Eu tinha um alicate que só vendo,
encabado de plástico amarelo, na
escuridão fosforecia; de aço alemão legítimo; usei oito
anos quase todo
dia, foi meu companheiro em Ibitinga, Acaraí, Salto
Osório, Ilha Solteira e
Salto Capivara. Se juntasse um metro de cada fio que
cortei naquele alicate,
tinha cobre pro resto da vida. Daí, quando você perde uma
ferramenta que
já usou muito, é o mesmo que perder um dedo.
Foi quando eu trabalhava em Salto Capivara; era solteiro,
não pensava
em nada, a vida era uma estrada sem começo nem fim, por
onde eu passeava
me divertindo, até o trabalho era uma diversão, eu achava
que ser barrageiro
era uma grande coisa. Só precisava assinar um contrato de
trabalho, nunca
esquecer de ter sempre um capacete na cabeça, bota de
borracha no pé e o
resto a Companhia dizia o que eu devia fazer. Terminando
uma barragem,
me mandavam pra outra e a vida continuava sendo uma
estrada alegre.
Naquele dia eu tinha voltado da barragem, tinha acabado de
tomar
banho, e a gente ia se vestindo pra jantar, eu botando a
camisa, 50 Volts
penteando o cabelo fazia uns cinco minutos; passava na
cabeça uma pasta
fedida, que ele achava perfumada, e ficava meia hora no
espelho, depois tirava
os cabelos grudados no pente e jogava no chão. Alojamento
de barrageiro é
catinguento por isso: um joga cabelo no chão, outro cospe,
outro deixa toalha
úmida no beliche, janela sempre fechada porque sempre tem
uma turma
dormindo, outra saindo, outra chegando; a construção da
barragem não pára
dia e noite; mas eu pelo menos nunca tive de dormir na
mesma cama de
outro em outro turno, cama-quente como dizem, é coisa de
hoje em dia,
parece que piorou.
Então, a gente ali se arrumando, faltando meia hora pra
janta, entra um
cara de macacão amarelo, perguntou se eu era eu e se 50
Volts era ele mesmo.
Depois perguntou dos outros eletricistas, 50 Volts falou
que não tinha filho
grande. O cara não se conformou e perguntou se, antes de
sair, não tinham falado
aonde iam; 50 Volts repicou que eles saíam sem tomar a
bênção, aí o cara ficou
olhando, olhando, e falou tá certo, negão, tá certo, vou
arrumar um jegue pra
você gozar. 50 Volts foi repicar de novo mas o cara falou
que, quanto mais
cedo encontrasse os outros, mais cedo a gente partia.
Aí 50 Volts perguntou onde ia ser a festa, o cara
respondeu sério: no
Rio de Janeiro, engraçadinho. Eu olhei pela porta e vi uma
caminhoneta
amarela com chapa do Rio, virei pra 50 Volts e falei que
não era brincadeira
do homem. Então entrou outro cara de macacão amarelo com
os três
eletricistas que tinham saído, tirou um papel do bolso,
falou meu nome e o
do 50 Volts e perguntou pro outro: cadê esses dois?
Eu vi que era papel da Companhia, já fui tirando a roupa
boa e botando
a de serviço, mas 50 Volts ainda foi discutir com os
homens: tinha saído de
dois turnos seguidos, dezesseis horas trabalhando duro,
não tinha jantado,
e que pressa é essa, coisa e tal, mas os homens só falaram:
se atrasar, peão,
a gente te larga aí, você quem sabe da tua vida. 50 Volts
disse que era isso
mesmo, na sua vida quem mandava era ele, mas já começando
a se trocar.
Vai de roupa boa, um dos caras avisou; e o outro: - No
caminho a
gente pára pra pegar umas donas. Aí 50 Volts arrumou a
mala num minuto,
trepamos os cinco na caminhoneta mais os dois caras na
cabine. Paramos no
escritório da Companhia, uma secretária gostosinha saiu
com uns papéis pra
gente assinar ali na caminhoneta mesmo, todo mundo assinou
e quase nem
deu tempo de devolver a caneta; arrancaram num poeirão e a
gente foi
descobrindo que era acolchoado ali na carroceria, mesma
coisa que um
colchão, com cobertura de lona - e num canto dois caixotes
de isopor.
50 Volts destampou um dos caixotes, era só latinha de
cerveja com gelo picado e no meio uma garrafa de conhaque; no outro caixote,
mais cerveja e um litro de cachaça amarela. Aí um dos caras da cabine
olhou pra trás, bateu no vidro pra todo mundo olhar, fez sinal enfiando o
dedão na boca: a
gente podia beber à vontade!
