quarta-feira, 4 de julho de 2012

Days of wine and roses (Dias de vinho e rosas) Silviano Santiago




Tristeza não tem fim, felicidade sim
(Vinícius de Moraes, Orfeu da Conceição) Você acorda durante a noite. Você não sabe onde se encontra. Que horas
são? Não há razões para você viver onde está morando. Você se levanta
da cama no escuro. Sente uma corrente fria de ar nas pernas descobertas. Ela
sobe pelo corpo até a cabeça. A cabeça se confunde com os pés. Você caminha
para a sala rolando em cima dela, como o menino saltimbanco do quadro de Picasso. Você se aproxima da poltrona que dá para a janela e de lá, sem acender a luz do abajur e já sentado, redescobre os próprios olhos, vendo a rua deserta e iluminada às quatro horas da manhã.  A poltrona é velha e pouco cômoda. Está encardida pelo uso. Ela não combina com você. Você não combina com ela. Muito grande, não há como escondê-la no armário embutido, onde você escondeu os vários quadros que estavam dependurados nas paredes. O apartamento de quarto e sala foi alugado com os móveis e os quadros. Falta o dedo, falta o gosto. Você fica ao lado dos móveis, dentro do apartamento. Você está vivendo no apartamento como se morasse num quarto de hotel. Você liga o aparelho de televisão. Você e os móveis se entreolham de perfil, como bandido e polícia se estranham um ao outro no filme que está sendo exibido a esta hora da madrugada.
A vidraça quadricula o lá fora da madrugada de inverno. Você faz de
conta que ela está aberta. Neste momento você não quer saber as razões pelas
quais você faz de conta que ela esteja aberta. Ou as outras razões pelas quais você gostaria de saltar para a calçada pela janela deste terceiro andar. Você está lá fora gozando o vento da madrugada gelada no corpo aqui dentro. A tempestade de neve que desabou na quinta-feira preencheu o fim de semana de toda a cidade. Você recebeu dois telefonemas, o primeiro desmarcando um encontro e o segundo suspendendo um jantar. O gramado das casas ficou recoberto de branco. Também as calçadas. As árvores nuas são paus secos cinzentos e amedrontadores, menos os pinheiros. Estão verdes e enfeitam a cidade para o Christmas.
Não foi fácil caminhar de volta para casa na sexta-feira. O céu continuava nublado e pesado. O vento frio que soprou durante toda a noite e pela manhã transformou a neve depositada na calçada num arriscado ringue de patinação e este fez do solado das botas arremedo de patins. Não se ouviam vozes humanas pelo caminho. O silvo cortante do vento rabiscava e apagava nomes próprios nos seus ouvidos, rabiscava e apagava. Você imaginou que não havia casas na cidade. Não há casas. Só ruas. Você imaginou que não havia famílias na cidade. Não há famílias.
O asfalto se deixou tingir momentaneamente de branco, figurando-se depois como uma comprida e interminável faixa paralela e negra à sua frente.  Uma faixa ensopada e suja, transformada em pura lama pelo atrito dos pneus dos carros. A faixa paralela apontou para a fuga, ou para o vazio em perspectiva das lâmpadas dos postes. Você preferiu o vazio de pirilampos elétricos perfilados até o infinito da sua visão. As estrelas são inacessíveis e têm uma organização anárquica. Tapando e destapando os ouvidos para evitar o congelamento das orelhas, você brincou, como se brinca com uma concha, com o marulhar dos motores pouco apressados dos automóveis que trafegavam com farol baixo.
Ontem não caiu a neve que os boletins meteorológicos fornecidos pela televisão anunciaram nos sucessivos jornais da véspera. Choveu pela manhã.
