Cheguei à portaria daquele edifício, em Botafogo, para ver o
apartamento,
quase ao mesmo tempo que uma mulher. Notei que ela estava
nervosa,
pelo modo como dava tragadas seguidas no cigarro, amassava
com a mão
fortemente cerrada o caderno de classificados de um jornal,
e também pelo
batom que transbordava da linha dos seus lábios, como se
houvesse se pintado
às pressas. Mas nem por isso era menos bonita ou elegante,
usando um
vestido listrado, de tecido meio rústico, que ostentava uma
simplicidade que
devia ter custado algum dinheiro. Os sapatos pretos
grandões, desses de
amarrar, concediam-lhe uma aparência um tanto exótica, um ar
de força,
quase de brutalidade, talvez premeditada, um toque masculino
que não
impedia de se evidenciar nela a mulher em todos os seus
aspectos. Ou talvez
eu só tenha pensado essas coisas todas depois, tornando-me
capaz de escrever
sobre elas desse modo. Naquele instante eu estava
preocupado em ver logo
o apartamento.
Quando o porteiro estendeu a chave na minha direção, pois
eu chegara
um pouco antes, ela disse com uma voz que pretendia ser
durona, igual aos
seus sapatos.
- Não podemos subir todos juntos?
O porteiro tornou a recolher a chave, mantendo-a suspensa
nos dedos,
como se fôssemos crianças disputando um doce.
- A senhora vai me desculpar, mas não posso largar a
portaria - ele
disse. - O apartamento está vazio e, se a senhora não se
importar, pode
subir sozinha com ele - o porteiro apontou a chave na
minha direção.
Ela olhou para mim de cima a baixo, como se me avaliasse,
até concluir
que eu era inofensivo.
- Por mim, tudo bem - ela disse.
Aquele exame minucioso, e talvez o seu resultado, me
irritara. E
também o fato de o porteiro ter perguntado a ela se se
importava de subir
comigo, e não a mim, que chegara primeiro, se me importava
de subir com
ela. Afinal, estávamos disputando o mesmo apartamento.
Então apenas dei
de ombros, indiferente.
Mal fiz isso, ela tomou a chave da mão do porteiro e
seguiu em frente
pela aléia, ou fosse lá como fosse que se chamava aquela
passagem que,
margeando o estacionamento a céu aberto, ia dar no bloco
B, onde ficava o
tal apartamento.
Enquanto ia atrás dela, pensei que não estava sentindo
nenhuma
vontade de morar naquele condomínio composto de dois
caixotões verticais,
com o nome absolutamente ridículo de Bois de Boulogne. De
fato, era todo
ajardinado e havia algumas árvores, para parecer bucólico e
ecológico. Havia
também um playground à vista, o que significava muitas
crianças quando
não fosse hora de colégio, e uma piscina escondida em algum
lugar (eu lera
no classificado), que devia ser um tanque grande, também
cheio de crianças. Na verdade eu e Clarice preferíamos começar nossa vida num
desses prédios
mais antigos, com uma arquitetura humana, e não tínhamos a
menor
intenção de ter filhos tão cedo. Mas eu ia ver o
apartamento. Estava de férias
e programado para ver apartamentos.
Depois de subir dois lances de escadinhas, alcancei a
mulher no hall
dos elevadores do bloco B, onde nos comportamos como os
dois estranhos
que de fato éramos um para o outro. Ela pôs um cigarro na
boca, sem
acendê-lo, e uma senhora juntou-se a nós. Logo depois o
elevador chegou,
um pessoal saiu, deixamos a senhora entrar primeiro, depois
entrou ela,
depois eu. A senhora desceu no quinto andar e, até lá,
ficou olhando de cara
feia para o cigarro apagado nos lábios da mulher, que
sustentou o seu olhar.
Assim que a senhora saiu, ela acendeu o cigarro, embora
houvesse uma
plaqueta de proibição, visível no meio de vários
grafitezinhos infantilóides,
alguns meio nazistas, alguns obscenos. Mas não seria eu,
um ex-fumante,
que iria me incomodar com o cigarro dela.
- Também está procurando apartamento há muito tempo? -
perguntei,
para quebrar o gelo entre nós.
- Não. Este é o segundo. Mas são todos umas merdas.
- É verdade - eu disse, apaziguadoramente, achando graça.