Dali a uma hora pararam numa churrascaria, cada um desceu
como
pôde, alguns já de pé redondo, e os homens já foram
avisando: - Podem
comer à vontade que é por conta. A gente sentou e começou
a desabar uma
chuva de espeto na mesa - de costela, de cupim, galeto,
lombo, lingüiça,
maminha, alcatra, fraldinha, picanha, até que enjoei de
comer. Lembrei de
perguntar que diabo de ponte era aquela que a gente ia
iluminar, mas o
assunto geral era mulher e tornamos a embarcar bebendo
cerveja com
conhaque, naquele assanhamento de quem vai amassar saia e
esticar sutiã, e
não rodou cem metros a caminhoneta parou, 50 Volts falou
Deus me proteja
duma congestão.
A casa tinha cinco mulheres, na conta certa; pra 50 Volts
sobrou uma
gorda de cabelo vermelho, eu fiquei com uma moreninha de
feição delicada,
peito durinho, barriga enxuta, mas bastou um minuto pra
ver que era uma
pedra. Eu enfiava a mão nela, era o mesmo que enfiasse no
sofá, dentro só
tinha palha; e a gorda com 50 Volts ali do lado no maior
fogo, a mulher
parecia que tinha um braseiro dentro.
Bolero na vitrola, todo mundo naquela agarração, de vez em
quando uma
dona levantava pra buscar mais cerveja, trocar o disco; e os
dois caras de
macacão
amarelo lá fora feito cachorros de guarda. Aí um casal
procurou quarto, depois
outro; e eu ali com aquela pedra, 50 Volts com a gorda
sentada no colo, lambendo
a orelha dele, o pescoço, o sofá parecia um bote na água,
jogava pra cá, pra
lá, eu não sabia como 50 Volts ainda não tinha rumado pro quarto. E
a minha dona
ali, com a mão no meu joelho como se fosse um cinzeiro; eu
falava alguma coisa
no ouvido dela, ela respondia pois é, é, não e.
Aí avancei o corpo pra encher o copo, vi a mão de 50 Volts
no outro
joelho da minha moreninha. Então passei o braço por trás e
peguei na orelha
da gorda sem ele perceber; só ela; fiquei enfiando e
rodando o dedo e ela me
olhando, foguetada, mexendo a língua pra mim. Aí chamei 50
Volts pra
urinar lá fora, mostrei pra ele como a noite estava
estrelada e perguntei se
não queria fazer uma troca, aí voltamos e já sentei com a
gorda e ele com a
moreninha, coitado. Pra mim, foi só o tempo de sentar,
balançar o bote um
minuto e rumar pro quarto.
A gorda foi tirando a roupa de pé na cama, eu com medo do
estrado
da cama quebrar e ela ali tirando tudo e dando uns
pulinhos. Era gorda mas
muito equilibrada, pra tirar a calcinha ficou num pé só,
depois só no outro,
e vi que tinha cabelo vermelho em cima e embaixo. Ficou de
sutiã preto, um
sutiã miudinho e apertado demais, tanto que, quando tirou,
a peitaria
pareceu pular pra fora. Aí ela deu uma volta completa,
rodando o corpo,
meio sem graça, querendo mostrar que era gorda mesmo e não
tinha
vergonha de ser gorda. Depois me encarou de novo, abriu as
pernas e
perguntou se eu achava gorda demais, respondi que ela
valia quanto pesava,
e também fiquei de pé na cama, já quase sem roupa.
Então a dona me agarra e desaba comigo, o estrado rebentou
e ela me
apertando no meio das pernas e dizendo magrelinho,
magrelinho; e eu
perdido no meio daquela imensidão; até que ela sentou em
cima de mim,
no mesmo instante em que bateram na porta: - Hora de
zarpar, peão!
Eu era o último. Quando saí, 50 Volts e os outros já estavam
na
caminhoneta, foi montar e tocar. A gorda apareceu na janela
enrolada numa
toalha, abanou a mão e comecei a pensar. Os caras pagavam
até mulher pra
nós - a troco de quê? A caminhoneta entrava em curva a
mais de cem por hora. De repente dava pressa nos homens, depois de perder tanto
tempo.
Começou a chover grosso e a caminhoneta continuou furiosa,
zunindo
no asfalto molhado. Os outros dormiram, todo mundo
embolado, joelho
com cabeça, cotovelo com pescoço; eu varei a noite de olho
estalado.