Uma chuva desentranhada do gelo como um bom daiquiri mexicano. O
branco foi varrido dos jardins e das calçadas. Você conta as poucas pilhas
de neve, nem brancas nem negras, feitas pelo trabalho das pás, e agora ilhadas
pela sujeira da lama e enrijecidas pelo vento. Da janela são onze pilhas,
sentinelas às saídas de entrada para as garagens, como se fossem as latas não do lixo doméstico, mas do lixo celeste. Os gramados perderam de vez o pouco
de verde que ainda ostentavam antes da tempestade e agora estão amarelecidos,
deixando a pura cor marrom de terra se salientar.  Você se levanta da poltrona nesta madrugada de domingo e procura, com o rosto rente à vidraça, o boneco de neve visto e apreciado ontem. Não consegue vê-lo. Estava desfigurado ontem, terá se derretido com a chuva.  Ostentava um petulante chapéu de palha vermelho, resto das férias de verão da família, e um cachecol preto em farrapos. Alguém, só pode ter sido por molecagem, tinha atochado uma espécie de charuto no que tinha sido a boca.  Você tirou o charuto e ajeitou o chapéu de palha vermelho na massa branca disforme. Só não trouxe o chapéu para casa porque ainda não tinha a condição de lixo. Neste domingo ele é do lugar para onde o vento o levou.  Já em casa, na quinta-feira, com os flocos de neve da tempestade lambendo o vidro da janela, você não sabe por que, por que você chamou Roy ao telefone. Não o via fazia muitos anos. Quinze pelo menos. Nem uma carta, nem uma palavra amiga trocaram durante todo esse tempo. Você partiu sem lhe deixar o endereço. Um dia você não quis revê-lo.  Você não tem vontade de revê-lo. Tem vontade de conversar. Os móveis do apartamento alugado são feios, sujos e velhos. Os quadros estão escondidos no armário embutido. Você não está contente com as imagens do cotidiano na tela da televisão. Você já não ouve as diferentes vozes que falam para você, te olhando fixamente nos olhos, informando-o do estado do mundo nesse dia.
Você já esquentou e comeu a sopa enlatada. Clam chowa’ era o estilo de New England, enriquecida com uma meia colher de missô. O corpo transpira. Você tira a camisa de lãzinha. Fica só de camiseta, cueca e sandália havaiana. A calefação aumenta, a temperatura cai lá fora. Você molha o pano de prato e o estica por cima do radiador para ver se as narinas não reagem à falta de umidade no ambiente. Você abre a geladeira, retira uma pêra e o pedaço de queijo suíço envolto em papel celofane. Você come a pêra com pedaços de queijo e algumas ameixas secas. Toma depois um gole de uísque.  No gargalo. Você pensa agora que o telefone é uma forma de encontrar uma pessoa sem verdadeiramente encontrá-la. Você toma um segundo gole de uísque. No gargalo. Você está adquirindo maus hábitos.  Sob o pretexto de necessidade de falar com alguém por ocasião da tempestade de neve - foi por essa razão que você discou o número de Roy.  Pelo menos foram estas as suas primeiras palavras ao telefone, depois de se identificar e de ouvir a expressão de espanto e alegria do outro lado. Sem mais nem menos, você tinha desaparecido da vista dele havia quinze anos.  Você tinha convivido com ele durante seis anos. Fora amante dele. Não do tipo carrapato, rola rolando dia e noite na mesma cama e sob o mesmo teto.
Você sempre teve o seu apartamento, embora sempre encontrasse Roy no
dele. Houve razões para você estar com ele naquela época. Não há razões
para você revê-lo agora. Ficarei eternamente tirando água do poço com os baldes
da memória? você inventa a pergunta sentado na poltrona encardida que acolhe e rechaça o inquilino brasileiro de nariz arrebitado. Sorri da pergunta, sorri da poltrona encardida de onde é feita a pergunta, sorri da pessoa que faz a pergunta sentada na poltrona encardida. E volta a contar as pilhas de neve esparramadas pela calçada que aparecem agora como montes de feno em quadro bucólico. O riso fica desbotado quando se descobre em contradição com os dedos que apertam as teclas do telefone.  Roy te disse que se lembrava de você. Muito.
“Lembrar até que você pode, não sou eu quem vai duvidar, mas será que pode me reconhecer?”
“Só tirando a prova”, disse ele, insinuando um encontro urgente.
“Sempre querendo tirar uma casquinha?” “E que mal há nisso?”
“Desta vez não estou morando tão perto assim de você.” “E é preciso? Para isso existem os meios de transporte. Neste país funcionam, principalmente os transportes públicos”, acelerou a vontade de te ver.
“E também o telefone. Também ele funciona maravilhosamente.  Nunca tive uma conversa interrompida porque a linha tivesse caído”, você cortou de vez a ironia e a conversa mole dum futuro tête-à-tête na cidade dele, no apartamento dele, na cama dele.
“Estou em desvantagem”, continuou.
Você não sabia a que ele se referia e ficou em silêncio.  Ele retoma a fala: “Você sabe o meu número de telefone, aliás, o de sempre, e eu não sei o seu. Me dê o seu número. Pelo menos o número.” Entre o pedido do seu número de telefone e o pelo menos houve uma pausa. O pelo menos dele serviu para cortar o riso irônico e vitorioso que você tinha ameaçado durante o que agora você reconhece ter sido uma pausa a mais.
