A rua ruim de novo.
Abafava, de quente, depois de umas chuvadas de vento,
desastrosas e
medonhas, em janeiro. Desregulava. Um calorão azucrinava o
tumulto, o
movimento, o rumor das ruas. Mesmo de dia, as baratas saíam de
tocas
escondidas, agitadas. Suor molhava a testa e escorria na
camisa dos que
tocavam pra baixo e pra cima.
O toró, cavalo do cão, se arrumava lá no céu. Ia castigar outra
vez, a
gente sentia. Ia arriar feio.
Dera, nesse tempo, para morar ou se esconder no oco do tronco
da
árvore, figueira velha, das poucas ancestrais, resistente às
devastações que
a praça vem sofrendo.
Tenta a vida naquelas calçadas.
Pisando quase de lado, vai tropicando, um pedaço de
flanela balanga no punho, seu boné descorado lembra restos de Carnaval. E assim
sai do oco e baixa na praça.
Só no domingo, pela missa da manhã, oito fregueses dão a
partida sem lhe pagar. Final da missa, aflito ali, não sabe se corre para a
direita ou para a esquerda, três motoristas lhe escapam a um só tempo.
Flagrado na escapada, um despachou paternal, tirando o carro
do ponto
morto:
- Chefe, hoje estou sem trocado.
Disse na próxima lhe dava a forra.
Chefe, meus distintos, é o marido daquela senhora. Sim.
Daquela santa mulher que vocês deixaram em casa. Isso aí - o marido da
ilustríssima. Passeiam e mariolam de lá
pra cá num bem-bom de vida. Chefe, chefe... Que é que vocês estão pensando?
Mais amor e menos confiança.
Mas um guardador de carros encena bastante de mágico,
paciente,
lépido ou resignado. Pensa duas, três vezes. E fala manso.
Por isso, Jacarandá
procura um botequim e vai entornando, goela abaixo, com a
lentidão necessária à matutação. Chefe... O quê? Estão pensando que
paralelepípedo é pão-de-ló?
- Assim não dá.
Havia erro. Talvez devesse se valer de ajudante, um garoto
molambento mas esperto dos descidos das favelas, que mendigam debaixo do sol da
praça, apanham algum trocado, pixulé, caraminguá ocioso e sem serventia
estendido pela caridade, inda mais num domingo.
Que dão, dão. Beberica e escarafuncha. Difícil saber. Por
que as pessoas dão esmola? Cabeça branquejando, o boné pendido do lado reflete
dúvidas. Três tipos de pessoas dão. Só
uma minoria - ninguém espere outro motivo - dá esmola por entender o miserê. Há
a maior parte, no meio, querendo se ver livre do pedinte. O terceiro grupo,
otários da classe média, escorrega trocados a esmoleiros já que, vestidos
direitinhamente, encabulariam ao tomar o flagra em público - são uns duros, uns
tesos. Para eles, não ter cai mal. Se é domingo, pior. Domingo é ruim para os
bem-comportados. Apesar da pinga, esses
pensamentos não o distraem de suas necessidades cada vez mais ruças, imediatas.
Se trabalhou, guardando-lhes os carros, por que resistem ao pagamento da
gorjeta? Eles rezando na Catedral e, depois, saindo para flanar. Teriam dois
jeitos de piedade - um na Catedral, outro cá fora? Chamou nova uca para abrir o
entendimento. Muita vez, batalhando
rápido nas praças e ruas, camelando nos arredores dos hotéis e dos prédios
grandes do centro, no aeroporto, na rodoviária, notou. Ele era o único que
trabalhava. Muquiras, muquiranas. Aos
poucos, ondas do álcool rondando a cabeça, capiscou. Os motoristas caloteiros e
fujões, bem-vestidinhos, viveriam atolados e amargando dívidas de consórcio,
prestações, correções monetárias e juros, arrocho, a prensa de taxas e impostos
difíceis de entender. Mas tinham de
pagar e não lhes sobrava o algum com que soltar gorjeta ao guardador. Isso. O
automóvel sozinho comia-lhes a provisão. Jacarandá calculou. Motorista que faça
umas quatro estacionadas por dia larga, picado e aí no barato, um tufo de
dinheiro no fim do mês. Vamos e venhamos.
Se não podiam, por que diabo tinham carro? O portuga diz que quem não tem
competência não se estabelece. Depois, a galinha come é com o bico no chão.
Tomar outra, não enveredar por esses negrumes. Nada.
