Matou no peito, encheu o pé com
vontade e, pimba, gol.
Sim, diz o moço da televisão,
ele foi um craque. Observem esta
seqüência, senhores
telespectadores. Falta perigosa. Vadico toma distância.
Uns poucos passos, apenas.
Vejam só. Quando corria para a bola, a torcida
fazia um coro de ôôôôôô que
terminava numa explosão de gol. Este jogo foi
em Paris. Cartazes nas ruas
anunciavam:
VÁ AO PARC DES PRINCES
VER PELÉ ET COMPAGNIE
Pelé e Companhia. Os
companheiros. Bastavam Pelé e Vadico para pagar o espetáculo. Depois dos
aplausos habituais ao rei Pelé, a multidão se
divertia com os chutes de
Vadico. Os franceses adoraram e consagraram
Vadico. Est-ce que cet homme a centpieds? O Cem
Pés. Aí nasceu o apelido.
O Cem Pés, no filme, após esse
jogo na França, exibe as canelas cheias
de cicatrizes. Denunciadoras,
diz o locutor, da violência característica dos
zagueiros que o enfrentavam.
O Cem Pés, um ídolo. Um gênio
do futebol. Vadico, sendo entrevistado,
diz que não senhor, não
trocaria essa vida com a bola por nenhuma
outra. As cicatrizes? Ele as
olhava, diz o locutor, como um prêmio amargo
pelas tantas vezes em que foi
atingido.
Não havia de culpar a vida?
Mas eu nem tenho jeito pra
contar uma história de forma organizada.
Bola pra frente. Na televisão,
aquele moço:
Onde estão os ídolos do
passado? Muitos, esquecidos, sós, abandonados.
Como vivem? O que fazem? Fomos
encontrar Vadico, o grande
artilheiro que brilhou ao lado
de Pelé, sentado num banco de parque, triste
e só, aparentando pelo menos
mais 20 anos além de sua idade real.
Enquanto a nova média esfria,
estou vendo tudo de novo pelo televisor
do bar. Repetem o filme sobre
a carreira de Vadico. Sentei aqui e pedi a
primeira média com pão e
manteiga. Molhei o pão no café com leite e
consumi logo tudo. Então, pedi
uma segunda xícara. Sorvendo devagarinho.
Agora já está meio fria. Mas
não importa. Pedi mesmo para ter o direito, sem
o portuga do garçom me
aporrinhar, de permanecer no balcão mais tempo.
Todo o tempo do programa.
É preto e branco o Fantástico
Show da Vida (nome do programa a cores,
com a moça lindinha na abertura,
levantando o braço e mostrando o
sovaquinho raspado). Sou um
velho perdido na bosta da vida, com catarata
numa das vistas. Parece que o
mundo todo virou um quarto escuro. Todas
as tardes estou num desses
bancos do parque que o filme mostra. A vida de
Vadico, bem? Tanta glória e
agora essa penúria dele, igualzinho a mim,
vivendo feito um molambo. Tem
uma estátua, nesse parque, que só consigo
enxergar bem na claridade do
dia. É o corpo de uma jovem (parece a moça
ousada do programa de televisão)
e, quando a tardinha vem caindo, o corpo
dela vai ficando monstruoso, e
vou embora para o meu quarto. Um
aposentado me aconselhou a não
andar por aí à noite, e estou ainda esperando
tratamento do Instituto para o
meu olho direito.
Velho é um peso morto, eu
disse para o homem ao meu lado, aquele
dia no parque. Observei quando
ele se aproximou e sentou junto de mim.
A boina escura, a camiseta
amarelecida sob a camisa estampada (e rota?), a
calça de casimira surrada e a
botina de solado de pneu formando a figura
dele. Assim fiquei conhecendo
Vadico. Ele chegou a me contar algumas
daquelas histórias, em que eu
nem podia acreditar. Contar histórias é
ocupação de velho. Depois vi
na televisão que era tudo verdade.
Numa tarde chuvosa de São
Paulo (é a voz do moço arrumado da
televisão), terminou seu
futebol. Não era jogador de se poupar. Teve mais
de 12 anos de carreira,
artilheiro de ataques famosos. Jogou com Garrincha,
Pelé, Gérson. Vadico não fugia
da luta. Nesta seqüência, observem, senhores
telespectadores, atenção, viu
a bola, vindo pelo alto, pulou antes do zagueiro.
Ganhou a bola (o filme
mostra), mas caiu sobre o joelho. Vejam, Vadico
permanece imóvel, gemendo de
dor.