Amanhecendo, comecei a cabecear, 50 Volts acorda e diz que
eu devia ter
dormido, se estavam com tanta pressa, decerto a gente já
ia chegar trabalhando.
Perguntei se ele já tinha comido minha mãe pra me dar
conselho, mas
ele continuou. Que eu devia ter dormido. Que a barra ia
ser pesada. Os
homens tinham ordem de entupir a gente de bebida, fazer
cada um dar sua
bombada, comer carne quente até quadrar, tudo aquilo, pra
depois ninguém
reclamar folga, só podia saber, claro: - Já viu tanto
agrado de graça?
Com aquele céu vermelho, amanhecendo, achei que ele estava
exagerando, falei que ninguém morre de trabalhar num
domingo. Aí ele
falou não sei, acho que a gente não sai de cima dessa
ponte até o serviço
acabar ou acabarem com a gente...
Os homens pararam pra um café completo, com pão, queijo,
manteiga,
mel, leite e bolacha, 50 Volts fez careta mas continuei a
achar que ele estava
exagerando.
Quando vi o Cristo Redentor, dali a um minuto a caminhoneta
parou.
Era a ponte.
Aquilo é uma ponte que você, na cabeça dela, não enxerga o
rabo. Me
disseram depois que é a maior do mundo, mas eu adivinhei
na hora que vi;
só podia ser a maior ponte do mundo. Faltava um mês pra
inauguração e
aquilo fervia de peão pra cima e pra baixo, você andava
esbarrando em
engenheiro, serralheiro, peão bate-estaca, peão
especializado igual eu,
mestre-de-obras, contramestre, submestre, assistente de mestre e todos os
tipos
de mestre que já inventaram, guarda, fiscal, ajudante de
fiscal, supervisor
de
segurança dando bronca em quem tirava o capacete - e
visitante, volta e
meia aparecia algum visitante de terno e gravata, capacete
novinho na cabeça,
tropeçando em tudo e perguntando bobagem. Um chegou pra
mim um dia
e perguntou se eu não estava orgulhoso de trabalhar na
maior ponte do
mundo. Respondi olha, nem sabia que é a maior ponte do
mundo, pra mim
é só uma ponte. Mas ele insistiu. Pois saiba que é a maior
ponte do mundo,
e trabalhar nela é um privilégio pra todos nós. Aí eu
perguntei nós quem? O
senhor trabalha no que aqui?
Deu aquele alvoroço, quem pegou meu angu, quem botou
caroço, coisa
e tal, mas ninguém veio me encher o saco porque um
eletricista a menos, ali,
ia fazer muita diferença. Tinha serviço pra fazer, deixar
de fazer, fazer
malfeito; sobrava serviço e faltava gente; mas se botassem
mais gente ia faltar
espaço naquela ponte. A parte elétrica, quando a gente
chegou, estava crua
de tudo; o pessoal trabalhava dia e noite com energia de
emergência, um
geradorzinho aqui, outro ali, bico de luz pra todo lado,
fio descascado,
emenda feita a tapa. Cada peão daqueles levava mais choque
num dia do que
um cidadão normal na vida toda.
E foi aquilo que deram pra gente arrumar, um monte de fio
que entrava
aqui, saía ali, ninguém entendia por que nem como; uma
casa-de-força com
ligação pra todo lado sem controle nenhum, parecia uma vaca
com duzentas
tetas, uma dando leite, outra dando café, outra café com
leite... E dava
sobrecarga toda hora; uma parte da energia a cento e dez,
outra parte a
duzentos e vinte, de um lado Niterói, do outro lado o Rio
e no meio uns
vinte eletricistas varando noite sem dormir pra botar
aquilo em ordem.
Cada dia chegava um eletricista novo, e o serviço
continuava sem
render. Primeiro foi preciso montar uma central de força,
as caixas de
distribuição, cada seção da ponte com uma subcentral; e
nisso a gente mais sapeou que ajudou, quem meteu a mão nessa parte foi um
engenheiro loirão e o pessoal dele. Aí a gente entrou na parte de estender
fiação, arrumar os conduítes, ligar os cabos, puxar luminária, montar a
iluminação interna -
porque a ponte tem alojamentos, postos de controle,
laboratório, tudo
embutido nela.