Você negaceia. Não quer ainda lhe dar o número do telefone, muito
menos o endereço ou o nome da cidade, tão próxima, onde você veio
trabalhar durante uma curta temporada. Não há razões. Pura birra. Você
sempre teve prazer em esconder de Roy os seus novos números de telefone.
Gostava de aparecer no edifício dele, anunciando-se pelo interfone da
portaria. “Você tem a chave do apartamento. Para que tanta cerimônia?”,
perguntava ele, dando por encerrado o ritual tolo. Você não gostava de
surpreendê-lo. Gostava de não se fazer esperado.
“Já está de pijama?”, pergunta você.
“Acertou.”
“O de seda?”
“Acertou de novo. Um terceiro, quarto ou quinto, não sei, perdi a
conta. Aquele pijama que você me deu de presente no nosso último Natal,
o segundo, virou farrapo há muito tempo. Só não digo que foi pro lixo, para
não ser indelicado. Mas o padrão do tecido é o mesmo. A loja também,
Bloomingdale’s. A qualidade da seda é que não é mais a mesma.
“Motivo indiano?”
“Motivo indiano.”
“Anos 60?”
“Anos 60. Motivo indiano, anos 60. Bom observador.”
“Boa memória”, você o corrige.
“Guardada a sete chaves.
“Quando é que você vai perder essa mania?”
“Qual delas? são tantas!”
“A de ir pra cama vestido com pijama.”
“Quando você conseguir me convencer.
“Te convenci tantas vezes a dormir nu.
“E um dia deixou de convencer. Pensei que você tivesse deixado de
lembrança o pijama de seda para que eu não deixasse de vesti-lo antes de ir
pra cama. Pensei errado.”
“Uma boa lição costuma valer pra sempre.
“Qual? por exemplo.”
“Ensinar uma pessoa a descobrir a própria pele enquanto adormece.”
“Te dou outro exemplo, quer?”
“Se for de graça...”, você espicaça Roy.
“Ensinar uma pessoa a descobrir a sensualidade da seda sobre a pele.”
“Você nunca mais dormiu nu?”, insiste você, com malícia.
“A ocasião faz o monge.
“O hábito...” “Você entendeu. Não se faça do que não é.”
“Tolo?”
“Não. Ciumento.”
“E o que é feito do robe de seda que te dei?”, pergunta Roy.
Você não responde. Muda de assunto.
Você pergunta pelos velhos amigos.
Ismael está morto e enterrado na Colômbia. Os familiares vieram buscar o corpo dele.
“Foi o fígado que pifou de vez?”, você pergunta e ele confirma, ratificando a sua boa memória. Teresa, a sandinista, mudou de idéias políticas e de estilo de vida. Casou e fugiu para o México com um gringo rico e mais os filhos que não eram dela.
“E Donald? E Tom? E Robert?” Os outros amigos - você descobre que não adianta ir mencionando mais os nomes da velha turma para ir matando as saudades dos bons tempos. Naquela época, Donald quis ser ator ou bailarino na Broadway. Tom trabalhava dia e noite numa companhia de seguros e Robert, filho de papai rico, pintava telas num loft do Village que mereciam ser rasgadas. Os outros amigos - ele não sabe do destino deles.  Sabe, você também sabe, mas preferem silenciar.
“Os tempos já não são os mesmos”, você percebe que a voz dele perde
o tom decidido da investida inicial.
“Os corpos já não são os mesmos”, você ecoa a frase de Roy, sem
coragem de dizer que a vasta cabeleira negra, que contrastava na cama com
os cabelos louros dele, agora são cabelos brancos raros e ralos. Daquele
tempo, só a barba espessa. Cada vez mais espessa.
“Nem os bares são os mesmos.
“Houve um dia em que todos se fecharam.”
“Você não estava aqui para vê-los irem se fechando.” Você não sabe se, com esse comentário, Roy lamenta o seu desaparecimento da vida dele, ou o sucessivo fechamento dos bares.
“Posso não ter presenciado o fechamento dos bares de Nova York”, você contra-argumenta, “mas fui vendo eles irem se fechando por muitas outras cidades tão interessantes quanto a sua.
“Não viajo tanto. Aliás, não viajo nunca, você sabe, a não ser ao redor do meu quarto. Quando muito atravesso a Quinta Avenida e vou ao West Side para ver uma peça de teatro. Não sei se é pior saber que todos os bares se fecham na aldeia, ou saber que se fecham mundo afora.” “Você não perde o seu jeito de ser provincianamente nova-iorquino”, você comenta a maneira orgulhosa e sarcástica como Roy define a grande metrópole norte-americana, lembrando-se depois do contraste entre a maneira como programavam as suas vidas enquanto viveram em apartamentos separados e na mesma cama.