Num rápido exame, o médico do
clube garantiu que aquilo não era
coisa grave. O craque
precisava apenas de alguns dias de recuperação. Mas
esses dias se transformaram
nos piores de sua vida. Um mês depois, estava
decidida a operação. O
tratamento à base de infiltrações e exercícios havia
fracassado.
Um moleque parou na porta do
bar, me olhou e berrou que velho tem
cheiro de égua. Levantei o
braço, num gesto ameaçador, mas muito fraco e lento, o diabinho ainda repetiu
de égua, de égua, e saiu correndo. O portuga
sorriu, me parece que sorriu,
o puto, mas que importa esse safado? Forço
bem a vista para ver o que
aconteceu a Vadico. Mas agora, na televisão,
passam uma propaganda. Ao
Sucesso, com Hollywood. E chegou para perto
essa mulherzinha morena,
animada, as pestanas muito lambuzadas de uma
tintura azul - acendo o meu
Continental, Preferência Nacional- mas sem
nenhuma outra pintura no rosto
tenso. O que a menina vai querer?, pergunta
o portuga. Esse homem era o
máximo, ela diz, olhando para o televisor. Pede
um conhaque Dreher.
Dois meses depois da operação,
continua o narrador do filme, pouca
coisa havia mudado. O joelho
do craque continuava dolorido e a perna sem
movimentos, apesar dos
exercícios todos. O tempo passava para ele, que
tinha a sua única alegria na
lembrança dos tempos gloriosos. Aí aparece
Vadico, este de agora que
conheci, um velhinho desprezado como eu
(embora tenha muito menos
idade):
- Eu vivia fazendo gols. Eram
tantos que perdi a conta. Sei apenas
que foram muitos. Pena que
acabaram.
Em seguida não se vê mais a
figura de Vadico, mas se ouve a sua voz,
enquanto mostram ele em ação:
chutando, driblando, fazendo embaixadas.
Depois, uma série de gols.
Verdadeira pintura, coisa linda de se ver. Um quadro.
As vezes, diz o locutor, a
valentia lhe custava meses de atividade. A
torcida quer uma presença
constante.
Ficaram me dando esperanças,
diz Vadico, até que um dia veio o
médico e, finalmente, revelou:
Você não pode mais jogar. Para o seu próprio
bem, o médico me disse, é
melhor encerrar a carreira. Sim, o médico
confirmou, a contusão pode se
agravar a ponto de aleijar o seu joelho. Aí eu
já estava mesmo com o joelho
mutilado por todas aquelas injeções e as
operações. Doía quando andava,
a qualquer flexão da perna. Compreendi
que era impossível resistir.
Tinha que parar. Tenho que ter coragem, pensei.
Outro conhaque, a mulherzinha
pediu, com a voz tremida, e vi que
devia ter chorado, o rosto
dela num estado deplorável.
Era mesmo uma coragem enorme,
diz o narrador da vida de Vadico, que
lhe permitia entrar na área
sob os pontapés dos zagueiros. Depois - com a
mutilação - a coragem, ainda,
de abandonar tudo aquilo que foi sua vida, e
que
lhe deu muitas glórias, até
deixá-lo inutilizado, com a perna sem mexer.
Primeiro, foi o pontapé
violento por trás, na panturrilha. Aquele beque
era um cara muito parrudo (é a
voz de Vadico, no filme), um cavalo forte.
Um grosso com a bola, é claro.
Vi que era fácil passar por ele, e não pude
resistir aos dribles. O
público aplaudiu, gritou meu nome. Cheguei a fazer
aquelas embaixadas - o filme
mostra ele controlando a bola, sem deixar
cair, várias vezes seguidas,
com o peito do pé esquerdo, uma série brilhante
de embaixadas - e a galera
vibrou. Gritaram mais alto meu nome. O filme
mostra, o Maracanã inteiro uma
só voz: va-di-co, va-di-cooo. Faltou humildade
naquele cara, Vadico prosseguiu.
Eu sei, todo jogador tem mesmo
horror de ser feito de bobo.
Porque, além dos dribles, das embaixadas, vai
receber também o riso de
gozação dos colegas, do público.
Era um boa-pinta, hein?, diz a
mulher tomando um longo gole do seu
conhaque, tremendo boa-pinta,
um macho muito do bem-apanhado.