Chegamos ao décimo primeiro andar, o do nosso apartamento,
e vi que
a mão dela tremia ao tentar enfiar a chave. Eu disse “Me
dá licença , peguei
a chave e a introduzi facilmente na fechadura.
Ela entrou, olhou ao seu redor, até encontrar um banheiro,
onde se
trancou imediatamente. Fui abrir a janela da sala, pois
fazia um calor abafado
ali dentro, apesar de ser outono. A primeira coisa que
notei na paisagem foi
o morro, a menos de um quilômetro de distância. Dava para
ver as pessoas
subindo e descendo a favela, como num formigueiro - não se
pode ser
original nessas coisas. Depois olhei para baixo e
encontrei a piscina. Era
melhor do que um tanque e devia estar fechada a essa hora
da tarde, porque
não havia ninguém lá. Mas o playground começava a se
povoar e os gritos
chegavam ali em cima, mas eram menos crianças do que eu
imaginara. Ainda
observei mais algumas coisinhas nos arredores, tentando
vê-los também com
os olhos da Clarice.
Dei-me conta de que a mulher estava demorando no banheiro
e
desconfiei de alguma coisa. Cocaína, por exemplo. Mas,
afinal, eu não estava
com ela, podia ver o apartamento sozinho e ir logo embora,
pois já concluíra,
mais ou menos, que o imóvel não fazia o gênero de Clarice.
Ao virar-me para examinar melhor a sala, reparei numas
irregularidades
na parede em frente, onde o sol batia nesse instante. A
massa e a pintura tinham
sido retocadas havia muito pouco tempo, em alguns pontos,
formando
pequenos calombos. Aproximei-me para vê-los de perto,
quando a mulher
saiu do banheiro. Fumava outra vez, o batom em seus lábios
fora alinhado e
ela se maquiara em torno dos olhos, que brilhavam,
avermelhados. Podia ser
cocaína, porque o seu nariz também estava congestionado,
mas achei possível
que ela houvesse apenas chorado e quisesse disfarçar com a
maquiagem.
Fingi não reparar nisso e pressionei o dedo num daqueles
calombos,
que cedeu um pouco.
- Podem ser tiros - eu disse. - Eles devem ter extraído as
balas. Por
isso o aluguel é tão barato.
Percebi que estava querendo impressioná-la, o que, a
julgar por sua
resposta, não consegui.
- Você acha barato por uma pocilga dessas? Precisa ver o
banheiro. É
ridículo.
- Estou falando de preço de mercado.
- É possível - ela falou, olhando em direção à janela. -
Mas a favela
está longe.
- Os fuzis alcançam dois quilômetros - eu disse, e vi que
continuava querendo impressioná-la.
- Você é da polícia? - ela perguntou, com uma voz
falsamente neutra
e ingênua, que significava ironia com toda a certeza.
- Não, sou jornalista.
Ela se dirigiu para a janela, sem perguntar qual era o meu
jornal ou a
área do jornalismo em que eu atuava, e achei melhor assim.
Pois, não sei por
que, senti que me sentiria um idiota se dissesse a uma
mulher como aquela
que eu era subeditor de um segundo caderno, fazendo
entrevistas por telefone
e escrevendo frescuras sobre artistas egocêntricos.
Ela atirou a ponta do cigarro lá embaixo e ficou
observando ela cair.
Depois virou-se para mim e disse, antes de se debruçar
novamente no
parapeito:
- É uma boa altura.
De repente, me passou pela cabeça que ela só tivesse vindo
ver o
apartamento para se jogar lá de cima. Podia ser mera
projeção minha, claro,
pois também sou meio neurótico e até fizera um pouco de
análise, antes de
conhecer Clarice, que me dava segurança. Mas, por via das
dúvidas, resolvi
voltar à janela, onde poderia intervir caso a mulher
fizesse menção de pular.
Confesso que, além do fato em si de não querer que um
semelhante meu se
autodestruísse, pensei também nas complicações com a
polícia, com a
imprensa e com Clarice. Como iria explicar a ela por q e
estava vendo
apartamento com outra mulher que ainda por cima se atirara
dele?
Mas, assim que me aproximei da mulher, ela disse:
- Vou dar mais uma olhada por aí.