Você dizia, então, que ele levava jeito de dono do império. Um londrino no século XIX às margens do Tâmisa, com a curiosidade satisfeita a cada navio que chegava com as notícias das colônias.  Ele replicava, dizendo que você levava jeito de dono de empório. Um exportador paulista de café do início deste século, vistoriando os negócios pelas metrópoles do mundo chamado civilizado. E se divertindo, e como!  Você intuía certa mágoa controlada nas palavras dele.  “Existe alguma coisa de mais universal do que ser provinciano em Nova York?”, continua ele, só para te deixar perturbado.  Você diz que ele não perde a oportunidade de ficar calado.
Aquela era a frase preferida dele quando vinha ver você arrumar as malas
para uma nova viagem ao exterior, ou desfazê-las depois de um périplo pela
Europa ou pela América Latina, para ele totalmente desnecessário. O
capítulo viagem não pertencia ao apartamento dele. Servia para a listagem
na caderneta de endereços dos inúmeros apartamentos abandonados por você e dos muitos números diferentes de telefone de que você foi assinante. Roy dizia então que o universalismo provinciano do nova-iorquino não era invenção dele. Tinha chegado à idéia e conseguido formular a frase depois das muitas conversas com correspondentes de jornais brasileiros que você tinha apresentado a ele. “Tão tolinhos”, dizia ele em português estropiado, imitando um amigo comum, Zeca.
Você encobria a inevitabilidade da viagem ao exterior com somas milagrosas de dinheiro, vantagens na profissão, saudades de amigos, tédio da vida trepidante nova-iorquina, e podia ainda se valer, como o comandante do navio que soçobra se vale de qualquer objeto a bordo para se salvar, da palavra que estivesse à mão.
Roy sabia por que você viajava. Se todas as viagens são a mesma, basta fazer a primeira para ter a experiência. Roy tinha feito a primeira e única viagem depois de se graduar numa universidade do interior do país. Ele dizia que sabia das razões da sua nova viagem num misto de silêncio e malícia.
Você tinha medo do estrago moral que a ternura ressentida e silenciosa
dele te causava e, por isso, imediatamente lhe dava o troco, perguntando por
que é que ele guardava tanto amor pela mesma cidade? pelo mesmo endereço,
pelo mesmo número de telefone? É também o que você quer saber agora, quando a antiga frase dele, retomada por acaso na conversa telefônica, tinha acabado de ecoar pela madrugada do apartamento alugado, levando-o a avaliar de novo o lugar onde estaria morando por mais alguns meses.  Esses móveis não são tão feios nem estão tão sujos. Não são iguais aos móveis que você tem em casa, mas são em tudo por tudo iguais aos móveis dos diferentes apartamentos alugados por onde o seu corpo transitou. E a sua cabeça e imaginação trabalharam. Eles não têm a marca do dedo, não têm as cores do gosto, não sentiram a acidez corrosiva dos produtos de limpeza. São como são os inquilinos que vão acolhendo um após outro, indistintamente. Cara de um, focinho do outro. Sem essa de desconfiança mútua. Olhe-se no espelho do banheiro. Você não verá a sua cara, verá refletida uma cabeça cubista.
Depois de alguns segundos de silêncio, você diz a Roy que voltará a chamá-lo qualquer dia destes.
Ele não se surpreende com o término abrupto do telefonema. Te deseja boa sorte.
“Antes, não tive oportunidade de te desejar boa sorte”, acrescentou.
Você desejou o mesmo para ele e desligou.
Na madrugada fria de domingo, sentado na velha poltrona encardida pelo uso, você não sabe se algum dia, em algum momento, chegou a amar Roy. Você nunca quis admitir que a convivência esfria a lembrança dos primeiros dias, dos primeiros meses, e que a perspectiva da convivência falseia a intensidade dos sentimentos e das emoções compartilhados. Vocês viveram uma longa relação sexual e amorosa. Durou o que tinha de durar, dadas as características da sua personalidade. Durou menos do que devia ter durado, dadas as características da personalidade de Roy.  Para os amigos mais íntimos, lembrando o passado, você disse e repetiu que tivera um caso longo com um gringo em Nova York. Você sabe que não foi um caso. Pode não ter sido paixão, mas classificar o relacionamento de caso é minimizar experiências que te constituíram e te transformaram no que você é hoje.