É claro, continua Vadico, que
o jogador que parte para o bloqueio
direto a um adversário - seja
atacante, homem de meio-campo ou zagueiro-de-área
- corre sempre o risco de ser
driblado, e até de ser humilhado,
feito de bobo. Mas é um risco
que significa uma prova de dedicação ao time
e não humilhação pessoal. Mas
foi humilhação pessoal o que sentiu aquele
zagueiro. Adiei, o nome dele.
Desapareceu. Não sei por onde andará, hoje
um velho igual a mim, outro que
deve estar perdido por aí (a voz vai se
tornando muito baixa, quase
que não se ouve ele falar), mais um expulso da vida. Mas é isso (ouve-se melhor
agora): na manobra do bloqueio, o primeiro
jogador tem que se expor no
drible. Se ele conseguir tomar a bola, tudo bem.
Se for driblado, pode se
irritar e até perder a cabeça. Como aquele becão, o
tal Adiei. Foi aí que veio a
bola dividida, e minha perna ficou. A mulherzinha
deposita com ruído o copo no
balcão:
Merda de vida.
Há três dias encontrei Vadico
pela última vez. Vi você na televisão, eu
disse, alegremente, quando ele
se aproximou de mim no banco do parque.
Estava tomando café e vi tudo
pelo televisor do bar. Muita gente viu.
Contar histórias é ocupação de
velho, Vadico disse.
Eu não sei contar direito, mas
é isto que conto: estão repetindo agora
o filme e estou tomando café
de novo e assistindo de novo, e tem essa mulher
que já mandou uns quatro
conhaques, está de porre e não pára de chorar. E
repetem o filme por causa do
que Vadico fez ontem. (Se essa puta porrista
parasse com o faniquito dela,
eu ia me sentir melhor, mas ela tem razão:
merda de vida.)
O único patrimônio que ele
guarda com carinho, diz o mocinho bonito
da televisão (esse aí, é
claro, não cheira a égua velha), é esta bola (a bola
enche toda a tela do televisor), e
Vadico, entrevistado no seu quartinho pequenino
e limpo, diz, foi um chute,
que dei nela, que deu o tricampeonato ao nosso
time. Me lembro muito bem. Mal
o juiz apitou o final da partida, me abracei
a essa boneca aí e disse, é
minha, e está comigo até hoje.
Acordo todos os dias muito
cedo. Vadico diz logo depois, e saio pra
rua, que está sempre meio
deserta, tem só uns poucos trastes, que vão
madrugar no trabalho, ou essa
gente que vem da noite. Não há muito o que
fazer, moço, a mesma coisa
todos os dias, a mesma coisa sempre. A gente
procura nas pessoas que passam
ou nas notícias dos jornais assunto para
conversa durante o dia no
parque (aí o filme mostra ele sentado no banco
do parque; Vadico sozinho
visto ao longe, e umas crianças que passam e
olham com desagrado para a
figura dele, meio recostado no banco). Mulher,
moço? Quando acabou o futebol,
elas acabaram também. Sim, houve
algumas delas, mas parece que
eu não levava muito jeito com elas não (um
riso meio forçado, que vira uma
careta), é, pois é, com as zinhas deu zebra.
E a mulher do bar, quase aos
gritos: Mais um, porra. O portuga veio com a
garrafa e ela: Manda. O garçom
entortou a garrafa, o líquido escorrendo em
conta-gotas, e a puta, impaciente:
Capricha. Pode caprichar. Pegou na mão
do homem, entortando mais: Assim.
Aí tá bom. E emborcou a nova dose
até a metade.
Hoje Vadico é notícia em todos os
jornais e tem essa bruaca que não
para de beber e de chorar. Tinha
que dar zebra, né, Vadico?, com umas tipas
como essa aí ao lado, o que você
queria, meu amigo? E agora é o final do
filme, que repetiram inteirinho
porque ontem, como está dizendo agora esse
moço aí na televisão, o famoso Cem
Pés se libertou com as próprias mãos.
E foi a primeira coisa que vi,
hoje, nas manchetes dos jornais espetados nas
bancas: a notícia de que Vadico, o
famoso ídolo do passado, o célebre Cem
Pés - um Deus dos estádios - tinha
se matado, cortado o pescoço com
uma navalha.
Assim que o filme terminou, eu
paguei e me levantei para sair. Foi aí
que a mulher arriou a cabeça sobre
o balcão do bar, empurrando num gesto
involuntário o copo de conhaque,
ao mesmo tempo em que, abrindo a mão,
libertou um frasco pequenino, sem
tampa, de onde rolou uma pilulazinha
verde. Só uma. As outras, o diabo
da criatura tinha engolido com o conhaque.
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