E era tudo na base do quilômetro. Tantos quilômetros de
fio aqui,
tantos quilômetros de cabo ali. E era dia e noite, noite e
dia. Hora-extra
paga
em triplo, todo mundo emendando direto, dezoito, vinte,
vinte e quatro
horas de alicate na mão, e os homens piando no teu ouvido:
mete a pua,
moçada, mete a pua que só tem mais um mês! Mete a pua que
só tem mais
três semanas! Só mais quinze dias, mete a pua!
Um dos que foi comigo, o Arnaldo, no sétimo dia já caiu
debruçado
de sono, ficou dormindo com a boca quase no bocal de um
cabo de alta
tensão; saiu da ponte direto pro hospital, não voltou
mais, acho que foi
despedido, não sei. Um paraibano aprendiz, que trabalhava
cantando, nem
sei o nome que tinha, esse caiu de quatro metros em cima
duma laje, uma
ponta de ferro da concretagem entrou um palmo na coxa, foi
levado
sangrando demais. Mas voltou três dias antes da
inauguração, coxo feito um
galo velho e feliz de voltar a trabalhar.
E os homens no ouvido da gente: mete a pua, pessoal, que
só tem mais
uma semana! Um peão passou por cima de um cabo de alta
tensão no chão,
empurrando uma carrinhola de massa; passou uma, passou
duas, na terceira
vez passou a roda bem na emenda do cabo, ouvi aquele
estouro e só deu
tempo de ver o homem subindo no ar como quem leva uma
pernada, caiu
com a roupa torrada, a botina foi parar dez metros longe.
Aí era aquele
zunzunzum, quem é que tinha deixado um cabo ativado
daquele jeito no
chão, como é que pode, coisa e tal, enrolaram o defunto
num cobertor e
mete a pua, tem só mais uma semana, pessoal!
Um dia que eu subi num poste vi a ponte de cabo a rabo,
calculei dois
mil, três mil homens, sei lá quantos, mais que em qualquer
barragem que
conheci. Igual um formigueiro que você pisa e alvoroça.
Todo mundo com
raiva, peão dando patada em peão, um atropelando o outro
porque os
homens não paravam de gritar, falta uma semana, faltam
seis dias!
Um frangote de macacão amarelo passava de duas em duas
horas com
café quente em copinho de papel, a gente bebia e cuspia
saliva preta sem
parar; falta de sono, quando junta muita, vai salivando a
boca - já viu isso?
Onde tinha no chão cuspida preta, tinha passado peão com
vinte, vinte e
quatro, trinta horas de serviço sem parar. Peão dormia
embaixo de encerado,
em cama de campanha no chão, um aqui dormindo e outro ali
batendo
martelo, serra elétrica comendo ferro noite adentro,
betoneira girando,
caminhão arriando caçamba. Tinha homem ali que era preciso
acordar com
balde dágua, o cara levantava piscando, sonambulava
perguntando o que
tinha pra fazer. Se alguém dissesse se apincha aí no mar,
o cara obedecia.
O mar rodeando lá embaixo tudo, o sol lá fora e a gente
enfurnado, mesmo ao
ar livre era como num túnel, ninguém tinha tempo pra
erguer a cara, pra
cuspir e ver a cuspida chegar no chão.
Você deitava mais morto que vivo mas o olho não fechava, até
o corpo
ir relaxando devagar, aí depois dumas duas horas a gente
dormia, logo
acordava ouvindo: tem só mais cinco dias, gente, cinco dias!
- e parecia que
você tinha dormido cinco minutos, o corpo quebrado nas
juntas, a cabeça
estralando e afundando, olho seco, cheio duma areia que não
adiantava lavar,
e lá vinha o frangote do café. Você olhava o relógio; a
folga era sempre de
oito horas mas, descontando o tempo perdido até conseguir
dormir, mais o
tempo de tomar um banho antes, barbear, coisa e tal, dava
menos de cinco
horas de sono. Aí 50 Volts deixou crescer a barba. Depois
todo eletricista deixou de tomar banho, a gente catingava na
última semana. As vezes eu ouvia um tapa, era um de nós se
batendo na cara
pra acordar. Eu beliscava a orelha, ou então o bico do
peito, pra segurança
de estar vivo; certas horas tudo parecia meio sonho, a
falta de sono tonteia
o cabra até o osso.
A comida pra turma dos eletricistas vinha numas bandejas
de alumínio
com tampa de pressão, a gente destampava e comia onde
estivesse. Na terceira
vez que destampei e vi feijoada, fiquei sabendo que era
sábado e no outro
dia era domingo. Ia ser o terceiro domingo que trabalhava
continuado. Então
virei pra 50 Volts e falei - Quer saber duma coisa, negão?