Perguntado por esses amigos se sentia saudades dele, daqueles anos em Nova York, respondia que não. “Boas lembranças”, respondia. Lembra-se do gringo como a gente se lembra dum bom amigo da infância que, sem dizer adeus, tinha desaparecido na curva da adolescência. Lembra-se da cidade como a gente se lembra da ponte de onde pela primeira vez se quis pular para a eternidade.
Sempre que você viajava para os Estados Unidos, ou passava por Nova York, o dedo indicador da mão direita tinha comichões antes de se entregar
ao sono. Você contra-atacava a curiosidade despertada pela solicitude do aparelho de telefone no criado-mudo ao lado, inventando programas para o dia seguinte.
Você não é vulgar. Você não gosta de ser vulgar quando conversa com
os amigos. Você é vulgar quando trata de se convencer de que agiu corretamente
nas relações amorosas. Você se transforma num voyeur de você e de seu companheiro, como esses casais há muito casados que vão transar no motel porque lá tem espelhos no teto e nas paredes.
Você traduz as carícias iniciais trocadas com Roy pelos nomes mais
grosseiros dos órgãos sexuais envolvidos na batalha do leito e, com a fita
métrica da retina, mede tamanho, diâmetro e largura e, com a sensibilidade
dos ouvidos, faz a listagem completa dos ruídos malcheirosos e envergonhados
e, com a suavidade do tato, apalpa espessura e asperezas, descrevendo em seguida os túneis vulgares lubrificados pela saliva pastosa e as rotas clandestinas perseguidas e finalmente permitidas e devassadas. Você menospreza a ânsia gerada pelos movimentos repetitivos, ridículos e nada monótonos, enxergando nela o prejuízo do suor que se torna pegajoso e nojento, a sujeira das peles lambuzadas que reclamam sabão e o banho de chuveiro e o cansaço dos músculos que teriam optado pelo descanso naquela noite de dia cansativo. Você descreve o gozo sexual enunciando os vários nomes do líquido, quanto mais sórdidos os nomes, e nojentos, mais vantajosos, você descreve o gozo sexual medindo a quantidade expelida do líquido e a freqüência, atendo-se a dados complementares como a indolência ou a agressividade do esguicho. A memória das suas experiências amorosas com Roy são como os dois espelhos ovais e reflexivos do guarda-roupa, que a decoração fim-de-século permitia ter ao lado da cama do casal. Recordando, você se vangloria da capacidade que tem de oferecer pele, boca, dentes, órgãos, músculos e líquido que satisfazem.
Posso imaginar a que conclusão você vai chegar. Você não precisa enunciá-la. Posso enunciá-la para você:
Você nunca chegou a amar Roy.
“Eu nunca cheguei a amar Roy.” É isso o que uma vez mais você diz para você neste momento em que as primeiras luzes do dia cinzento tornam um pouco mais nítidos os móveis encardidos, velhos e feios da sala. “Não cheguei a amá-lo.”
Você é vulgar.
“Ele serviu para me tirar a porra dos colhões como um fazendeiro ordenha uma vaca leiteira.” Você continua, dizendo que você foi a vaca, e ele, um bezerro que você teve que desmamar à força.  Com o dia já claro, você volta para a cama sem planos para o domingo nevado que vem pela frente.
A noite desce cedo no inverno e parece que vai descendo mais cedo
neste domingo em que você acorda tarde e nada faz nas poucas horas do dia,
a não ser olhar sem ver as sucessivas transmissões de jogos esportivos na
televisão. Antes que a noite desça de vez e mais uma vez, você olha pela janela
a neve, que volta a cair recobrindo de branco as redondezas quadriculadas.
Os flocos voltam a dançar alegres ao ritmo do vento. Lambem a vidraça.
Abraçam-se aos ramos dos pinheiros. Assentam-se aconchegantes no gramado
e rarefeitos na calçada. Os automóveis deslizam lentamente, iluminando com os faróis a sujeira da lama na rua. Você aperta as teclas do telefone.  Compõe o número de Roy.
Uma voz gravada do outro lado diz que o número discado se encontra
desativado. Você acredita que tenha discado o número errado. Para se
certificar, relê o número anotado na velha caderneta de endereços. Aperta de
novo as teclas. Você não deixa que a voz gravada termine a mensagem, desliga antes. Você busca na lista telefônica o número da informação. Pede o telefone de Roy.
A telefonista informa que o número não pode ser fornecido. Você insiste, dá o endereço do assinante.
Ela lamenta e diz que o assinante trocou de número e acrescenta que, por uma módica quantia mensal, ele tem o direito de não ter o seu novo número publicado na lista e de impedir a sua divulgação pela telefonista de plantão. São as regras da companhia, ela termina. 

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