Enquanto ela foi ver um dos quartos, que dava para os fundos
do prédio,
fui ver outro bem em frente ao dela, procurando afastar a idéia
de suicídio
da cabeça. Na verdade, sabia que deixara a análise antes
de remexer num lodo
mais profundo, e talvez para não ter de fazê-lo. E aquela
mulher, apesar de
tudo, me dava a impressão de gostar muito da vida. Apenas
tinha de ser a
vida que ela gostava.
O quarto que vi era comum, um desses quadrados que os
construtores
fazem economizando espaço. Também fora pintado
recentemente, mas não
havia calombos nas paredes. Abri a janela e depois fui dar
uma olhada no
armário embutido. Tentei abrir uma das gavetas e percebi
que alguma coisa
a estava emperrando. Puxei com força e um sutiã,
empoeirado, acabou por
soltar-se. Peguei-o e observei que, pelo seu tamanho e
desenho, fora usado
por uma mulher de seios pequenos, provavelmente uma jovem.
Nesse instante, ouvi-a exclamar alguma coisa no outro
quarto, que não
deu para entender direito. Mas dali eu podia vê-la
segurando um objeto que
não consegui identificar. Devolvi o sutiã à gaveta,
depressa, fechando-a em
seguida.
- Vem cá ver - a mulher me chamou em voz alta.
Dirigi-me rapidamente para lá e encontrei-a suspendendo
uma tira de
cortina japonesa, que ela desenrolava do chão, onde devia
ter sido largada
na
mudança. Nela, havia um buraco de bom tamanho.
- Balas! - a mulher disse, com uma espécie de alegria,
embora o
buraco fosse só um. - O tiro deve ter entrado pelo outro
quarto, atravessou
o corredor e a bala veio se alojar aqui. Aliás, pode até ter
saído de novo
-ela mostrou a janela que havia aberto. - Você tinha razão.
Os sacanas
deixaram esse lixo aqui (ela largou a cortina com
repugnância) e acharam
que a gente não ia perceber.
Fiquei satisfeito com aquele reconhecimento e acrescentei,
excitado:
- Vi poucas crianças no playground. Deve ter muita gente
deixando
o prédio.
Foi nesse momento que ela disse sua grande frase, que me
fez compreendê-la melhor:
- Morrer não tem a menor importância. O horrível é ficar
velha!
- Você está longe disso - eu disse, sentindo-me metade
idiota,
metade cafajeste. Mas percebi que uma centelha se acendera
em seus olhos.
- Estou com trinta e quatro anos - a mulher disse e olhou
para mim,
com uma certa expectativa.
- Parece ter bem menos - falei, embora ela pudesse ter
também trinta
e seis. - E mesmo que não parecesse, é uma bela idade.
- Ele parece que não acha - ela retrucou, amargamente.
- Ele quem?
- Não interessa. E você, quantos anos tem?
- Trinta e dois.
- Ele tem cinquenta - ela falou com orgulho.
Foi aí que eu disse a grande besteira, ou talvez não,
levando-se em conta
o que aconteceu depois.
- Ele te abandonou?
Sem qualquer aviso prévio, ela desatou um choro
convulsivo, de dor e
de raiva, e avançou com os punhos cerrados na minha
direção. Recuei,
amedrontado. Mas, em vez de me bater, ela se agarrou ao
meu corpo,
esfregando-se nele em movimentos sofregamente ritmados.
Olhei para a
janela, preocupado que alguém estivesse nos vendo.
Felizmente não havia
nenhum edifício alto nas proximidades.
- Ninguém jamais me abandonou, entendeu? - ela gritava. -
Ninguém, ouviu?
- Claro - eu disse, correspondendo ao seu abraço um tanto
mecanicamente,
pois continuava com medo.
- Mas o filho da puta também está comendo outra - ela
disse, e agora
chorava mais livremente.
Acariciei os seus cabelos de um modo paternal:
- É por isso que você está procurando apartamento?
Ela fez que sim, com a cabeça:
- Ele está comendo uma garota de dezoito anos. Você
compreende
bem o que isso significa?
- Compreendo - eu disse. E, de fato, compreendia tudo cada
vez
mais. - Essas coisas acontecem - tentei consolá-la.
Foi o suficiente para ela me empurrar, com brutalidade.
- Vocês são todos iguais. Não pense que não vi você
pegando aquele
sutiã. Eu não preciso usar, veja!
Ela arrancou o vestido de baixo para cima, de um só golpe.
Havia parado
de chorar tão subitamente quanto começara.
