros, também o olhar é mantido sob ferros.
Sofro por esse sol ardente que se congela em contato com o mundo, como
certas substâncias. Mas apesar da tela que pretendíamos vazia, vazada como
um olho cego, varada de qualquer expressão que não a consentida, ainda
assim nos viram.
Desprenderá a paixão algum cheiro, traço, uma energia qualquer que
emitindo-se nos denunciasse? Somos como lesmas? Outros o são? Analiso
detidamente os casais em torno. Onde seus corpos se chocam, os pontos de
pressão. Reentrâncias e volumes que disfarçadamente se esfregam em público.
Eles, sim, fazem ondular a atmosfera com sua animalidade visível. Mas
nós? Entre minha irmã e eu há sempre um rigor imposto, uma distância
necessária, cerimônias que calham bem a meu jeito formal de ex-seminarista.
Pois com olho sujo violaram nossa aparência impecável e surpreenderam-nos,
os cães nojentos. Falo no plural por achar que a desgraça acode aos pares,
às trincas; um canalha era pouco. Mas tenho que só uma víbora a nos morder
o calcanhar. É ignorar-lhe os silvos. Cansar-se-a.
Vista de dentro, nada existe de estranho em nossa relação. Minha irmã
e eu somos como todo mundo, embora o disfarcemos. Gostamos dos espaços
amplos, da textura das pétalas, de receber amigos e bradar nosso amor sem
que empalideçam a nossa volta. Gostamos também daquela rua escura,
por exemplo. Dando aulas à noite, passo por uma rua escurecida por grandes
exemplares de Ficus religiosus, troncos imensos mergulhados na sombra que
os namorados aproveitam como pontos de apoio. Por que também não posso
levar minha irmã para lá, erguer sua saia e comê-la contra a casca rugosa?
Reivindico para nós os mesmos atos que qualquer par de amantes chancela
com a displicência de um direito divino. A idéia persegue-me dia e noite,
acossa-me os sonhos, atropela-me as aulas, dando-me a expressão concentrada
de um ser em transe. As margens de minhas anotações se cobrem com
desenhos de homem e mulher de pé contra uma árvore, em posição de
cópula. Como um pintor rupestre, reproduzo-os com insistência. Os desenhos
se tornam cada vez mais esclarecedores, o traço mais seguro. Tenho
medo que abram meus livros, vejam por acaso meus papéis. Qualquer
momento de folga guia minha mão e da caneta ou lápis brota a imagem fixa:
homem, mulher e árvore. Conheço bem a cena. Só me falta vivê-la.
Há cinco dias nova carta anônima chegou-me às mãos. “Estou de olho
em vocês”, rezava a mesma letra sob máscara. Nada digo a minha irmã, pois
algum terror sempre imprime-se a tais documentos. Não quero assustá-la.
Apesar do temor, um prazer obscuro também se esgueira em mim: finalmente
somos vistos. Gosto desse olho que nos cobre de uma gosma obscena.
Nem as paredes nos protegem.
Inconscientemente, assumo posições escabrosas para agradá-lo. Quando
derrubo minha irmã na cama, sei que o olho me vê e meu pau lateja mais duro.
Invado-a então com o vigor de quem escava um poço. Ontem a machuquei.
Mas não reclamou, como se por alguma razão também necessitasse disso. Ao
contrário, dilacerou-me as costas num êxtase profundo, secreto. Enfiado em
sua vagina, vasculhei-a com uma violência de estupro. Agora somos três. A lembrança
disso logo me faz enchê-la de um jorro quente e espumante.
Hoje, ainda bem cedo, fui ver as orquídeas na grande estufa atrás da
casa. Na espécie vegetal reina uma liberdade opulenta, caprichosa, que muito
bem faria ser vista por quem nos persegue. Há de tudo. Algumas flores recebem
dos pássaros o pólen necessário. Outras do vento. Ainda outras se autofecundam.
E quero ver se aponta-me alguém algo mais esplêndido que a
Paphiopeclilum maudire Magnficum, cuja carnação branca de veios verdes
lembra folhas a virarem pétalas, surpreendidas na alquimia. Quanto à bela
Sophronitis coccinea Reichb, delicadamente vermelha, é minha irmã que me traz
à memória. Embora a palavra orquídea venha do grego orchídion “pequeno
testículo”, o labelo da flor assemelha a uma vulva deliciosamente aberta.
Nomearam-na os gregos errado por não apreciarem mulher. Já eu sim.