- pra mim chega.
O frangote do cafezinho veio passando, mandei ele enfiar
café no rabo,
saí atrás do mestre da turma. 50 Volts foi junto. Nem
precisei falar, o homem
adivinhou que eu ia pedir a conta e sumir daquela ponte,
me enfiar numa
pensão e dormir, eu só via cama na minha frente. 50 Volts
vivia economizando
pra voltar pra terra dele e comprar um bar, então achei
que só estava me
acompanhando de curioso, mas na frente do mestre ele
também pediu a
conta. Não sou bicho pra trabalhar sem parada, ele falou,
e o mestre
concordou, mas disse que não podia fazer nada, ele mesmo
estava até com
pretume na vista mas não podia fazer nada, a gente tinha
de falar com o
encarregado do setor elétrico.
Fomos falar com o tal encarregado, depois com um
engenheiro, depois
com um supervisor que mandou chamar um engenheiro da nossa
Companhia.
Esses homens são da sua Companhia, engenheiro, ele falou,
estão
pedindo a conta. A Companhia está empenhada nessa ponte,
gente, falou o
engenheiro, vocês não podem sair assim sem mais nem menos.
Tinha uma
serra circular cortando uns caibros ali perto, então só
dava pra falar quando
a serra parava, e aquilo foi dando nos nervos.
Falei que a gente tinha o direito de sair quando quisesse,
e pronto. Nisso
encostou um sujeito de terno mas sem gravata, o engenheiro
continuou
falando e a serra cortando. Quando ele parou de falar, 50
Volts aproveitou
uma parada da serra e falou que a gente não era bicho pra
trabalhar daquele
jeito; daí o supervisor falou que, se era falta de mulher,
eles davam um jeito.
O engenheiro falou que tinha mais de vinte Companhias
trabalhando na
ponte, a maioria com prejuízo, porque era mais uma questão
de honra, a
gente tinha de acabar a ponte, a nossa Companhia nunca ia
esquecer nosso
trabalho ali naquela ponte, um orgulho nacional.
O supervisor perguntou se a comida não andava boa, se a
gente queria
mais café no serviço, e eu só dizendo que não, que só
queria a conta pra sumir
dali, e 50 Volts repetindo que não era bicho pra trabalhar
daquele jeito.
O cara de terno botou a mão na cintura e o paletó abriu na
frente, apareceu
um .38 enfiado na cinta. A serra parou, esse cara do .38
olhou bem pra mim
e falou olha aqui, peão, se você quer dinheiro na mão vai
receber já, mas vai
continuar no batente porque aqui dessa ponte você só sai
morto. O engenheiro
falou que a companhia tinha uma gratificação pra nós, então
era melhor
a gente continuar por bem, pra não desmerecer a confiança
da Companhia.
Aí 50 Volts falou isso mesmo, a gente descansa um pouco e
já volta
mais animado; mas o cara do .38 achou que era melhor
mostrar boa vontade
voltando direto pro batente, então joguei um balde dágua
na cabeça e voltei.
Um eletricista trabalhar molhado é o mesmo que um bombeiro
trabalhar
pelado; é pedir pra levar choque - mas era o jeito, era o
fim do mundo,
era peão que passava cambaleando, tropa de visitantes que
passavam perguntando
se ia tudo bem, se estava tudo certo, se a gente andava
animado; e
agora visitante nem andava mais de capacete, faltava pouco
pra inauguração.
A gente só respondia sim-senhor, sim-senhor, tudo que
perguntassem a
resposta era sim-senhor, feito bando de fantasmas. Se
dissessem que aquela
era a menor ponte do mundo a gente ia responder sim-senhor,
porque eu
pelo menos não ouvia mais nada, a mão trabalhava com a
cabeça dormindo. A mão começou a descascar nos calos, não dava tempo de formar
pele nova.
Eu olhava de noite o Rio e depois Niterói, ficava
perguntando por que esse
povo de lá precisa passar pra cá e o de cá passar pra lá?
Aí começou a aparecer pintor pra todo lado, a gente andava
chutando latão
de tinta, placa de sinalização, plaqueta, parafuso de
pregar placa. Veio uma
ordem de concentrar dez eletricistas na iluminação de fora
da ponte, numa
parte crua de tudo. Então botamos lá uma iluminação de
emergência muito
bem disfarçada, bonita, quem olhasse achava aquilo uma
maravilha, parecia
uma árvore de Natal, mas se batesse um vento mais forte ia
tudo pro mar.