Eram seios perfeitos. Talvez houvessem sofrido uma
plástica, mas que
importância tinha isso se eram tão bonitos e gostosos? Não
havia outra coisa
a fazer senão acariciá-los, enquanto enfiava a mão em sua
calcinha branca,e
a mulher, por sua vez, desatava o meu cinto, para depois
baixar minha calça
e minha cueca, tudo de uma só vez, ajoelhando-se então aos
meus pés para
chupar o meu pau, fazendo-o crescer de uma forma
incomensurável, que
dava a ela uma satisfação intensa, que talvez não tivesse
muita coisa a ver
comigo - eu via em seus olhos de cobra -, mas com o cara
que estava
comendo a garota de dezoito anos, como se ela quisesse
provar a ele o seu
poder, que acabava provando a mim e muito bem.
Pedi um tempo, porque senão aquilo ia terminar logo, e
também para tirar
a camisa e os sapatos nos quais minha calça e cueca haviam
se enroscado, fazendo
com que eu tivesse de me apoiar na cabeça da mulher para
não perder o equilíbrio.
Enquanto eu tirava tudo, ela tirou a calcinha:
- Você quer que eu fique com ou sem os sapatos? - ela
perguntou.
- Com os sapatos - eu disse. Ela deu um risinho:
- Eu sabia. Vocês são todos homossexuais enrustidos.
Ignorei aquele comentário, pois não sou machista, e preferi
observar
meticulosamente a xoxota dela, que era bastante ostensiva, mas
bem
proporcionada
e agradável de ver, com os cabelinhos aparados.
Ela demonstrava sentir prazer com a minha observação e acendeu
calmamente mais um cigarro.
- Poxa, como você fuma, hein? - eu disse, apenas por dizer, ou
porque aquele silêncio contemplativo me deixava um pouco
embaraçado.
A resposta dela foi dar uma tragada funda e provocativa, para
depois
aproximar-se de mim, pedindo que eu a beijasse na boca. Foi um
desses beijos
profundos, sexuais, sem nada a ver com os beijos dos que se
amam. Enquanto
ele transcorria, ela foi soprando a fumaça para dentro da
minha boca,
lentamente. Eu só havia parado de fumar por causa da Clarice,
que era
antitabagista militante; então não tossi nem me engasguei,
pelo contrário;
traguei numa boa até o fundo, retendo o mais que pude a fumaça
em meus
pulmões. Se palavras podem descrever tal experiência, devo
dizer que ela me
alucinou como se eu fosse um fumador de ópio, e que foi a
maior intimidade
que jamais tive com uma mulher, como se eu a conhecesse em
todas as suas
entranhas. A falta de hábito, porém, fez com que eu me
sentisse meio tonto,
e fui descendo meu corpo, trazendo o dela comigo.
- Quer que eu faça com você uma coisa que faço sempre com ele?
-
ela perguntou.
- Quero - eu disse, ainda meio grogue.
- Então vira de bruços.
Saí do meu estupor e ergui a cabeça, assustado:
- Só se você apagar o cigarro.
- Não sou sadomasoquista - ela disse com desprezo,
amassando o
cigarro no assoalho.
Virei-me de bruços e ela veio por cima de mim, de um modo
que me
fez conhecer melhor o mecanismo das mulheres, ou pelo
menos de certas
mulheres, e também dos homens, ou pelo menos de certos
homens, como
eu e o coroa devasso. Esfregando ritmadamente a xoxota em
minha bunda,
ela dizia coisas como “meu benzinho, eu te adoro, vou te
comer todinho”.
E assim ela gozou, inquestionavelmente, pois não captei
nada de teatral em
seu orgasmo. Foi uma série de tremores silenciosos, apenas
ligeiramente
arfantes, quase introspectivos, até ela cair ao meu lado,
satisfeita. Depois
deitou a cabeça em meu peito e começou a fazer risquinhos
nele, com suas
unhas pontiagudas.
- Por favor, não faça isso - eu disse.
- Não faço por quê? - ela continuou com mais força.
Segurei os braços dela.
- Eu sou noivo.
Ela deu uma gargalhada artificial e levantou-se,
abruptamente:
- Não acredito. Estamos quase no século vinte e um e você é
noivo.
Cadê a aliança?
- Não uso. Foi apenas uma forma de dizer, já que eu e Clarice
vamos
nos casar.