Morrendo-me a mãe viúva há quatro anos e não suportando mais o
seminário, resolvi abandoná-lo. O sexo aguilhoava-me além do que se pedia
a um sacerdote. Para evitar futuro desgosto à Igreja, e a mim uma contínua
infelicidade, decidi ser professor. Na casa sobrara apenas minha irmã, que
não via há tempos.
Espantei-me com a desabrochada moça a receber-me, bonita, quase
uma estranha nos seus dezoito anos, eu que guardara dela uma imagem
infantil. Aos poucos, porém, fluindo os meses, uma intimidade nova nasceu
entre nós. Nada acostumado às mulheres, naquela tudo me encantava. às
vezes a olhava sem rebuços, mesmo às escâncaras. Outras secretamente.
Gostava de vê-la sair do banho, os cabelos limpos envoltos na toalha em
turbante. Lufadas de colônia seguiam-lhe cada gesto, espécie de neblina que
se tornou para mim a denunciadora inefável de sua presença.
Deslocava-me para o quarto dela, atraído de corpo e alma, fisgado como
um peixe. Oferecia-me para segurar-lhe o secador. Em silêncio,
voluptuosamente, entregava a cabeça em minhas mãos. Eu libertava os cabelos curtos como os de um menino, muito louros, fios de seda que a água escurecia brevemente como num ato mágico. Eriçados pela minha mão, varridos pelo jato quente como campo de trigo ao vendaval, os pelos molhados desfaziam-se
em mil fios leves, secos agora, novamente de ouro. Meu prazer aumentava
quando isso era feito sob o sol. Ativada pelo banho, iluminada pela luz, em
sua pele clara imprimia-se o tom das pequenas rosas silvestres que cresciam
nos jardins do mosteiro.
Sequioso, sem me fazer perguntas, buscava secretamente novas formas
de contemplá-la. Preparando-se para sair tinha-me sempre por perto. Vestia-se,
é claro, sozinha, a porta do quarto nos separando. Mas eu a observava
pintar-se dentro do banheiro, encostado à parede, uma displicência fingida
escondendo a tensão perturbadora. Atento, acompanhava o pó lhe cobrindo
o rosto, o ruge tornando humano o tom só declarado em pétalas. Fria,
absorta, ela examinava estranhamente a imagem do espelho como se a
desconhecesse, namorando-se. Via sem dúvida uma mulher bonita. Quando
pintava a boca com o batom vermelho, uma resposta clara esboçava-se no
centro do meu corpo. Esperava que saísse e masturbava-me furiosamente no
ar saturado de perfume.
Às vezes a surpreendia com uma expressão tão intensa fixada em mim
que bem podia ser desejo. Mas este, se o fosse, era logo varrido por
autocontenção implacável que a obrigava a arredar a vista. Só voltava a
fitar-me com o olhar limpo de tudo que não fosse ternura e um leve toque
de zombaria, se de mim ou de si nunca soube. Travar-se-ia nela o mesmo
combate agônico dilacerando-me? Muitas vezes chamei-me de louco, duplamente
louco por pensar assim.
Um dia, certa greve de professores me fez voltar mais cedo do trabalho.
A casa boiava em silêncio, como sem ninguém. Larguei livros e um caderno
cheio de meus traços em qualquer lugar e empurrei a porta do banheiro.
Com movimento de susto, minha irmã cobriu-se com a toalha. Acabara de
tomar banho e não esperava tão cedo minha volta. Durante um longo
momento ficamos ali, um diante do outro, imóveis. O coração selvagem.
Meu primeiro impulso foi virar-me e sair, mas forças contrárias o combateram,
paralisando-me. Finalmente o desejo me sufocou. Fui até ela e puxei a
toalha. Ainda tentou resistir, virou-se mas acabou cedendo, posso dizer que
muito menos à força que à minha vontade. O grande espelho do banheiro
viu quando beijei sua nuca loura e explorei-lhe o odor, minha boca eriçando
os pêlos sedosos, a fronteira entre pele e pêlo que sempre quisera sondar.
Virei-a de frente. Nosso banheiro tem uma antiga pia de mármore, muito
sólida. Ergui minha irmã e sentei-a ali, naquela borda. Quando abri a boca
e ela sentiu minha respiração dolorida, apressada como a de um animal que sofre,
só podia fazer mesmo o que fez. Pegou o seio duro com a mão e o pôs em minha
boca. A mucosa incendiada de febre o envolveu. Minha língua rolou pelo mamilo
tentando derretê-lo, açoitando o botão de carne em todas as direções. Chupei,
mastiguei, devorei seus seios com uma fome antiga. Sempre os mastigo longamente
antes de caminhar pelo resto de seu corpo. Azeitonas que se enrijecem,
vermelhas, e largam seu suco em minha boca.