Um belo dia passou o aviso geral de que era véspera da
inauguração,
caí na cama com roupa e tudo, com coceira na cabeça, no
corpo todo por
falta de banho, e um calo na testa de tanto usar capacete.
Nisso vem a
contra-ordem de não parar o serviço, senão a ponte ia
ficar com uma parte
escura, não podia, era uma vergonha; vamos lá, pessoal,
essa ponte é o
orgulho do Brasil, coisa e tal, e a gente teve mesmo de
subir pra montar as
últimas luminárias; a noite inteira se equilibrando em
altura de dez metros,
o vento passando forte, a ponte lá embaixo e o mar escuro,
dava até vontade
de pular e ir afundando, afundando, dava zonzeira, dava
remorso de ser
eletricista e raiva de quem inventou a eletricidade.
Eu nunca tinha tomado comprimido contra sono; mas naquela
noite
todo mundo tomou, 50 Volts falou toma, engole isso que
agora é o último
estirão, amanhã a gente dorme até rachar o rabo. Engoli
umas três bolinhas
com café, da mesma cor dos capacetes, amarelas, depois
subi num poste e
fiquei olhando os outros de capacete amarelo trepados na
escuridão, cada
um parecendo uma bolinha atolada no café da noite, lembro
que fiquei
tempo pasmado nisso, até que me cutucaram, aí toquei
direto até as nove da
manhã.
Tinha uma banda tocando não sei onde quando enfiaram a
gente
numas caminhonetas, dez horas da manhã, uns quarenta
eletricistas de olho
estalado, cada olheira de quem levou soco. 50 Volts enfiou
o dedo na orelha,
ficou admirado de tirar uma pelota preta; eu tirei a
botina e ninguém
agüentou o cheiro, tive de botar os pés pra tomar vento
fora da janela.
Apearam a gente numa praia, todo mundo caiu na água de
calça arregaçada,
de cueca, sabonete, cada um mais barbudo que o outro; e
foi no tirar a roupa
que dei pela falta do alicate no cinto.
Nunca tinha entrado no mar na minha vida, nem entrei.
Fiquei
fuçando a caminhoneta atrás do alicate, o pessoal voltou e
se trocou, eu
continuei fedendo.
Às onze da manhã a gente apeou num restaurante na beira
duma praia.
Feijoada. Não sei se era sábado, mas era feijoada - com
pinga e limão,
cerveja e mais feijoada. Quando a bebida bateu na cabeça,
o cansaço virou
uma alegria besta, deu uma zoeira que até esqueci do sono,
do alicate, da
sujeira. Tinha peão ali que não conhecia o nome dos
outros, tinha um que
cantava xaxado e baião, e o paraibano coxo acompanhava
dançando corta-
jaca, batendo os pés no ritmo certinho.
50 Volts fez um discurso dizendo que ia dar naquela ponte
o maior
curto-circuito do mundo, e eu também discursei mas nem
lembro, só lembro
que certa hora o dono do restaurante veio pedir pra gente
parar de cantar
Cidade Maravilhosa; aí 50 Volts falou que só parava pra
comer mais feijoada
quentinha, e veio mais, cada tigela fumegando com
carne-seca, pé de porco,
orelha, paio, costeleta, tudo que uma feijoada decente tem
de ter, como
couve, farinha e laranja que já vinha descascada, você
chupava uma e
empurrava mais feijoada pra baixo.
Aí deu aquela moleza, veio o café mas ninguém ali podia
ver café na
frente, quarenta eletricistas numa mesa comprida, na maior
tristeza, arrotando
sapo preto e palitando fiapo de laranja. Pra falar a
verdade, nem sei onde deitei, acordei no outro dia às quatro da tarde, num
alojamento com o chão
alagado de vômito. Tomei banho, jantei num refeitório
azulejado de amarelo,
deitei de novo e no outro dia enfiaram a gente numa
caminhoneta, só
que não era acolchoada. Pensei em dar um pulo na ponte pra
achar o alicate,
50 Volts perguntou se eu tinha ficado louco. Ele tinha
ouvido no rádio que
passavam não sei quantos mil carros por dia na ponte, e eu
querendo achar
um alicate.
50 Volts até hoje conta prosa de ter trabalhado lá, eu
fico quieto. Ele
até diz que um dia vai ao Rio só pra ver a ponte
iluminada; mas isso eu vi
outro dia, numa revista.
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