Corria o risco de desistir de guardador. Ele sabia, na pele, que quem ama não
fica rico. E, se vacilar, nem sobrevive. Para afastar más inclinações, pediu
outra dose.
À tarde, houve futebol; suaram debaixo de um sol sem brisa.
Ele mais um
magrelo de uns oito anos, cara de quinze. A sorte lhes sorriu
um tanto; guardando uma fileira de carros no estádio, levantaram uns trocos, o
crioulinho vivaço levou algum e o homem foi beber. Havia se feito um ganho.
Quando a peça não tem o que fazer, não tem nada o que
fazer. Já não tem gana, gosto. E nem capricho;
acabou a paciência para amigo ou auditórios. Distrações suas, se há, vêm da
necessidade e dos apertos. Não que o distraiam; certo é que o aporrinham.
Depois, não é de lamentações; antes, de campanar. Nem joga dominó ou dama, a
dinheiro, com os outros, enfiados na febre dos tabuleiros da praça na sombra
das mangueiras. Mas que espia, espia, vivo entendedor. Goza com os olhos os
lances errados dos parceirinhos bobos.
Nem sustentava a vitalidade dos guardadores. Bebia,
lerdeava, e depois da hora do almoço largava-se cochilando no oco da figueira.
Era acordado pela molecagem de motoristas gritalhões. Nada de grana e ainda
desciam a língua:
-Pé-de-cana! Velho vagabundo!
Os cabelos pretos idos e, de passagem, a vivacidade, a
espertice, o golpe de vista, o parentesco que guardadores têm com a trucagem
dos camelôs e dos jogadores de chapinha, dos ventanistas, dos embromadores e
mágicos, dos equilibristas e pingentes urbanos. Surgir nos lugares mais
insuspeitados e imprevistos, pular à frente do motorista no momento em que o
freguês não espera. Miraculosamente, como de dentro de um bueiro, de um galho
de árvore, de dentro do chão ou do vão de alguma escadaria. Saltar rápido e eficiente,
limpando com flanela úmida o pára-brisa, impedindo a escapada e cobrando com
cordialidade. Ironizar até, com humildade e categoria, tratando o cara de
doutor. E de distinto.
Aos trompaços dos anos e minado pelo estrepe dos
botequins, ele emperrara a sua parte dessa picardia levípede.
Havia cata-mendigos limpando a cidade por ordem dos mandões
lá de
cima. Assim, no verão; os majorengos queriam a cidade
disfarçada para
receber turistas e visitantes ilustres. Os jornais, as
rádios e a televisão
berravam e não se sabia se estavam denunciando ou atiçando os assaltantes
e a violência
das ruas. Quando em quando, o camburão da polícia cantava
na curva da praça e arrastava o herói, na limpeza da vagabundagem, toda essa
gente sem registro. A gente do pé inchado. Ele seguia, de cambulhada, em
turminha. Lá dentro do carrão, escuro e
mais abafado.
Cambaio, sapatos comidos, amuava e já se achava homem que
não precisava de leros, nem tinha paciência para mulher, patrão ou amizadinha. De bobeira, tomava cadeia; saía, de novo
bobeava, o metiam num arrastão.
Lá vai para o xilindró.
- Chegou o velho chué.
No chiqueiro da polícia mofava quinze dias, um mês. Velho
conhecido e cadeeiro, sim, era salvado com zombaria que parecia consideração na
fala dos freges e dos cafofos. Banguelê:
- Chegou o velho cachaça!
Se entre o pessoal, se os mais moços, se os mais fortes
não o aporrinhavam com humilhações, desintoxicava ali, quieto nos cantos que
lhe permitiam.
E tem que, não bebido, volta. E outro. Os movimentos do
seu corpo ainda magro de agora lembram os movimentos do corpo antigo. O verde das
árvores descansa, ah, assobia fino e bem, ensaia brincar com as crianças da
praça. Dias sem cachaça, as cores outra vez na cara, concentra um esforço, arruma
ajudante, junta dinheiro. Quando quer, ganha; organizado, desempenha
direitinho. Nas pernas, opa, uma agilidade que lembra coisa, a elegância safa
de um passista de escola de samba.
Vem carro acolá:
- Deixa comigo.