- Bem, nesse caso talvez seja melhor eu ir embora - ela
disse,
dirigindo-se até onde estavam jogadas suas coisas. - Não
quero atrapalhar
a vida de vocês. Quantos anos a Clarice tem? - ela
perguntou, como que
casualmente.
- Dezenove - eu disse, embora a Clarice tivesse vinte e
quatro. Só
não falei dezoito porque ia parecer coincidência demais.
Se houvesse algum objeto ali para jogar na parede, tenho
certeza que
ela teria jogado. Como não havia, ela dava pontapés no ar,
tentando chutar os sapatões para longe, o que não conseguiu, pois eles estavam
firmemente
amarrados. Então ela pôs o vestido, mas pelo avesso. Ao
retirá-lo, quase se
sufocou com ele, ao contrário da maneira graciosa e segura
como o fizera da
primeira vez. E acabou por estar de novo nua, e de sapatos,
chorando
mansinho, como se tudo aquilo a houvesse feito amadurecer
anos, conformar-se
à realidade.
Eu não sou burro, embora as coisas que escrevia para o
segundo caderno
muitas vezes fossem. Continuei ali deitado, nu, esperando
que a histeria dela
passasse. Sabia que se aquela mulher não cometesse nenhuma
ação sem
retorno, o fato de eu ter uma noivinha de dezenove anos só
faria aumentar
o seu desejo, desta vez por mim mesmo, nem que fosse para
provar mais
alguma coisa. E, realmente, enxugando as lágrimas, ela
acabou por fazer a
inevitável pergunta do final do século.
- Você trouxe camisinha?
- Não, eu e Clarice somos monogâmicos e não usamos.
- Mas eu e ele não somos e não confiamos em ninguém - ela
disse,
indo até onde deixara sua bolsa. Remexeu lá dentro e depois
atirou para mim
uma camisinha.
- Era para usar com aquele veado - ela fez questão de
informar. -
Mas se você fizer alguma perversão comigo eu vou gritar.
- O que você chama de perversão?
- Se chegar perto, eu aviso - ela disse.
Fui por aquele troço no banheiro, onde estava mesmo precisando
ir. Lá
dentro, tentei descobrir o que ela achara tão ridículo,
pois era uma peça comum,
até confortável, com uma boa banheira. Imaginei que deviam
ser os
azulejos brancos, com figuras azuis de Vênus e de anjinhos
tocando trombetas,
possivelmente copiadas de terceira mão do banheiro de
algum palácio
na Europa. E não pude deixar de pensar, incomodado, que
Clarice gostaria
daquele banheiro, talvez o consideraria a melhor coisa do
apartamento.
Ou teria a mulher implicado com o espelho oval, com bordas
trabalhadas
em metal prateado? O espelho no qual agora eu me olhava,
percebendo
que alguma coisa mudara em meu rosto, talvez uma inocência
perdida,
pois estava traindo Clarice pela primeira vez. Tentei
pescar lá no fundo de
mim mesmo uma velha culpa, conhecida minha, e não consegui
encontrá-la.
Concluí que aquilo não era uma traição, era um
acontecimento tão inexorável
quanto uma catástrofe. Eu fora atropelado pelo destino e
só me restava
sair de novo ao seu encontro.
Encontrei a mulher na sala, deitada de costas num
colchãozinho que
ela disse ter achado no quarto de empregada. Estava nua
até dos sapatos, e,
com as pernas e os olhos semicerrados, parecia a noivinha
que, tenho certeza,
ela estava representando, com algum rubor nas faces,
talvez de ruge, mas o
que importava?
Descrições de pormenores sexuais são deselegantes e
enfadonhas. Se as
cometi, anteriormente, foi por considerar que certos atos
obedeciam a uma
lógica e motivações radicais, a uma sexualidade invulgar -
e, por que não
dizer?, refinada - que poderão servir ao enriquecimento do
eventual leitor
deste relato, feito por quem não se pretende mais do que
um repórter.
Mas creio poder revelar que gastamos duas camisinhas e
fizemos de
tudo, nesse segundo movimento, menos o que, imaginei,
devia ser a tal
perversão. Quanto aos orgasmos dela, da segunda fase,
foram quase certamente
falsos e teatrais e, por vezes, tive de tapar sua boca. Como
se ela quisesse
anunciá-los ao prédio inteiro, talvez ao mundo, mais
particularmente a
Clarice, ao tal coroa e sua garotinha. Mas o que importa,
já que os meus
foram verdadeiros, assim como os meus sentimentos?
