quarta-feira, 11 de julho de 2012

Conto de verão n2 2: Bandeira Branca Luis Fernando Verissimo



Ele: tirolês. Ela: odalisca. Eram de culturas muito diferentes, não podia
dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos
quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de
dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho
de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças
de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.
Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte.
Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia.
Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois
foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem
uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.
Só no terceiro Carnaval se falaram.
- Como é teu nome?
- Janice. E o teu?
- Píndaro.
- O quê?!
- Píndaro.
- Que nome!
Ele de legionário romano, ela de índia americana.
Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se
encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano.
Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era
sócia.
-Ah.
Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher
a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se
recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora.
Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira Branca, ele veio e a
puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando
se despediram, ela o beijou na face, disse “Até o Carnaval que vem” e saiu
correndo.
No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias
dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal!
Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na
hora da despedida, ele pediu:
- Me dá alguma coisa.
- O quê?
- Qualquer coisa.
- O leque.
O leque da bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.
No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à
procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por
ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes
tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento
de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau
elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele
bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem
lençol, que estava sendo lavado. O que acontecera?
- Você vomitou a alma - disse a mãe.
Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e
nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.
Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube - e lá estava
ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida.
- Sei lá. Bávara tropical - disse ela, rindo.
Estava diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto.
Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval.
- E aquela bailarina espanhola?
- Nem me fala. E o toureiro?
- Aposentado. A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um
brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos
vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse “Píndaro?!”
e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu
uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara
que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da
fantasia de sultão. O Marcelão tinha o que ele precisava para encher o buraco
deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as
ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo
menos não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adornada,
bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com
uma sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista,
certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um
par de calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que
lhe ocorreu dizer foi “pelo menos o meu tirolês era autêntico” e desistiu.
Mas, quando a banda começou a tocar Bandeira Branca e ele se dirigiu para
a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se
e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com
os dois braços para dançarem assim, ela dizendo “não vale, você cresceu mais
do que eu” e encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça
no seu ombro.
Encontraram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por
acaso, num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para
visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse
quase não reconheci você sem fantasias”. Ele custou a reconhecê-la. Ela
estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A
última coisa que ele lhe dissera fora “preciso te dizer uma coisa”, e ela
dissera
“no Carnaval que vem, no Carnaval que vem” e no Carnaval seguinte ela
não aparecera, ela nunca mais aparecera. Explicou que o pai tinha sido
transferido para outro estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não
tinha o endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não
teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara...
- O que você ia me dizer, no outro Carnaval? - perguntou ela.
- Esqueci - mentiu ele.
Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos
dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba,
o marido também é do Banco do Brasil... E a todas essas ele pensando: digo
ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira
Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será
apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele?
Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro
aos 30, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu... 

Um comentário:

  1. Sensacional esse conto! Obrigado por disponibiliza-lo pra gente! bjs, Andarilho.

    ResponderExcluir