Mas na continuação, nem semana depois, derrapava. A cana,
à uca, ao mata-bicho. Ao pingão. Fazia um carro; molhava o pé. Fazia mais,
bebia a
segunda e demorava o umbigo encostado ao balcão. Dia depois de
dia
entornando, perdia fregueses e encardia, não tomava banho. Ia
longe o
tempo em que dormia em quarto de pensão. E nem se lembrava de
olhar o
mar. Enfiava-se, se encafuava no oco do tronco da árvore
velha, tão esquecida
de trato. Fizera o esconderijo e, então, o mulherio rezadeiro
das segundas e sextas-feiras ia acender suas velas para as almas e para os
santos ao pé de outras árvores. E xingavam quem lhes tomara o espaço.
Dizia-se. Miséria pouca é bobagem.
A praça aninhava um miserê feio, ruim de se ver. A praça
em Copacabana tinha de um tudo. De igreja à viração rampeira de mulheres
desbocadas, de ponto de jogo de bicho a parque infantil nas tardes e nas
manhãs.
Pivetes de bermudas imundas, peitos nus, se arrumavam nos
bancos encangalhados e ficavam magros, descalços, ameaçadores. Dormiam ali
mesmo, à noite, encolhidos como bichos, enquanto ratos enormes
corriam ariscos ou faziam paradinhas inesperadas perscrutando os canteiros.
Passeavam cachorros
de apartamento e seus donos solitários e, à tarde, velhos
aposentados se reuniam e tomavam a fresca, limpinhos e direitos. Também
candinhas faladeiras, pegajosas e de olhar mau, vestidas fora de moda, figuras
de pardieiro descidas à rua para a fuxicaria, de uma gordura precoce e
desonesta, que as fazia parecer sempre sujas e mais velhas do que eram, tão
mulheres mal amadas e expostas ao contraste cruel do número imenso das
garotinhas bonitas no olhar, na ginga, nos meneios, passando para a praia, bem
dormidas e em tanga, corpos formosos, enxutos, admiráveis no todo... também comadres
faladeiras, faziam rodinhas do ti-ti-ti, do pó-pó-pó, do diz-que-diz-que novidadeiro
e da fofocalha no mexericar, à boca pequena, chafurdando como porcas gordas
naquilo que entendiam e mal como vida alheia, falsamente boêmia ou colorida
pelo sol e pela praia, tão aparentemente livre mas provisória, precária,
assustada, naqueles enfiados de Copacabana. Rodas de jogadores de cavalos nas
corridas noturnas se misturavam a religiosos e a cantarias do Nordeste. Muito
namoro e atracações de babás e empregadinhas com peões das construtoras. Batia
o tambor e se abria a sanfona nas noites de sábado e domingo. Ou o couro do
surdo cantava solene na batucada, havia tamborim, algum ganzá e a ginga das
vozes mulatas comiam o ar. Aquilo lhe
bulia - se a gente repara, a batida do pandeiro é triste. Ia-lhe no sangue. Os
niquelados agitavam o ritmo, que o tarol e o tamborim lapidam na armação de um
diálogo.
O vento vindo do mar varria a praia e chegava manso ao
arvoredo noturno. Refrescava.
Os olhos brilhavam, quanto, ficavam longe, antigos e quase
infantis numa lembrança ora peralta, ora magnífica. O samba. Era como se ele soubesse.
Lá no fundo. O que marca no som e o que prende e o que importa é a percussão.
Mas meneava a cabeça, como se dissesse para dentro: “deixa pra lá”.
Outra vez. Na noite, o bacana enternado, banhado de novo,
estacionou o carro importado, desceu. Entrou na boate ali defronte, ficou
horas. Saiu, madrugada, lambuzado das
importâncias, empolado e com mulher a tiracolo.
Jacarandá, bebido e de olho torto, vivia um momento em que
fantasiava grandezas, tomando um ar cavalheiresco.
O rico, no volante, lhe estendeu uma moeda.
A peça, altaneira no porre, nem o olhou: - Doutor, isso aí
eu não aceito. Trabalho com dinheiro; com esse
produto, não.
Avermelhado, fulo, o homem deu partida, a mulher a seu
lado sacudiu, o carrão raspou uma árvore e sumiu. Pneus cantaram. O menino já tinha se mandado, pegara o rumo
do morro e, não estivesse no aceso de um pagode, sambando, estaria dormindo no
barraco. Era hora.
Jacarandá, cabeça alta, falou-lhe como se ele estivesse:
- Xará, eu ganho mais dinheiro que ele. É que não saio do
botequim.
Aí, foi para dentro do oco da árvore, encostou a cabeça e
olhou a lua.
Muito bom.
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