Puxei-a para o quarto e joguei-a na cama. Com a língua, umedeci
sofregamente e por muito tempo as fendas de seu corpo. Quando a cobri,
ela quis. Abriu-se como fruta que se racha no solo. O desejo é vagalhão
enfurecido, avalanche que se nutre do próprio excesso para melhor derrubar
e engolir. Iniciado, nada pode detê-lo. Se abrissem a porta e me vissem dentro
de minha irmã, gozando-a, meu sêmen se estancaria? Penso que não. Uma
vez explodindo, é esperar que a convulsão cesse por si mesma. Assim, fomos
de roldão nas asas da carne até que o esgotamento nos fez dormir, eu ainda
com o membro dentro dela. Desde então vivemos o que podemos, equilibrando-nos no fio aguçado.
Apesar do dissímulo, eis-nos fortes como um par de leões. Antes deviam nos
ver, que nos escondermos. Sabemos contudo que existe o que deve ser olhado
e o que não deve sê-lo. Este inclui o relâmpago, por exemplo; o andar furtivo
de um rato; pássaros fazendo ninho; dois amantes que se beijam. Como os
mistérios de Elêusis, são matéria interdita, esfera do sagrado. Uma proibição
implícita os protege.
Do mesmo modo disfarçado e sonso com que os contemplamos,
observo minha irmã, atualmente mais silenciosa que nunca. Pensamentos
febris fulguram em suas íris douradas como a Brassidium Aloha var. Elisabeth,
um amarelo pintalgado de madeira clara, flores fugidias que parecem exibir
duas matérias diferentes. É só distrair-me e capto os pequenos faróis pousados
sobre mim com algo movendo-se por trás deles como sob um véu. Não
adianta perguntar-lhe nada, não o dirá: quer poupar-me de tudo. E se não
fosse só isso? Preciso observá-la melhor.
Lanço também aos namorados sob as árvores o mesmo olhar turvo, fugidio.
Hoje passei lentamente pela rua escura para registrar o que fazem. O olho pronto
a disparar como uma cãmera. Escolhi um par: nem me perceberam, aos beijos,
esfregando-se. Também quero ter minha mulher sob as árvores. É uma idéia fixa.
O odor do tronco crestado e das folhas crescidas à chuva e ao sol se misturaria
ao de minha irmã, tépido, de carne humana florescente.
Paro na rua ofegante, de nariz para o ar, os pulmões cheios até que
doam. De repente, as células do corpo vibrando com a força do prazer
contrariado me avisam que estou perto de realizar meu desejo. Como um
cavalo veloz tolhido pela brida, basta-me um sinal. Basta-me um leve
empurrão, o toque que precipita no abismo coisas já abaladas. Estou,
estamos, no limite da resistência. Quero ser visto, exijo que me vejam. Quero
o olho do mundo sobre nós, esse banho salgado e primordial que colará ainda
mais minha irmã a mim. Vasculho a mente em todas as direções para decifrar
o enigma. Em torno de mim tudo está fechado, imutável. O céu impassível
não me diz com que sinal vencerei. Não desisto.
Chego em casa incendiado como nunca. Quem sabe a resposta estaria
ali, entre as paredes que nos cerram? Um bilhete de minha irmã avisa-me
que logo voltará. Ando pelos cantos a esmo, as paredes devolvem-me muros
frios. Não há salvação. Um desespero de morte tolhe-me o peito quando
entro no escritório e ponho-me automaticamente a desenhar. Homem,
mulher e árvore enchem um caderno encontrado ao acaso. O Ficus religiosus
acobertando o par de pé, enlaçado como numa gravura hindu. O pênis dele
mergulhado nela como um punhal.
Desenho incessantemente durante algum tempo em busca de um alívio
que não chega. Então paro, ofegante. Meus olhos caem sobre a
correspondência na mesa, o envelope de cima com a letra embuçada que nos persegue.
Desta vez, no entanto, algo familiar se destaca dele e investe contra meus
olhos, rápido inseto esvoaçante. Numa revelação, reconheço sua função secreta.
Rasgo o envelope em alvoroço. “Um gesto em falso e eu os denuncio.”
Uma onda quente de amor envolve-me com doçura. Somos iguais. Precisamos
do peso do mundo. Minha irmã usa cartas anônimas. Já eu quero a árvore
e a rua escura. É um grande salto no vazio, um salto sem retorno. Mas retornar
para quê? Esta noite me casarei com ela sob a árvore. Esta noite sem falta. 

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