O meu grande erro, talvez, tenha sido querer traduzir
esses sentimentos,
comentando o crepúsculo que vimos cair, o luar que agora
banhava os nossos corpos, o canto tardio de cigarras de outono. E houve um
momento em que
cheguei a dizer, ternamente:
- Poderíamos até morrer juntos.
Isso lembrou-lhe que devia ir embora.
- É melhor descermos separados, depois de todo esse escândalo.
Eu
vou primeiro e você entrega as chaves, está bem? - ela disse.
- Pretende ficar com o apartamento? - perguntei enquanto nos
vestíamos.
- Uma gaiola dessas? Você deve estar brincando.
- Vai voltar para aquele cara?
- Agora já posso - ela disse.
- Vai contar para ele o que aconteceu? - perguntei,
ajoelhando-me
para amarrar os seus sapatos, enquanto ela acendia mais um
de seus cigarros.
- Tudo é possível - ela disse. - Mas não aconselho você a
fazer o
mesmo. Sua noivinha não iria perdoá-lo.
- Talvez eu não queira ser perdoado.
- Você é louco - ela disse, encaminhando-se para a porta.
Quis acompanhá-la até o elevador, mas ela não deixou.
- Me diga ao menos o seu nome - implorei.
- O que passou, passou, está certo? Que importância têm os
nomes?
- Não quer nem saber o meu?
- Não - ela disse, batendo a porta.
O que mais dizer?
Terminei com a Clarice, voltei a fumar e vim morar
sozinho, pagando
uma mixaria de aluguel, no apartamento 1101, B, do
Condomínio Bois de
Boulougne, na expectativa, talvez fantasiosa, pelo menos
em sua segunda
parte, de que o coroa um dia aprontasse mais alguma com a
mulher, e ela,
farejando o meu destino, viesse me usar para uma nova
vingança.
Até o momento em que escrevo, isso não aconteceu. Mas,
entre
intervalos mais ou menos longos de tediosa calmaria,
muitas coisas acontecem
no Bois e suas redondezas: batalhas entre traficantes no
morro Dona
Marta, o pipocar de fuzis e metralhadoras, foguetes
sinalizadores cruzando
os ares, incursões da polícia e do exército na favela,
helicópteros voando
rasante sobre o bairro e, de vez em quando, balas
perdidas, que já furaram
novamente as paredes da sala e dos quartos.
Às vezes, engatinhando com as luzes todas apagadas, vou
deitar-me no
assoalho daquele quarto em que fui possuído pela mulher.
Entrincheirado
atrás de uma parede, acendo então um cigarro, dou uma
tragada funda, e
penso naquela que me penetrou até o âmago.
Troquei o segundo caderno pelo setor de polícia do jornal,
comprei um
binóculo potente, para observar o morro, e instalei um fax
no quarto
desabitado de empregada, cujo colchão, onde às vezes
durmo, conservei.
Dali, o local mais seguro do imóvel, envio as últimas
notícias para a redação,
às vezes quase na hora do fechamento do caderno Cidade
Escrevo à mão e
assim transmito as páginas, pois meu micro levou um balaço
que varreu para
sempre sua memória, igual a um ser humano quando apaga.
Estamos furando
todos os concorrentes no noticiário do Dona Marta.
Num domingo, enquanto olhava pensativo da janela lá para
baixo,
testemunhei quando um senhor, usando um desses shorts
largos, foi alvejado
pelas costas por um franco-atirador, no momento em que
mergulhava na
piscina semideserta do condomínio. Caiu já provavelmente
morto na água,
cujo azul se tingiu de vermelho, num contraste macabro na
manhã ensolarada
de primavera. Foi o que escrevi, e não cortaram.
Pensei, também, que morrer talvez não tivesse mesmo a menor
importância.
O sujeito havia saído de cena em grande estilo, enquanto
nós, aqui,
continuamos sofrendo por razões diversas, incluindo as
minhas. Mas não estava simplesmente fazendo frase quando escrevi, para
finalizar a matéria, com esperança de que a mulher me lesse,
entendesse tudo e
viesse me encontrar, que morrer é muito fácil no Bois de
Boulogne.
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